Oscar Nominees for 2015 – In English

Best Picture

American Sniper

Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)

Boyhood

The Grand Budapest Hotel

The Imitation Game

Selma

The Theory of Everything

Whiplash

 

Actor in a Leading Role

Steve Carell, Foxcatcher

Bradley Cooper, American Sniper

Benedict Cumberbatch, The Imitation Game

Michael Keaton, Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)

Eddie Redmayne m The Theory of Everything

 

Actress in a Leading Role

Marion Cotillard, Two Days, One Night

Felicity Jones, The Theory of Everything

Julianne Moore, Still Alice

Rosamund Pike, Gone Girl

Reese Witherspoon, Wild

 

Actor in a Supporting Role

Robert Duvall, The Judge

Ethan Hawke, Boyhood

Edward Norton, Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)

Mark Ruffalo, Foxcatcher

J.K. Simmons, Whiplash

 

Actress in a Supporting Role

Patricia Arquette, Boyhood

Laura Dern, Wild

Keira Knightley, The Imitation Game

Emma Stone, Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)

Meryl Streep, Into the Woods

 

Animated Feature Film

Big Hero 6, Don Hall, Chris Williams and Roy Conli

The Boxtrolls, Anthony Stacchi, Graham Annable and Travis Knight

How to Train Your Dragon 2, Dean DeBlois and Bonnie Arnold

Song of the Sea, Tomm Moore and Paul Young

The Tale of the Princess Kaguya, Isao Takahata and Yoshiaki Nishimura

 

Cinematography

Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance) , Emmanuel Lubezki

The Grand Budapest Hotel, Robert Yeoman

Ida, Lukasz Zal and Ryszard Lenczewski

Mr. Turner, Dick Pope

Unbroken, Roger Deakins

 

Costume Design

The Grand Budapest Hotel, Milena Canonero

Inherent Vice, Mark Bridges

Into the Woods, Colleen Atwood

Maleficent, Anna B. Sheppard

Mr. Turner, Jacqueline Durran

 

Directing

Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance),  Alejandro G. Iñárritu

Boyhood, Richard Linklater

Foxcatcher, Bennett Miller

The Grand Budapest Hotel, Wes Anderson

The Imitation Game, Morten Tyldum

 

Documentary Feature

CitizenFour, Laura Poitras, Mathilde Bonnefoy and Dirk Wilutzky

Finding Vivian Maier, John Maloof and Charlie Siskel

Last Days in Vietnam, Rory Kennedy and Keven McAlester

The Salt of the Earth, Wim Wenders, Juliano Ribeiro Salgado and David Rosier

Virunga, Orlando von Einsiedel and Joanna Natasegara

 

Documentary Short Subject

Crisis Hotline: Veterans Press 1, Ellen Goosenberg Kent and Dana Perry

Joanna,, Aneta Kopacz

Our Curse, Tomasz Śliwiński and Maciej Ślesicki

The Reaper (La Parka), Gabriel Serra Arguello

White Earth, J. Christian Jensen

 

Film Editing

American Sniper, Joel Cox and Gary D. Roach

Boyhood, Sandra Adair

The Grand Budapest Hotel, Barney Pilling

The Imitation Game, William Goldenberg

Whiplash, Tom Cross

 

Foreign Language Film

Ida, Poland; Directed by Pawel Pawlikowski

Leviathan, Russia; Directed by Andrey Zvyagintsev

Tangerines, Estonia; Directed by Zaza Urushadze

Timbuktu, Mauritania; Directed by Abderrahmane Sissako

Wild Tales, Argentina; Directed by Damián Szifron

 

Makeup and Hairstyling

Foxcatcher, Bill Corso and Dennis Liddiard

The Grand Budapest Hotel, Frances Hannon and Mark Coulier

Guardians of the Galaxy, Elizabeth Yianni-Georgiou and David White

 

Music: Original Score

The Grand Budapest Hotel, Alexandre Desplat

The Imitation Game, Alexandre Desplat

Interstellar, Hans Zimmer

Mr. Turner, Gary Yershon

The Theory of Everything, Jóhann Jóhannsson

 

Music: Original Song

“Everything Is Awesome” from THE LEGO MOVIE , Music and Lyric by Shawn Patterson

“Glory” from SELMA, Music and Lyric by John Stephens and Lonnie Lynn

“Grateful” from BEYOND THE LIGHTS, Music and Lyric by Diane Warren

“I’m Not Gonna Miss You” from GLEN CAMPBELL…I’LL BE ME, Music and Lyric by Glen Campbell and Julian Raymond

“Lost Stars” from BEGIN AGAIN, Music and Lyric by Gregg Alexander and Danielle Brisebois

 

Production Design

The Grand Budapest Hotel, Adam Stockhausen (Production Design); Anna Pinnock (Set Decoration)

The Imitation Game, Maria Djurkovic (Production Design); Tatiana Macdonald (Set Decoration)

Interstellar, Nathan Crowley (Production Design); Gary Fettis (Set Decoration)

Into the Woods, Dennis Gassner (Production Design); Anna Pinnock (Set Decoration)

Mr. Turner, Suzie Davies (Production Design); Charlotte Watts (Set Decoration)

 

Short Film: Animated

The Bigger Picture, Daisy Jacobs and Christopher Hees

The Dam Keeper, Robert Kondo and Dice Tsutsumi

Feast, Patrick Osborne and Kristina Reed

Me and My Moulton, Torill Kove

A Single Life, Joris Oprins

 

Short Film: Live Action

Aya, Oded Binnun and Mihal Brezis

Boogaloo and Graham, Michael Lennox and Ronan Blaney

Butter Lamp (La Lampe au Beurre de Yak), Hu Wei and Julien Féret

Parvaneh, Talkhon Hamzavi and Stefan Eichenberger

The Phone Call, Mat Kirkby and James Lucas

 

Sound Editing

American Sniper, Alan Robert Murray and Bub Asman

Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance), Martin Hernández and Aaron Glascock

The Hobbit: The Battle of the Five Armies, Brent Burge and Jason Canovas

Interstellar, Richard King

Unbroken, Becky Sullivan and Andrew DeCristofaro

 

Sound Mixing

American Sniper, John Reitz, Gregg Rudloff and Walt Martin

Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance), Jon Taylor, Frank A. Montaño and Thomas Varga

Interstellar, Gary A. Rizzo, Gregg Landaker and Mark Weingarten

Unbroken, Jon Taylor, Frank A. Montaño and David Lee

Whiplash, Craig Mann, Ben Wilkins and Thomas Curley

 

Visual Effects

Captain America: The Winter Soldier, Dan DeLeeuw, Russell Earl, Bryan Grill and Dan Sudick

Dawn of the Planet of the Apes, Joe Letteri, Dan Lemmon, Daniel Barrett and Erik Winquist

Guardians of the Galaxy, Stephane Ceretti, Nicolas Aithadi, Jonathan Fawkner and Paul Corbould

Interstellar, Paul Franklin, Andrew Lockley, Ian Hunter and Scott Fisher

X-Men: Days of Future Past, Richard Stammers, Lou Pecora, Tim Crosbie and Cameron Waldbauer

 

Writing: Adapted Screenplay

American Sniper, Written by Jason Hall

The Imitation Game, Written by Graham Moore

Inherent Vice, Written for the screen by Paul Thomas Anderson

The Theory of Everything, Screenplay by Anthony McCarten

Whiplash, Written by Damien Chazelle

 

Writing: Original Screenplay

Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance), Written by Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris, Jr. & Armando Bo

Boyhood, Written by Richard Linklater

Foxcatcher, Written by E. Max Frye and Dan Futterman

The Grand Budapest Hotel, Screenplay by Wes Anderson; Story by Wes Anderson & Hugo Guinness

Nightcrawler, Written by Dan Gilroy

 

Apud:

http://oscar.go.com/mypicks?mi_u=ce8b6dbf4c4bb2b987869ea23227c3fcb8303ee4&om_mid=_BU6dncB8-c30yR&om_swid=AA6739&cid=ealert_022215_Oscars

 

Transcribed here on February, 22 2015

Ortodoxia e Heresia – 2

Ortografia é grafia correta. Ortodoxia é opinião correta, ponto de vista correto.

Na História da Igreja Cristã o oposto de um ponto de vista correto é uma heresia. Uma heresia é, portanto, um ponto de vista incorreto. Uma pessoa que adota uma heresia, um ponto de vista incorreto, é um herege.

Na História da Igreja Cristã hereges eram em regra excomungados. Quando alguém que é membro da igreja é excomungado ele deixa de ser membro da igreja e perde os direitos que tinha como membro, como, por exemplo, o direito de comungar, vale dizer, o direito de ter comunhão com os demais membros, participar da Eucaristia ou da Ceia do Senhor, votar em assembleias, etc. A excomunhão é, por assim dizer, e para fins práticos, a revogação do batismo — a retenção da carteirinha de membro do indivíduo na entidade “igreja”.

Para que se conclua que alguém é herege, na igreja, é preciso saber, com bastante clareza e precisão, o que conta como ponto de vista correto — isto é, o que conta como ortodoxia.

Isso nem sempre é fácil.

Os pontos de vista classificáveis como ortodoxia ou heresia são, em regra, pontos de vista acerca de doutrina.

Uma doutrina, na religião, diferentemente de uma teoria, é um conjunto de enunciados acerca de um tema de importância para a religião que é colocado como objeto de fé ou aceitação pelos fiéis daquela religião.

No caso do Cristianismo, os enunciados

(a) “Jesus era filho de Maria”

(b) “Jesus era judeu”

não são exatamente doutrinas — são meras afirmações de fatos. Por outro lado, os enunciados

(c) “Jesus é filho de Deus”

(d) “Jesus é divino”

são afirmações de doutrinas (ou afirmações doutrinárias).

Por quê?

Uma razão é que qualquer um pode aceitar (com base em evidências históricas) a veracidade dos dois primeiros enunciados [(a) e (b)] sem ser, por isso, considerado cristão. Aceitar a veracidade dois enunciados seguintes [(c) e (d)] é, muito provavelmente, equivalente a identificar-se como cristão.

Por isso.

Também parece ser uma afirmação doutrinária dizer que

(e) “Maria, a mãe de Jesus, o concebeu e deu a luz a ele sendo virgem”

(f) “Maria, a mãe de Jesus, continuou a ser virgem mesmo depois de dar a luz a Jesus”.

Essa última doutrina é chamada de a doutrina da “virgindade perpétua de Maria”; a anterior é chamada de a doutrina do “nascimento virginal de Jesus”.

Disse atrás que decidir que um determinado ponto de vista é ortodoxo ou herético muitas vezes não é fácil.

Nossa evidência para aceitar os enunciados (a) e (b) é o fato de que a Bíblia afirma esses enunciados E (esse “e” é importante) não parece haver razão nenhuma para questionar essa afirmação.

O problema é que muita gente está convicta de que a Bíblia também afirma os enunciados (c) e (d) — enquanto, aqui, um bom número de pessoas contesta que esse seja o caso.

Mas antes de discutir enunciados (c) e (d), passemos rapidamente pelos enunciados (e) e (f).

A Bíblia afirma (e) e não afirma (f). Faz alguma diferença?

Bem, alguma diferença faz. A questão é: para quem e quanta.

Evidentemente, para quem já é cristão, faz (alguma) diferença se a Bíblia afirma ou não afirma algo. Para o cristão, o fato de que a Bíblia afirma que Jesus foi concebido em uma virgem e nasceu dela por obra do Espírito Santo de Deus torna esse enunciado merecedor de alguma atenção especial.

Se ele é um cristão, digamos, conservador, provavelmente esse fato é suficiente para justificar sua aceitação do enunciado (e).

Se ele é um cristão, digamos, liberal, o fato de a Bíblia afirmar esse enunciado pode não ser suficiente para que ele aceite o enunciado, embora ele provavelmente precise ter algum cuidado para se justificar, caso o recuse.

Para quem não é cristão, porque é, digamos, cético ou racionalista, o fato de a Bíblia afirmar (e) não quer dizer grande coisa — ou não significa nada. Dado o conteúdo do enunciado, essa pessoa simplesmente rejeita a sua veracidade, pois esse enunciado contraria, ou parece contrariar, sua experiência uniforme de como seres humanos funcionam (no caso, se reproduzem).

No caso do enunciado (f), que não está na Bíblia, muitos cristãos (por exemplo, todos os protestantes) e virtualmente todos os não-cristãos o rejeitam. Apenas os católicos, ou pelo menos alguns deles, o aceitam, por se tratar de uma doutrina consagrada pela tradição, ainda que não tenha respaldo bíblico. E a aceitam apesar de a Bíblia ser clara ao dizer que Jesus tinha vários irmãos — o que significa (provavelmente) que Maria teve outros filhos depois de Jesus. E a Bíblia não registra que a concepção e o nascimento dos irmãos de Jesus também tenham sido virginais.

Discutamos agora os enunciados (c) e (d).

A Bíblia afirma que Jesus era filho de Deus? A resposta a essa pergunta não é muito clara. Em alguns poucos lugares a Bíblia registra que algumas pessoas afirmaram que Jesus era filho de Deus. Em outros lugares, registra que algumas pessoas afirmaram que ele era o Messias que havia de vir, ou “aquele que está por vir” (erxomenos). Mas mesmo que a Bíblia afirmasse, taxativamente, não em um relato mas nas palavras do autor da passagem, que Jesus era filho de Deus, ainda restaria a questão de determinar o que a expressão “filho de Deus” significa — porque em outros lugares todos nós, ou, pelo menos, todos os que creem, são chamados de filhos de Deus.

Em nenhum lugar a Bíblia afirma taxativamente, nas palavras do autor, que Jesus é Deus ou que é divino. Afirma-se, por exemplo, em João 1:1, que, “no princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus”. É possível extrair daí, com uma boa exegese, a interpretação de que Jesus era Deus. Mas a passagem comporta outras interpretações também.

O que dizer?

Por um bom tempo, na História da Igreja, a questão da divindade de Jesus ficou, digamos, em suspenso. Por uma razão muito boa: os cristãos, como os judeus, dos quais descenderam, eram monoteístas. Afirmar que Jesus era Deus os colocava diante do sério problema de explicar como é que alguém que crê em dois deuses pode se considerar monoteísta — e abrir mão do monoteísmo parecia ser equivalente a chancelar o politeísmo dos pagãos.

A solução encontrada, lá pelo século quarto, foi dizer mais ou menos isto: Deus e Jesus possuem uma mesma e única natureza (substância, essência) divina mas são duas pessoas (hypostases) distintas, o Pai e o Filho. Depois o Espírito foi acrescentado, produzindo a doutrina da Trindade: um só Deus (uma só natureza / substância / essência divina compartilhada por três pessoas, o Deus Três-em-Um [Tri(ú)no].

Resolvido (de modo a satisfazer a maioria que importava) o problema da divindade de Jesus (ou o problema trinitário, da Trindade de Deus), surge o problema conhecido como cristológico: se Jesus é de fato Deus (eterno, espiritual, imaterial, incorpóreo, etc.) como pode ter ele nascido de mulher, andado aqui na Terra, sofrido, morrido e (segundo se crê) sido ressuscitado? [Interessante que a Bíblia em nenhum ligar diz que Jesus “se ressuscitou” dos mortos: ela afirma que ele “foi ressuscitado (por Deus)”].

A solução do problema cristológico foi, de certo modo, o oposto da solução do problema trinitário (ou da divindade de Jesus), mas operou nos mesmos pressupostos metafísicos. No caso da discussão do problema trinitário, postulou-se a existência de duas (na verdade três) pessoas em uma só natureza (essência, substância). No problema cristológico, postulou-se a existência, em uma só pessoa, mas com duas naturezas (essências, substâncias): a divina e a humana. Dessa forma, afirmou-se que Jesus (embora uma só pessoa) era “verdadeiramente Deus” e “verdadeiramente homem” (ou seja, tinha duas naturezas, ou essências, ou substâncias).

É evidente que ao falar em essência, substância, ou natureza, de algo (ou alguém), já se deixou muito para trás a linguagem do Novo Testamento para utilizar a linguagem da filosofia grega (helênica, helenista). Traduzir nessa linguagem o que diz a linguagem concreta e metafórica do Novo Testamento é sempre complicado.

O desafio dos ortodoxos foi justificar a afirmação, no caso da Trindade, que Deus era constituído de três pessoas mas que possuía uma só natureza. Afirmar que Deus era uma pessoa só ou possuía três naturezas era cair em heresia: a heresia monarquista (antitrinitarismo) ou a heresia triteísta.

O desafio dos ortodoxos foi justificar a afirmação, no caso de Cristológico, que Jesus tinha duas naturezas mas era uma só pessoa. Afirmar que Jesus tinha uma só natureza, ou que ele era de alguma forma constituído de duas pessoas era cair em heresia: a heresia monofisista, no primeiro caso, ou a heresia nestoriana, no segundo.

Aqueles que afirmavam que Jesus tinha apenas uma natureza (os monofisistas: phusis é natureza em Grego — donde vem física), não duas, foram condenados pela heresia do monofisismo.

Aqueles monofisistas que afirmavam que Jesus tinha apenas a natureza divina, e só a aparência de uma natureza humana, foram condenados (também) pela heresia do docetismo (dokeo, em Grego, quer dizer parecer, aparentar).

Aqueles monofisistas que afirmavam que Jesus tinha apenas a natureza humana, e só a aparência de um ser divino, foram condenados (também) pelas heresias do adocianismo (e outras variantes).

A discussão, na verdade, não parou aí. Se Jesus, embora uma só pessoa, tinha duas naturezas (essências, substâncias), o que dizer de sua vontade e de sua propensão a agir? Tinha ele uma só ou duas de cada uma dessas? Uma só vontade (telos)? Uma só propensão a agir (energia)? Ou duas? O monotelismo e o monergismo foram considerados heresia (em favor do duotelismo e do duergismo: duas vontades e duas propensões a agir).

Mas se duas, resta o problema: como elas se relacionavam uma com a outra? Qual prevalece? Em que condições?

E assim vai.

A seguir uma discussão interessante do monotelismo pelo apologeta contemporâneo William Lane Craig.

http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Monotelismo

Monotelismo

PERGUNTA

Olá Dr Craig!

Estou lendo seu livro Philosophical Foundation for a Christian Worldview (Filosofia e Cosmovisão Cristã, ed. Vida Nova, 2005). Infelizmente, minha pergunta não foi respondida quando eu estava no seminário fazendo M. Div. uma década atrás. Após sua explicação, estou mais convencido de que a sua posição, o monotelismo (pg. 611), é a mais correta, apesar dessa conclusão ser apenas uma conclusão tentativa. Monotelismo está sempre ligado com monofisismo. Até onde eu entendo, o monotelismo não é, necessariamente, uma implicação do monofisismo. O Terceiro Concílio de Constantinopla condenou tanto o monofisismo quanto o monotelismo como heréticos. (A maioria dos evangélicos reconhece esse concílio ecumênico?) O Dr. Norman Geisler também reconhece o monotelismo como herético (Systematic Theology [Teologia Sistemática] Volume 2: God, Creation, [Grand Rapids, MI: BethanyHouse, 2003] pg. 296). Minha pergunta é a seguinte: você não se preocupa com o fato de que alguns evangélicos consideram você um herege por causa da sua crença no monotelismo? Como eu estou mais convencido de sua explicação, eu não quero ser considerado como um herege nesse caso.

RESPOSTA

William Lane Craig:

Nenhum cristão sincero quer ser considerado um herético. Mas nós, protestantes, reconhecemos apenas a Escritura como nossa regra de fé final (o princípio da Reforma de sola scriptura). Portanto, nós trazemos até mesmo as afirmações de Concílios Ecumênicos perante o crivo da Escritura. Sempre existe uma grande hesitação em discordar de pronunciamentos de um Concílio Ecumênico. Ainda assim, como nós não os vemos como detentores de autoridade divina, estamos abertos para a possibilidade de que eles erraram em algumas coisas. Parece-me que ao condenar o monotelismo como uma doutrina incompatível com a crença cristã a igreja foi além de seus limites.

O que é monotelismo? É a doutrina que afirma que o Cristo encarnado tem uma única faculdade de vontade. Em contraste, o diotelismo ensina que o Cristo encarnado tem duas faculdades de vontade, uma associada com sua natureza humana (sua vontade humana) e uma associada com sua natureza divina (sua vontade divina). O Terceiro Concílio de Constantinopla condenou o monotelismo, promulgando como obrigatório para Cristãos crerem em duas vontades em Cristo. Eu suspeito que a maioria dos evangélicos Cristãos declare fidelidade com seus lábios ao Terceiro Concílio e ao diotelismo sem ter refletido seriamente a respeito desse assunto.

Alguns de nós, no entanto, consideram o monotelismo como, pelo menos, uma opção legítima para o Cristão bíblico, sem dizer que seja verdade. O Concílio aparentemente pensou que negar uma vontade humana de Cristo implicaria que lhe faltava uma natureza humana completa, ou seja, Cristo não seria verdadeiramente homem nesta hipótese. Portanto, para proteger a integridade da natureza humana de Cristo, o Concílio promulgou o diotelismo como algo mandatório para uma crença cristã ortodoxa. A preocupação com a verdadeira humanidade do Cristo encarnado é louvável e importante. A doutrina cristã da encarnação requer que Cristo seja verdadeiramente homem e verdadeiramente divino. Mas por que pensar que o fato de Cristo ter uma única vontade reduziria sua natureza humana?

O que o Concílio presumia, e o que parece duvidoso para muitos, é que a faculdade da vontade pertence propriamente à natureza de alguém em vez de pertencer à pessoa. É por isso que o Concílio pensou que se a natureza humana de Cristo não tivesse a faculdade da vontade, então ela não seria uma natureza humana verdadeira e completa. Em contraste, me parece quase óbvio que a vontade é uma faculdade de uma pessoa. São pessoas que tem livre arbítrio e que o exercitam para escolher isso ou aquilo. Se a natureza humana de Cristo tinha sua própria vontade, o que significaria que Cristo tinha, literalmente, duas vontades, como o Concílio afirmou, então existiriam duas pessoas, uma humana e uma divina. Mas esta é a heresia conhecida como nestorianismo, que divide Cristo em duas pessoas. Eu não consigo compreender como a natureza humana de Cristo poderia ter uma vontade própria, distinta da vontade da Segunda Pessoa da Trindade, e não ser uma pessoa.

A pergunta, então, é se Cristo pode ter uma vontade, porém duas naturezas. Ou ter uma única vontade implicaria na heresia chamada Monofisismo, a doutrina que Cristo tinha uma única natureza? No Concílio de Calcedônia, a Igreja condenou o monofisismo e promulgou o diofisismo, a doutrina que Cristo tinha duas naturezas, humana e divina. A pergunta não é, como você colocou, se o monotelismo é, necessariamente, uma implicação do monofisismo – parece óbvio que sim, pois se há apenas uma pessoa e uma natureza no Cristo encarnado, de onde viria a segunda vontade? – mas se o monofisismo é, necessariamente, uma implicação do monotelismo, como o Concílio acreditava.

Eu não penso que é. No capítulo sobre a encarnação, no livro Filosofia e Cosmovisão Cristã, eu dou um possível modelo da encarnação de acordo com o qual a natureza humana de Cristo torna-se completa através de sua união com a Segunda Pessoa da Trindade. Como só existe uma pessoa em Cristo, existe apenas uma faculdade da vontade, e esta faculdade serve tanto à humanidade quanto à divindade de Cristo, sendo exercitada por meio tanto da natureza humana quanto da natureza divina. Assim, Cristo tem duas naturezas completas, mas uma única vontade, da mesma forma que – e porque – ele é uma única pessoa.

Portanto, embora eu não goste de contradizer os decretos de um Concílio Ecumênico, acredito que o perigo de cair em nestorianismo é muito maior do que o perigo de cair em monofisismo. Eu acho que podemos coerentemente e biblicamente ser monotelistas sem sermos monofisistas.

William Lane Craig

Leia mais: http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Monotelismo#ixzz3RuhRzuBm

Em São Paulo, 16 de Fevereiro de 2015

(Faz 51 anos hoje que assisti à minha primeira aula no Seminário Presbiteriano de Campinas).

Ortodoxia e Heresia – 1

Comprei e estou lendo um livro (recentíssimo, publicado já em 2015) de História da Igreja muito interessante: Medieval Christianity: A New History, de Kevin Madigan (Yale University Press, 2015). Embora o livro seja, como indica o título, uma abordagem nova à História do Cristianismo na Idade Média, sua primeira parte é dedicada à História do Cristianismo na Antiguidade.

O autor, para justificar a sua “História Nova”, tenta provar, em relação ao Cristianismo na Era Antiga, uma tese complexa que vai contra o que normalmente se acredita.

O que normalmente se acredita é que a maioria dos cristãos nos quatro primeiros séculos da era cristã subscrevia àquilo que hoje se considera ortodoxia em sua doutrina, as diversas heresias aparecendo apenas nas periferias, e sendo rapidamente combatidas e rechaçadas pela maioria ortodoxa.

Contra essa crença convencional Madigan procura provar uma tese complexa:

  1. A construção do que hoje chamamos ortodoxia foi um processo longo e difícil, concluído apenas por volta do século V e VI, e que foi objeto de deliberação cuidadosa e intencional;
  2. A maioria dos cristãos durante os primeiros quatro ou cinco séculos subscrevia a pelo menos uma doutrina, geralmente a mais de uma, que veio a ser considerada herética posteriormente;
  3. A ortodoxia foi construída, de cima para baixo, à medida em que bispos e a liderança teológica (os pais da igreja que acabaram por não ser considerados heréticos em algum aspecto importante) se valeram de três instrumentos para forçar os demais cristãos a subscrever ao núcleo de doutrinas considerado ortodoxo por eles: a definição de fórmulas, regras de fé ou credos; a definição do cânon do Novo Testamento; a sujeição e submissão do pensamento da generalidade dos cristãos aos ditames do clero, em especial do bispo da região: Credo, Canon e Clero são os três C’s daquilo que vai a ser considerado ortodoxia no Cristianismo Católico (mais dois C’s aqui…);
  4. No processo, doutrinas que não se adequavam aos credos foram sendo consideradas heréticas e anatematizadas, bispos e teólogos discordantes foram sendo eliminados (por excomunhão) do rol das autoridades, e os escritos que de alguma forma não se ajustavam totalmente aos credos aprovados ficaram fora do cânon.

Interessante, não? A maioria dos cristãos (no centro, e não na periferia) era não-ortodoxa (pelo critério de ortodoxia adotado posteriormente), vale dizer, herege, e a ortodoxia se construiu por um processo gradual mas deliberado de eliminação de heresias e hereges.

Termino com um comentário pessoal… Tenho dificuldade para acreditar que pequenos pontos de divergência doutrinária tenham servido, ao longo da história da igreja, para inúmeras excomunhões de pessoas e grupos de pessoas, bem como para cismas e divisões da igreja. Às vezes, do ângulo da dedicação à igreja e da moralidade, não havia reparo a fazer a alguém… Mas seus pontos de vista tinham um “cheiro” de heresia (em geral arianismo ou pelagianismo)… Nada mais do que isso. Logo, excomunhão nele. Sempre achei isso lastimável. Que, porém, essa atitude ainda perdure no século 21 é ainda mais lamentável.

Em Salto, 14 de Fevereiro de 2015 (pequeno acréscimo em 16/2/2015)

Minhas Dívidas Intelectuais: Pintando Pequenos Retratos de Mim Mesmo

Li uma vez uma história de um avô que passeava carregando a neta nos ombros. Ao encontrar um amigo, este resolveu brincar com a criança, e elogiou-lhe o tamanho. Ao elogio a menina respondeu: “Bom, obrigado, mas nem tudo disso que o senhor vê sou eu”. [1]

A observação da criança é relevante aqui. Pouco daquilo que eu escrevo ou digo em minhas aulas e palestras é idéia original minha. Ao especialista, isso ficará imediatamente evidente. Para o leigo no assunto, porém, isso deve ser clara e formalmente declarado.

Nenhum artigo ou livro é uma produção totalmente individual. Além das dívidas com professores e outras pessoas que deixaram uma marca em nós, há nossas dívidas com autores de livros, realizadores de filmes, e com outras pessoas, muitas das quais já morreram, em alguns casos há muito tempo…

Minha formação pessoal se deu, formalmente, na teologia e na filosofia. Tenho dívidas intelectuais enormes com alguns famosos filósofos e com alguns teólogos. Com nenhum deles concordo inteiramente, mas todos os que vou citar deixaram em mim influências marcantes.

Sócrates, o mestre de Platão, chamou minha atenção para os seguintes fatos: primeiro, como crianças, ideias são sempre concebidas em interação humana; segundo, como a mulher que dá à luz uma criança, freqüentemente precisamos de um parteiro que nos ajude a dar à luz as ideias que concebemos; e, terceiro, como a criança que nasce, nossas ideias precisam se desenvolver, o que novamente se dá através da interação humana, do diálogo, do embate de pontos de vista, da discussão crítica… Seria “parteiro de ideias – dos outros” uma boa metáfora para o papel do professor?

Aristóteles me marcou pela ênfase que deu ao fato de que as ideias que concebemos devem estar ancoradas na experiência e à necessidade de que, ao tratar essas ideias, precisamos sempre respeitar a lógica e razão [2]. Ele também me convenceu de que algumas de nossas idéias são objetivamente verdadeiras, e que o relativismo e o ceticismo se destroem a si próprios (são “self-defeating”, como se diz em Inglês). E, por fim, me convenceu de que o fim principal do homem é ser feliz — ou, pelo menos, buscar a felicidade. (Calvinistas ortodoxos vão se escandalizar com essa minha admissão, mas ela é verdadeira. Um dos catecismos de Westminster diz que “o fim principal do homem é glorificar a Deus e desfruta-lo para sempre”. Pergunto eu: que forma melhor de glorificar a Deus existe do que ser uma criatura sua que é feliz com a vida que tem?).

David Hume, o grande cético (não-radical, convenhamos) da época do Iluminismo, sobre quem escrevi minha tese de doutoramento em 1970-72, me ajudou a evitar o dogmatismo ao insistir que tudo, até mesmo nossa experiência sensorial, a lógica, a racionalidade e a crença na posse da verdade, deve ser encarado com certa dose de ceticismo. Mas ele não foi capaz de fazer de mim um cético total, nem um relativista, nem um descrente na experiência sensorial, na lógica, na razão e na existência da verdade. Houve momentos em que acreditei que Hume havia feito de mim um ateu convicto. Mas em outros momentos ele me fez duvidar até mesmo daquilo de que eu parecia estar mais convicto…

Hume e seu melhor amigo, Adam Smith, foram, porém, capazes de me convencer de que existe algo que é apropriado chamar de natureza humana – e que nunca se desrespeita essa natureza sem pagar um alto preço, especialmente quando se trata da organização da sociedade… E Adam Smith me ajudou a me tornar um liberal estilo clássico (mas nisso teve ajuda de muitos outros, em especial de Ayn Rand).

Karl Popper, crítico de Hume em alguns aspectos, mas seguidor dele em outros, me ajudou a ver o processo de construção do conhecimento – incluindo o conhecimento científico – como algo humano, e, portanto, falível, nunca final e definitivo, mas que não deixa de ser, por isso, objetivo e racional. Popper ainda me ajudou a entender a continuidade que existe entre a ciência e o senso comum, bem como entre a ciência e a filosofia (ambas dependentes da razão crítica). Popper também me ajudou a entender porque a racionalidade crítica só pode prosperar numa sociedade aberta e livre.

Ayn Rand é,por fim, a influência maior, que, além de reforçar, de forma inigualável na filosofia do século XX, os temas aristotélicos, me fez ver algo que Popper já havia me mostrado: que a racionalidade só pode prosperar e frutificar em uma sociedade radicalmente aberta e livre, que valoriza o indivíduo e seus direitos, básicos e fundamentais, quais sejam: o direito à vida, o direito à liberdade (de expressão, locomoção, associação, contrato, e de busca da felicidade como ele a entender), e o direito à propriedade dos frutos do trabalho. Com sua inestimável ajuda consegui a integrar minha metafísica, minha epistemologia, minha ética, e minha filosofia política.

Em 5 de Fevereiro de 2015, dias atrás, o mundo racional e livre comemorou 110 anos do nascimento dessa grande filósofa e insuperável romancista, nascida na Rússia como Alyssa Zinovievna Rosenbaum, mas que cedo percebeu que não seria capaz de manter sua racionalidade numa sociedade sem liberdade, como era a sociedade russa depois da tomada do poder pelos comunistas em 1917, e, por isso, fugiu para os Estados Unidos, onde alcançou fama e sucesso.

Esses filósofos são os pilares em cima dos quais minhas idéias e minha visão de mundo foram sendo construídas.

Mas ainda faltava integrar à minha visão de mundo a minha filosofia da educação…

Aqui, registro apenas uma influência digna de nota — que alguns vão achar que destoa das demais, pois os outros foram todos liberais e este é considerado um progressista, que, na parlância comum, é uma categoria “de esquerda”. Mas mesmo que meio inclinado para a esquerda, considero John Dewey também um liberal.

John Dewey é, a meu ver, o maior filósofo da educação do século XX (embora discorde dele em muitos pontos importantes) – talvez o maior desde Jean Jacques Rousseau. Dewey me ajudou a perceber três aspectos essenciais da educação, com os quais estou totalmente de acordo.

Primeiro, a educação tem que ver com a criança, não com o professor, e, portanto, com a aprendizagem, não com o ensino.

Segundo, a educação é um processo natural de desenvolvimento humano, de “dentro para fora”, por assim dizer, não um processo artificial de imposição à criança, “de fora para dentro”, de um conjunto de informações e conhecimentos.

Terceiro, a forma mais eficaz e eficiente de ajudar a criança a aprender, e, portanto, de ajudá-la a se desenvolver, é respeitando, não subjugando, seus interesses, e esse respeito se traduz, especialmente num contexto escolar, na chamada aprendizagem ativa, que é promovida através da metodologia de projetos de aprendizagem (metodologia que foi introduzida no mundo pedagógico por um discípulo de Dewey, William Heard Kilpatrick).

O meu envolvimento com o Instituto Ayrton Senna me ajudou, de certo modo, a “traduzir” John Dewey para o contexto brasileiro atual, sem violar os demais elementos de minha visão filosófica, que acabei de ressaltar. Neste caso sou devedor a Antonio Carlos Gomes da Costa, meu amigo que se foi muito cedo.

O meu envolvimento com o Instituto Lumiar (do qual fui presidente por dois anos) me permitiu ver que o que penso não é utopia: a Escola Lumiar, em sua concepção, e, espero, cada vez mais na sua prática, junto com a Escola da Ponte e a Sudbury Valley School, são as escolas mais próximas da minha visão da educação que eu conheço. Neste caso, sou devedor a Ricardo Semler, amigo e, na área da educação, uma inspiração.

O meu envolvimento com a Lumiar se deveu também, em grande medida, ao meu grande amigo Rubem Alves, que também já partiu — menos precocemente que o Antonio Carlos, mas ainda mais cedo do que devia. Fomos amigos e colegas durante cinquenta anos, desde meu tempo de seminário, que começou em 1964, até a sua morte, em 2014. E fomos colegas na UNICAMP durante quarenta anos, desde que eu retornei para o Brasil em 1974.

Sou devedor a todas as pessoas já mencionadas, e a outras que não consigo destacar individualmente, pelas ideias que tenho e defendo hoje.

Como disse Rubem Alves no Prefácio a um dos meus livros (que ainda não publiquei), a minha visão é fruto de minha ingestão e digestão dos pontos de vista de muitas pessoas. Mas esses pontos de vista, depois de devorados por mim, passaram a circular no meu sangue, e, por conseguinte, passaram a ser parte do meu DNA: integraram-se à minha visão de mundo.

Um dos biógrafos de John Dewey diz algo muito parecido em relação a ele, que eu gostaria que fosse verdade também em relação a mim:

“Sempre aberto às ideias dos outros, Dewey, no entanto, passava essas influências pelo crivo de seu pensamento e sentimento [i.e., de sua experiência] de modo a dar-lhes sentido e a transformá-las em algo seu, muito pessoal. Ele nunca se esqueceu de uma dívida intelectual ou pessoal significativa, em áreas que considerasse realmente importantes. Mas ele nunca permitiu que as várias ideias que o influenciaram ficassem separadas umas das outras, isoladas, como se ele fosse apenas um conjunto de espelhos que refletisse o pensamento dos outros. Ele armazenava tudo o que aprendia, mas, deixando de lado peculiaridades das fontes que o influenciaram, transformava as idéias dos outros em algo tipicamente seu” [3].

NOTAS

[1] Peguei essa história de terceira ou quarta mão… Ela é mencionada no livro The Schools our Children Deserve: Moving Beyond Traditional Classrooms and “Tougher Standards”, de Alfie Kohn (Houghton Mifflin Company, New York, 1999, 2000), p. 333. O autor afirma que a ouviu contada pelo antropólogo Lionel Tiger, que dizia que o caso se passara com um (não identificado) professor e sua neta…

[2] Entendo a razão com o conjunto de procedimentos e métodos (que certamente incluem a lógica e o respeito à evidência) que impedem que nossos conceitos, juizos e decisões sejam totalmente arbitrários.

[3]  Jay Martin, The Education of John Dewey: A Biography (Columbia University Press, New York, 2002, p. 131.

Transcrito aqui em São Paulo, 8 de Fevereiro de 2015

Minha Educação: Mais um Pouco de Biografia

Minha educação sempre misturou aspectos não-formais, em geral inovadores, com aspectos formais, em geral bastante tradicionais – aquilo que eu, em 1963, em meu convencional discurso de formatura no Curso Clássico, chamei, pouco criativamente, de “a escola da vida” e “a vida da escola”… [1]

Tive sorte: só comecei a vida da escola quando já estava bem a caminho de completar nove anos, em Santo André, SP, no ano de 1952… Assim, iniciei o (então) Primário bastante tarde! Não freqüentei “Prezinhos” e Jardins da Infância, muito menos Cursinhos Maternais e “Hotelzinhos Pedagógicos”. Creio que eles não existiam então nem nos grandes centros – muito menos onde eu morava. Assim, pude brincar e aprender, fora da escola, bem mais do que a maior parte das crianças de hoje (sentenciadas à escola, às vezes, a partir dos dois anos).

Morávamos (1946-1951) no que meu pai então chamava de “o sertão do Paraná” (Marialva, Maringá), onde as escolas eram tão ruins que meus pais decidiram que eu só iria para a escola quando a família conseguisse se mudar para um lugar “mais civilizado”, com melhores escolas. Tanto melhor: além de brincar, aprendi bastante. A escola da vida começou bem cedo – na verdade, com a vida… Logo descobri que brincadeira é coisa muito séria, porque, além de dar prazer, é fonte inesgotável de aprendizagem (especialmente quando é difícil) – sendo esta, talvez, a principal razão por que a brincadeira dá prazer! [2]

Cedo, e em casa, aprendi a ler e a escrever com razoável fluência. Sou, em parte, fruto de home schooling.

Aprendi a ler basicamente sozinho, com alguma ajuda de minha mãe (que mal havia terminado, na década de 30, o então chamado Curso de Comércio, mais ou menos equivalente ao Ginásio, na Academia São Luiz, em Campinas, hoje Colégio Pio XII, ligado à PUC-Campinas). Aprendi a ler na Bíblia e em histórias policiais (especialmente as de Sir Arthur Conan Doyle e as de Earle Stanley Gardner). A Bíblia, por influência de meu pai, pastor presbiteriano por quase 50 anos; as histórias policiais, por influência de minha mãe, que as devorava. O gosto pela leitura de histórias policiais se mostrou mais duradouro do que o gosto pela leitura da Bíblia (que, entretanto, vista como literatura, tem passagens memoráveis). Só recentemente voltei a ler a Bíblia com outros olhos.

No início de 1952, quando tinha oito anos e meio, mudamo-nos para Santo André, SP. Minha educação formal foi iniciada nos bancos de uma escola pública, o Grupo Escolar “Prof. José Augusto de Azevedo Antunes”, na Rua Senador Flaquer. A educação ali proporcionada era bastante tradicional – mas tive a sorte de encontrar professoras que, percebendo que eu já lia e escrevia fluentemente, me estimularam a explorar campos mais férteis e verdejantes do que as cartilhas e os livros-texto de então. Li bastante e amplamente nessa época: não só o Tesouro da Juventude e a literatura infantil e para adultos de Monteiro Lobato (então, em ambos os casos, presentes, de rigueur, na biblioteca de toda casa que prezava a educação), mas também romances policiais. Continuei a devorar Conan Doyle, especialmente suas histórias de Sherlock Holmes, e Erle Stanley Gardner, especialmente suas histórias de Perry Mason; mas descobri também Georges Simenon, com suas histórias do Inspetor Maigret, e Maurice Leblanc, com suas histórias do incorrigível Arsène Lupin, o famoso “ladrão de casaca”, e Agatha Christie, com suas histórias de Hercule Poirot e Miss Marple. Minha maior descoberta, nessa época, entretanto, foram os romances históricos de autores franceses, como os de Alexandre Dumas, especialmente aqueles envolvendo os Três Mosqueteiros, e os de Michel Zévaco, especialmente aqueles envolvendo os charmosos espadachins, pai e filho, “Les Pardaillans”. Por fim, descobri romances em geral, sem discriminar negativamente nem mesmo os livros da então chamada “Biblioteca das Moças”… Li, ainda na pré-adolescência, Rebeca, Jane Eyre, O Morro dos Ventos Uivantes, bem como quase tudo de A. J. Cronin, e muitos outros – que eram livros que minha mãe adorava e que, portanto, estavam disponíveis em casa. Felizmente meus pais nunca me disseram que havia livros que eram “de adultos”, vedados a crianças.

Fiz o Ginásio no Colégio Estadual e Escola Normal “Dr. Américo Brasiliense” (depois Instituto de Educação “Dr. Américo Brasiliense”), também em Santo André. O Colégio ficava (ainda fica, embora em outro prédio e com ainda outro nome) bem no largo do Quarto Centenário (o quarto centenário de Santo André foi celebrado dia 8 de Abril de 1953). A escola também era tradicional, mas o ensino era de qualidade: os professores eram muito bons, dentro da visão pedagógica tradicional. Não se esperava mais do que isso naquela época. A escola pública de então atendia à camada mais intelectualizada da sociedade – servia à elite, portanto. Um pastor protestante naquela época, embora bastante pobre pelos padrões de hoje, tinha um status social razoável. Eu, o primogênito da família, de certo modo destinado a seguir nos passos do pai, tinha a obrigação de entrar na melhor escola da cidade… Entrei – sem Curso de Admissão (apenas com algumas aulas de revisão ministradas, um mês antes dos exames, por Carla Strambio, então novinha, e que, cinqüenta anos depois eu iria reencontrar como minha colega na categoria de “Tradutora Juramentada e Intérprete Comercial” – ela de Italiano, eu de Inglês). Os Exames de Admissão para ingressar no Ginásio do Américo Brasiliense eram, talvez, mais seletivos do que os Vestibulares de muitas universidades públicas hoje em dia. Quando entrei no Ginásio, em Fevereiro de 1956, havia onze candidatos para cada vaga. O Exame de Admissão barrou mais de 90% dos pretendentes: entraram apenas 30 de 330 candidatos ao curso diurno… o que significava que, com o acréscimo de alguns repetentes, havia apenas uma turma de primeira série do Ginásio no turno diurno em 1956 no Américo Brasiliense.

Além das matérias convencionalmente consideradas acadêmicas, a escola tinha um excelente orfeão, uma competente área de artes (com foco especialmente em desenho), uma interessante área de trabalhos manuais (onde aprendi a fazer sacolas, chaveiros, e assentos de palhinha para cadeira), e um bom departamento de educação física (área que, admito sem vergonha, nunca foi o meu forte).

Voltando mais uma vez para a literatura, essa foi a época em que descobri José de Alencar (Cinco Minutos, A Viuvinha, Lucíola, Diva, Iracema, Senhora…), Visconde de Taunay (Inocência), Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha), e, principalmente, Machado de Assis (Helena, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Memorial de Aires…). Adolescente que era naqueles tempos em que o romantismo não havia ainda saído de moda, não deixei de me fascinar pela poesia, lendo comportadamente Olavo Bilac, mas me apaixonando pelos poetas mais românticos, como Casemiro de Abreu, Gonçalves Dias, Castro Alves, Álvares de Azevedo, Raimundo Corrêa… Ainda sei de cor vários poemas que decorei naquela época.

Com esses interesses, era inevitável que eu, na então chamada Escola Secundária, optasse pelo Curso Clássico e não pelo Curso Científico. A bem da verdade, eu até que tentei cursar o Científico no Américo Brasiliense: mas não suportei um semestre de Física e Química…

Fui fazer o Curso Clássico, como aluno interno, no Instituto “José Manuel da Conceição” (JMC), em Jandira, SP, escola privada, pertencente à Igreja Presbiteriana e com ligações com o Instituto Presbiteriano Mackenzie (mantenedor da Universidade Mackenzie). Meu pai já havia estudado no JMC na década de trinta. O Instituto era considerado a melhor via de acesso para o Seminário. Na verdade, era até mesmo chamado de “Seminário Menor”, em analogia com as instituições congêneres da Igreja Católica. Lá não precisei estudar Física e Química, e estudei apenas um pouco de Biologia e Matemática… Em compensação, estudei bastante Língua e Literatura Portuguesa, Francês (incluindo Literatura Francesa), Inglês (incluindo Literatura Inglesa e Americana), Latim, Grego Clássico, Filosofia (especialmente Lógica), Psicologia, História… – todas elas matérias em que eu tinha interesse e sempre me dei muito bem.

Mas havia bem mais no JMC do que a vida acadêmica. Ouso mesmo dizer que os aspectos não-formais (extraclasse) da educação proporcionada no JMC me educaram mais do que as aulas a que assisti. Eu tinha de cuidar da limpeza e da arrumação do meu quarto, lavar a minha roupa, ganhar um dinheirinho trabalhando na escola… Além disso, participei de grêmios culturais (inclusive de debates e de literatura), clubes de língua estrangeira (Inglês e Francês), corais e conjuntos musicais, viagens e excursões, atividades esportivas variadas… Cantei duas vezes, com o coral da escola, dirigido pelo Maestro João Wilson Faustini (hoje dileto amigo), no Teatro Municipal de São Paulo, em programas especiais de Páscoa e Natal. No JMC a gente podia fazer as provas sozinho no quarto. A escola confiava na gente e a gente correspondia: ninguém, que eu saiba, ousava verificar nada nos livros ou nos cadernos que estavam ali à mão. Para completar o ambiente educacional, os professores moravam no mesmo pitoresco campus que nós – e, portanto, tínhamos acesso a eles o tempo todo. Freqüentemente tomávamos café ou mesmo refeições em suas casas. E eles nos emprestavam livros, revistas, discos… Ganhei meu primeiro Webster’s (completo!) do Prof. Fernando Buonaduce, professor de Latim. Ali descobri a literatura francesa, sob a orientação firme de minha mestra favorita, Profa. Maria Elza Fiuza Teles, e a literatura de língua inglesa, neste caso sob a orientação da Profa. Jean Pemberton. Li vários livros no original, fora das exigências dos cursos, apenas por prazer. Ficam em minha memória a leitura de Alexis Zorba, de Nikos Kazantzakis, na tradução para o Francês do original em Grego Βίος και Πολιτεία του Αλέξη Ζορμπά, e The House of Seven Gables, no original em Inglês de Nathaniel Hawthorne. Mas, acima de tudo, os professores conversavam bastante conosco, sobre suas matérias, sobre nossos planos para o futuro, sobre a vida em geral. E, importante, nos levavam a sério, como se fôssemos “gente grande”, seus pares e iguais… Descobri ali que adolescentes e jovens tendem a comportar-se como gente grande quando são tratados como adultos.

No JMC minha educação deu um grande salto – mas nem tanto pelo conteúdo das aulas, que, em parte, com a exceção de algumas competências lingüísticas e lógicas e de alguns gostos pessoais, está devida e felizmente esquecido [3]. O importante, ali, era o ambiente de aprendizagem que a escola proporcionava nos momentos extraclasse. No JMC criei dívidas intelectuais que só sou capaz de registrar, nunca de pagar, até porque os credores são, em alguns casos, bem difusos. [4]

Passo rápido pela educação de nível pós-secundário – porque, ao terminar o curso secundário, os meus interesses básicos estavam basicamente definidos… Depois do Clássico cursei Teologia, em Campinas, no Seminário da Igreja Presbiteriana do Brasil (também freqüentado pelo Rubem Alves alguns anos antes), e em São Leopoldo, na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (onde as aulas, em 1966, eram ainda em Alemão). Não concluí o curso de Teologia no Brasil. O autoritarismo político se refletia dentro da Igreja Presbiteriana (embora não na Igreja Luterana – mas para estudar lá não tinha apoio eclesiástico e, por conseguinte, financeiro). Só fui completar o curso de Teologia nos Estados Unidos, no Seminário Teológico de Pittsburgh (Pittsburgh Theological Seminary), da Igreja Presbiteriana, onde também fiz o Mestrado em História do Pensamento Cristão (com ênfase na parte final da Idade Média, na Renascença e na Reforma). Meu desempenho no Mestrado me facilitou o acesso ao Doutorado na Universidade de Pittsburgh (University of Pittsburgh), na área da Filosofia do século XVIII – o Iluminismo. Meus amigos, Revs. Gordon E. Jackson, então em Pittsburgh, e Aharon Sapsezian, então em São Paulo, tornaram possíveis meus estudos nos Estados Unidos.

Viver no exterior durante sete anos e estudar numa universidade estrangeira de renome e tradição (fundada no século XVIII) envolveu vários aprendizados importantes. Nesse período meu foco principal de interesse passou a se concentrar em questões filosóficas, especialmente as epistêmicas e políticas, que, para mim, se dividiam em questões mais teóricas (o que podemos conhecer e como?) e em questões de cunho mais prático (como devemos viver, no plano individual, e nos organizar como sociedade, no plano coletivo, e por quê?).

Concluído o Doutorado, em 1972, dei aulas de Filosofia, durante dois anos, na Universidade Estadual da Califórnia (California State University), em Hayward, e nas Faculdades Integradas Claremont (Claremont Colleges), em Claremont, ambas as cidades na Califórnia. No último caso, fiquei lotado no Pomona College. As disciplinas que ministrei nessas duas instituições incluíram Metafísica, Teoria do Conhecimento, Ética, Filosofia Política, Lógica… O básico de um curso Introdução à Filosofia, só ficando de fora a Estética. Aprendi bem mais filosofia dando aulas do que assistindo a elas…

Em 1974 vim para a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), como professor de Filosofia – mas acabei na Faculdade de Educação, responsável pela disciplina Filosofia da Educação, que eu nunca havia cursado, muito menos lecionado. Na realidade, nunca havia estudado Educação formalmente, antes de vir para a UNICAMP, e nunca fiz um curso sequer na área depois – o que, hoje percebo, foi uma enorme vantagem. Os cursos superiores na área da Educação são em geral muito ruins – aqui e lá fora. Fiz trinta e dois anos e meio de UNICAMP em 2006 e me aposentei, com grande alívio, ao final do ano.

A vida acadêmica me ensinou bastante – mas também me cansou muito rápido… As comunidades universitárias do Brasil, com algumas honrosas exceções, e com a exceção de algumas áreas dentro das demais, são guetos esquerdizantes e socializantes voltados para a doutrinação político-ideológica, não raro de natureza claramente partidária. Do ponto de vista pedagógico, elas deixam muito a desejar – apesar de pretensiosas. Os anos na UNICAMP me serviram de inspiração – totalmente negativa, é evidente – para as idéias de um livro que comecei a escrever em 2001 e ainda não terminei… (embora erroneamente achasse que tinha terminado em Setembro de 2002). Aos leitores atentos deste blog se torna desnecessário sublinhar os meus pontos de discordância com a visão de educação que é, eu diria, quase hegemônica na Faculdade de Educação da UNICAMP e, até certo ponto, nas demais instituições congêneres do país. Essa visão só não foi totalmente hegemônica, no caso da Faculdade de Educação da UNICAMP, durante a maior parte do tempo em que lá estive, em virtude da existência de honrosas exceções ao catecismo vigente, especialmente dentro da área de Filosofia do Departamento de Filosofia e História da Educação, área em que estive lotado todos esses anos. Hoje essas exceções estão todas aposentadas, de modo que a hegemonia da esquerda foi finalmente alcançada.

No início da década de oitenta, quando era Diretor da Faculdade de Educação da UNICAMP, aconteceram alguns eventos que ensejaram um acréscimo especial aos meus interesses. Em 1981 oito diretores de faculdades ou institutos da UNICAMP, eu entre eles, todos nós candidatos a Reitor no (que eu saiba) primeiro processo democrático de escolha de Reitor tentado em uma universidade brasileira, fomos surpreendidos com nossa exoneração do cargo por uma Portaria do Reitor publicada em uma edição de sábado do Diário Oficial no mês de Outubro. Eventualmente consegui retornar ao meu cargo (no início de Dezembro) por força de uma decisão judicial, mas o episódio me fez dolorosamente consciente do fato de que a única coisa que eu realmente sabia fazer era dar aula em universidade… Se essa porta se fechasse… Os tempos ainda eram de ditadura. A partir daquele momento resolvi que, ao lado de minha vida acadêmica, teria sempre alguma atividade externa. Essa decisão deu uma direção totalmente diferente à minha vida.

Em decorrência dessa resolução, decidi em 1982 comprar um computador e aprender a fazer alguma coisa útil com ele. No artigo anterior que publiquei neste blog esclareço a gênese de meu interesse em computadores. Comprei um Commodore 64 – aparentemente um dos primeiros lançados no mercado americano… Em seguida, ainda naquele ano, criei, com alguns colegas da Universidade (Maurício Prates, Saul d’Ávila, Paul Shepard, José Eustáquio da Silveira e Silva), uma empresa de treinamento e consultoria e decidi que iria me tornar pequeno empresário na área de treinamento e consultoria. A empresa existe até hoje, sob a batuta do Saul d’Ávila e seus filhos. Vendi-lhe minha parte há muito tempo. Ainda sou pequeno empresário até hoje – na verdade, hoje em dia, mais micro do que pequeno empresário. Aprendi muito nesse ofício. Às vezes de forma muito difícil, dolorida e até mesmo financeiramente onerosa. Minha desilusão com pessoas que considerava amigos, em alguns casos melhores amigos, foi quase total — e marcou indelevelmente a minha vida posterior.

Mesmo dentro da Universidade, quando voltei para o meu cargo de Diretor da Faculdade da Educação da UNICAMP em 1981, resolvi acrescentar alguns novos interesses aos já antigos. Criei, em 1983, junto à Reitoria, o Núcleo de Informática na Educação (NIED), primeiro (que eu saiba) órgão interdisciplinar de pesquisa aplicada nessa área dentro de uma universidade brasileira. O NIED elaborou e submeteu ao Programa EDUCOM, coordenado pela Secretaria Especial de Informática, FINEP e MEC, o projeto da UNICAMP, que oportunamente foi um dos cinco selecionados para financiamento e implantação a partir de 1984. Coordenei o NIED e o Projeto EDUCOM da UNICAMP até 1986. Mas isso tudo está narrado em mais detalhe no artigo anterior neste blog.

Contingências políticas dentro e fora da UNICAMP me levaram a ser colocado à disposição do governo do Estado de São Paulo, de 1986 a 1990, para dirigir, primeiro, o Centro de Informações Educacionais da Secretaria da Educação e, depois, o Centro de Informações de Saúde da Secretaria da Saúde. Nessa última função acabei me tornando consultor junto à Organização Pan-Americana da Saúde (Pan-American Health Organization), em Washington, e à Organização Mundial da Saúde (World Health Organization), em Genebra. Aprendi muito sobre informática, saúde e consultoria nesse trabalho.

De volta à UNICAMP, estabeleci uma parceria da minha empresa (MindWare) com a Microsoft, em 1998, para a criação do site EduTec.Net e da comunidade virtual de aprendizagem colaborativa EduTec [5]. A parceria durou cerca de quinze anos, até 2013. Em decorrência dessa parceria acabei sendo indicado pela Microsoft para participar de um programa que ela estava propondo ao Instituto Ayrton Senna, em 1999: o “Sua Escola a 2000 por Hora”.

Ao longo de todo esse tempo minha identidade profissional foi se construindo: minha identidade mais especulativa, como homo academicus, especificamente como filósofo, vem, há bem mais de 25 anos, convivendo com minha identidade mais prática, como homo actionis, empresário e consultor. É a junção da vita contemplativa e da vita activa de que falavam os filósofos medievais… Sem essa junção nunca teria chegado aos meus interesses e aos meus pontos de vista atuais!

NOTAS

[1]      No Discurso citei o poeta Antonio Zoppi, de Americana. Diz ele, em uma simples quadra: “Sapiência não se esmola, deve ser adquirida: na doce vida da escola ou na acre escola da vida”. Para quem se interessar, o juvenil discurso pode ser lido, em sua inteireza, aqui neste blog, em http://liberalspace.net/2013/10/24/discurso-de-formatura-1963/ .

[2]      Só muito tempo depois vim a ter contato com as idéias de “Diversão Difícil” (“Hard Fun”) e de “Brincadeira Séria” (“Serious Play”), a primeira proposta e a segunda sugerida por Seymour Papert, que, em muitos aspectos, se tornou um guru meu. Ambas as idéias foram adotadas pela Lego, empresa com a qual acabei me associando em 2010. Vide os artigos de Papert: “Hard Fun”, in http://www.papert.org/articles/HardFun.html, e “Does Easy Do It? Children, Games and Learning”, in http://www.papert.org/articles/Doeseasydoit.html (ambos consultados em 25/02/2011). Vide também http://wn.com/Lego_Serious_Play (consultado em 25/02/2011). Uma busca por “Serious Play” na Web vai gerar inúmeros resultados.

[3]      Michael Hammer, em seu livro Beyond Reengineering: How the Process-Centered Organization is Changing our Work and our Lives (Harper Business, New York, 1996), p. 237, caracteriza a educação como “aquilo que permanece conosco depois de nos esquecermos do que nos foi ensinado”…

[4]      Vide meu artigo “O JMC nos deu educação”, em duas versões, no meu blog Instituto JMC, que criei e mantenho: https://institutojmc.wordpress.com/2010/03/07/o-jmc-nos-deu-educacao/ e https://institutojmc.wordpress.com/2010/03/07/o-jmc-nos-deu-educacao-%E2%80%93-no-sentido-mais-pleno-do-termo/. O Instituto “José Manuel da Conceição” foi fechado pela Igreja Presbiteriana no auge da ditadura, em 1970. Nunca me conformei com isso – em especial porque as razões para o fechamento nunca foram divulgadas, sendo, aparentemente, um dos segredos mais bem guardados nos porões da Igreja Presbiteriana do Brasil.

[5]      A comunidade virtual e o site não mais existem, infelizmente, por falta de tempo para cultiva-los como devem ser cultivados.

Transcrito aqui em São Paulo, 8 de Fevereiro de 2015

Tecnologia e Educação no Brasil: Um Recorte Biográfico

1. Os Primórdios

Comecei a me interessar pelo papel que a tecnologia pode desempenhar, e tem desempenhado, na educação — mais particularmente, na aprendizagem — a partir de acontecimentos fortuitos que só em retrospectiva se entrelaçam.

Transcrevo aqui passagens de um artigo que escrevi quando da morte de Steve Jobs e publiquei, primeiro, no Blog da Editora Ática, e, depois, aqui, no meu próprio blog, Liberal Space (as partes em colchetes foram acrescentadas agora, 7 de Fevereiro de 2015):

“Meu primeiro contato com um microcomputador remonta a esses tempos: conheci um Apple II por volta de 1979, através de um colega da UNICAMP, especialista em Linguística Computacional (algo que eu nem sabia que existia) [Frank Roberts Brandon era o nome dele. Infelizmente, morreu cedo]. O equipamento em si me chamou a atenção, mas quando ele me demonstrou as aplicações da linguagem de programação ProLog (Programming in Logic) para o aprendizado de Lógica, eu me encantei. Ali na hora tomei a decisão de comprar um equipamento daqueles quando pudesse… [Comprei um Commodore 64 um ano depois, numa viagem aos EUA, e, logo depois, um clone brasileiro do Apple II, feito pela Unitron. Interpretadores de ProLog tive vários, mas gostava mais do Borland Turbo Prolog]. Até hoje, cerca [mais] de 30 anos depois, ainda guardo o meu clone brasileiro do aparelho fabricado pela Unitron. [E em minha biblioteca pessoal possuo mais 30 livros sobre ProLog.]”

Na época eu era Diretor Associado da Faculdade de Educação da UNICAMP. No ano seguinte, em Abril de 1980, assumi a direção da Faculdade de Educação da UNICAMP, no auge dos meus 37 anos. Uma das primeiras coisas que me caiu em mãos foi um pedido de apoio financeiro feito à FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos) assinado por meu melhor amigo, na ocasião, Raymond Paul Shepard, especialista em psicologia cognitiva, e meu colega na Faculdade de Educação (ele era membro do Departamento de Psicologia da Educação, eu do Departamento de Filosofia da Educação da faculdade). O projeto era assinado também por Fernando Curado, professor de computação no que era então Departamento de Computação do Instituto de Matemática, Estatística e Ciência da Computação, outra unidade acadêmica da UNICAMP. (Hoje o departamento é um instituto com vários departamentos).

Interessei-me pelo assunto do projeto: o papel que o computador pode desempenhar na aprendizagem da criança. Os dois pesquisadores se propunham investigar o uso da linguagem de programação LOGO, criada por Seymour Papert, então do Media Lab do Massachusetts Institute of Technology (MIT), na aprendizagem e no desenvolvimento cognitivo de crianças relativamente pequenas — na fase anterior ao que hoje se chama de Fundamental II da Educação Básica. Confesso que fiquei encantado com o que li.

Foram esses os meus dois primeiros contatos com o tema “Educação e Tecnologia”. Primeiro, envolvendo ProLog; depois, LOGO. Em 1979 e 1980.

A partir daí comecei a conversar diariamente sobre o assunto com o Paul (corríamos juntos diariamente na hora do almoço pela Cidade Universitária), comecei a mergulhar na literatura, e li o livro Mindstorms: Children, Computers and Powerful Ideas, de Papert (que acabava de ser publicado em 1980). Achei o livro fascinante, em especial porque, ao tratar do potencial do computador, e da linguagem LOGO em particular, na aprendizagem da criança, Papert descortinava uma pedagogia diferente, centrada no aluno, na aprendizagem, na descoberta, na vida, no mundo e não (como na pedagogia convencional) no professor, no ensino, na instrução, na aula, na escola. . .

Comecei a caçar gente interessada nos dois assuntos: computadores na educação (particularmente na aprendizagem) e pedagogias não-convencionais (ou, como se prefere hoje, pedagogias inovadoras).

Em 1981 o MEC — Ministério da Educação (então Ministério da Educação e Cultura) resolveu, em parceria com a SEI — Secretaria Especial de Informática, fazer uns encontros sobre Informática na Educação (forma em que o assunto acabou sendo batizado no Brasil). O primeiro foi em Brasília, em Agosto de 1981, e o segundo em Salvador, um ano depois. Participei apenas do segundo deles (pois quando o primeiro aconteceu eu estava como Professor Visitante na Bowling Green State University, em Bowling Green, OH, sobre História da Educação Brasileira) e ali, naquele encontro, fiquei conhecendo muitos dos que se tornaram pioneiros nessa área no Brasil, oriundos de outras universidades brasileiras: Samuel Pfromm Neto (USP, depois PUCCAMP), falecido em 2012, Lea Fagundes e Lucila Santarosa (UFRGS), Fernando José de Almeida (PUC-SP), Paulo Gileno Cysneiros (UFPE), Lydineia Gasmann e Riva Roitman (UFRJ), Antonio Mendes Ribeiro (UFMG), etc. Da UNICAMP foram, além de mim, Vilmar Faria (do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), falecido em 2001 (quando era assessor do FHC), Cecília Callani (depois Baranauskas) e Heloísa Vieira da Rocha (ambas do Instituto de Matemática, Estatística e Ciência da Computação), e, da Faculdade de Educação, além de mim, Amélia Americano Domingues de Castro e Afira Vianna Ripper.

Em decorrência desses encontros foi lançado em 1983 o Programa EDUCOM, que fez um chamado às universidades brasileiras para que submetessem projetos na área de Informática na Educação. Vinte e seis projetos foram submetidos. Eu coordenei a elaboração do projeto da UNICAMP, que contou com a participação dos nomeados atrás, da Universidade. Quando saiu o resultado, cinco universidades tiveram seus projetos aprovados: quatro federais (UFPE, UFMG, UFRJ e UFRGS) e uma estadual (nós, da UNICAMP). Recebemos financiamento da FINEP para tocar o projeto, que coordenei de 1983 a 1986, quando fui trabalhar na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (mediante autorização e afastamento da UNICAMP).

Para submeter e, depois, implementar o Projeto EDUCOM da UNICAMP, propus ao então reitor, José Aristodemo Pinotti, em 1983, a criação de um centro interdisciplinar de pesquisa na área de Informática na Educação. Dei-lhe o nome de Núcleo de Informática na Educação (NIED). Ele foi efetivamente criado ainda em 1983, e eu fui designado seu Coordenador, função que ocupei até 1986, e da qual me desliguei pela razão já indicada. O NIED existe até hoje. Sucedeu-me na Coordenação do NIED o professor José Valente, que, em 1986, retornava à UNICAMP depois de cerca de sete ou oito anos no exterior, fazendo seu Doutorado.

No NIED, enquanto eu era coordenador, fizemos parceria com duas escolas de Campinas e uma de Americana, traduzimos Mindstorms para o Português (sendo a principal responsável pela tradução Beatriz Bittelman, que trabalhava no NIED), e desenvolvemos uma versão da Linguagem LOGO para o Sistema Operacional CP/M dos computadores I-7000 da Itautec (sendo responsáveis por esse projeto principalmente Heloísa Vieira da Rocha e Cecília Callani Baranauskas, que também haviam se integrado ao NIED).

Historiei em bem mais detalhe o processo de criação do EDUCOM no primeiro capítulo, que teve o título “O Computador na Educação”, que escrevi para o livro Educação e Informática: Projeto EDUCOM – Ano I, publicado pela Fundação Centro Brasileiro de Televisão Educativa (FUNTEVÊ), Rio de Janeiro, 1985.

Antes disso, porém, escrevi um artigo, em 1983, mais de trinta anos atrás, do qual muito me orgulho até hoje: “Computadores: Máquinas de Ensinar ou Ferramentas para Aprender”. O artigo foi publicado na revista Em Aberto, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), Brasília, DF, 1983.

Nesse artigo esboço, de forma tão clara quanto me foi possível, naquela época, duas filosofias da educação: uma, centrada no professor, no ensino, nos conteúdos programáticos a serem transmitidos pelo professor ao aluno; a outra, centrada no aluno, na aprendizagem, nos processos de investigação e descoberta a serem desenvolvidos pelo aluno com o apoio e a facilitação de terceiros (em especial, na escola, do professor). A primeira dessas duas filosofias da educação nos leva a ver o computador como uma “Máquina de Ensinar”; a segunda, como uma “Ferramenta de (para) Aprender”.

Os defensores no século 20 da primeira filosofia da educação vieram a criar a funesta proposta de “Instrução Programada”, na época inspirada pelo behaviorismo de B. F. Skinner, e viram no computador a solução de todos os seus problemas. Propuseram, imediatamente, a não menos funesta “Computer-Assisted Instruction”, em que o computador não passa de uma Máquina de Ensinar autônoma — ou uma máquina que ajuda o professor a ensinar, vale dizer, que assiste o professor no mister de ensinar.

Os defensores no final do século 20 da segunda filosofia da educação, com a qual eu me identifiquei inteiramente (e ainda me identifico), uniram-se atrás de Seymour Papert na defesa das diversas formas de “Computer-Mediated Learning”, entre as quais a programação do computador (usando LOGO ou outras linguagens de programação) parecia uma alternativa bastante interessante. Para Papert, que nisso seguia Jean Piaget, com quem havia estudado em Genebra, não se aprende, significativamente, quando se é objeto de um processo de ensino de terceiros. Aprende-se, significativamente, quando se encontra um problema que parece intrigante, instigante, e, por isso, interessante, e se propõe a resolve-lo. O enfrentamento de problemas intrigantes, instigantes e interessantes desemboca na descoberta ou na invenção de estratégias para resolve-lo — e essas estratégias em regra são aplicáveis a inúmeros outros contextos. Programar um computador para que ele faça alguma coisa útil e interessante é um desses megaproblemas. O processo de programa-la é, na verdade, o processo de ensinar a ele como fazer o que se pretende que ele faça. Quando o aluno programa o computador, portanto, ele não está sendo vítima ou paciente de um processo de ensino de terceiros, mas está sendo o sujeito ativo de um processo de ensino voltado para o computador… Para ensinar o computador a fazer algo, é preciso que o aluno descubra ou invente como se faz essa coisa e encontre formas de transmitir o seu saber ao computador usando linguagem (vocabulário e sintaxe) que o computador consiga interpretar. . .

Até hoje me entusiasmo ao relatar essa inversão de processo, essa verdadeira “Revolução Copernicana” que Papert, inspirado por Piaget, propôs em seu livro de 1980 (e mesmo antes, quando estava ruminando suas ideias).

2. A Evolução das Ideias

A melhor forma de aprender, diz um provérbio pedagógico tradicional, é ter de ensinar. Mas só que quem aprende, dentro dessa visão, é quem ensina — não quem é vítima ou paciente do processo de ensino, o aluno. . .

Qual a saída? Foi nesse contexto que descobri, primeiro Ivan Illich, depois Paulo Freire, que, no exílio, foi um grande amigo de Illich.

Abrindo um parêntese a propósito de Paulo Freire, no final de 1979, eu, ainda como Diretor Associado da Faculdade de Educação, me empenhei, direta e pessoalmente, em trazer Paulo Freire para a UNICAMP, iniciativa proposta inicialmente por meu amigo Moacir Gadotti e assumida pelo meu também amigo Antonio Muniz de Rezende, Diretor da faculdade, do qual eu era Diretor Associado. Paulo Freire ainda estava exilado em Genebra (onde convivia com meu grande amigo Aharon Sapsezian) e a Lei da Anistia acabava de ser aprovada. Quase perdi meu cargo pelo meu envolvimento (e por uma certa dose meio exagerada de entusiasmo e “estabanamento” de minha parte) — e, no final de 1979 e início de 1980, quando fui unanimemente escolhido pela comunidade da Faculdade de Educação para substituir Rezende na direção (pois ele concluía seu mandato de quatro anos), minha nomeação foi engavetada durante quatro meses pela Reitoria, até que a pressão da comunidade se fez sentir e o Reitor me nomeou para o cargo e Paulo Freire acabou vindo para a Faculdade de Educação da UNICAMP, já no meu mandato (embora não tenha ficado conosco em tempo integral: tivemos de dividi-lo com a PUC-SP). Fim do parêntese.

Ivan Illich propôs, em seu livrinho Deschooling Society, de 1971, traduzido para o Português como Sociedade sem Escolas, uma sociedade em que não há escolas nem professores profissionais, mas em que todos ensinam uns aos outros e todos aprendem uns com os outros. A hoje famosa Escola da Ponte (mas que só vim a conhecer depois que o Rubem Alves a revelou) pratica isso. Nela há cartolinas nas paredes com dois cabeçalhos diferentes. Numa cartolina se inscrevem aqueles que desejam ter ajuda no aprendizado de algo. O cabeçalho é algo assim: “Preciso de ajuda para aprender . . .” (e lista-se aquilo que se deseja aprender) . Na outra se inscrevem aqueles que se dispõem a ajudar os outros a aprender algo que eles conhecem ou sabem fazer bem. O cabeçalho é algo assim: “Estou disponível para ajudar quem queira aprender . . .” (e lista-se aquilo que pode ser o objeto de desejo, em termos de aprendizagem, do outro). A escola é o ambiente em que se encontram uns e outros. O modelo de Illich era mais ou menos isso, em última instância, só que não dentro de uma escola, mas no âmbito da sociedade como um todo.

Paulo Freire, em seu livro Pedagogia do Oprimido, de 1968, que é o local em que ele sistematiza sua crítica da “educação bancária”, chega a ridicularizar a noção de que o processo de aprendizagem é algo como uma quantia em dinheiro que se transfere da conta (ou da cabeça) do professor para a conta (ou a cabeça) do aluno, processo em que o aluno é totalmente passivo, mero recipiente dos depósitos de informação e conhecimento que lhe faz o professor.

Seguindo a intuição do provérbio popular (e de Papert, de quem também se tornou amigo), Freire propôs uma ideia genial e revolucionária nesse seu livro: “Ninguém educa ninguém”. Chocante para quem lê pela primeira vez e se acredita um educador. Mas ele acrescenta: “Tampouco alguém se educa sozinho”. E arremata: “Nós nos educamos uns aos outros, em comunhão, mediatizados pelo mundo”.

Esse insight me pareceu genial… Melhor do que aprender ensinando algo bobo (desenhar uma casinha, por exemplo) a uma máquina burra e inflexível (que é o caso do computador), é aprender ensinando algo interessante a pessoas interessadas, inteligentes e flexíveis e ser objeto do ensino delas em áreas que nos interessam e em que elas sabem mais do que nós. Esse me pareceu ser o modelo (algo simplificado) proposto por Illich e aquilo que Freire designou como “comunhão” (interação, diálogo, troca de ideias) “mediatizada pelo mundo”.

A essas alturas a tecnologia disponível já havia avançado o suficiente para que pudéssemos criar “grupos de discussão” na Internet — comunidades virtuais dedicadas (entre outras coisas) a aprender algo de interesse, através da interação, do diálogo, da discussão, vale dizer, da comunhão…

Meu primeiro ensaio nessa área foi criar uma dessas comunidades virtuais numa rede chamada BitNet, que antecedeu, no Brasil, a chegada da Internet. A comunidade se chamava InfEdInformática e Educação. O experimento foi limitado mas relativamente bem sucedido até que meu amigo Valdemar W. Setzer, arqui-inimigo do uso da tecnologia por pessoas de menos de 15-16 anos, conseguiu implodir a comunidade. Minha inexperiência na moderação dela me impediu de bloquear o processo de implosão em tempo.

Mais tarde, em 1998, com apoio da Microsoft, criei, agora na Internet (Yahoo! Groups), outra comunidade: EduTec.NetRede de Educação e Tecnologia. Essa durou bem mais tempo, chegou a ter quase 1.500 participantes, e foi unanimemente considerada uma experiência bem sucedida. Há pelo menos uma dissertação de Mestrado e um trabalho de fim de Curso de Especialização escritos sobre ela. Fechei-a em 2001 quando ela começou a ser explorada para fins políticos e ideológicos por alguns de seus membros.

Em decorrência dessa experiência com a EduTec.Net acabei por ser indicado, pela Microsoft, para o Instituto Ayrton Senna, que montava, com apoio da Microsoft, um programa de formação de professores e alunos para uso da tecnologia no processo de aprendizagem: o Programa Sua Escola a 2000 por Hora (que hoje se chama, creio, Escola Conectada).

No Instituto Ayrton Senna fui incumbido por minha amiga Adriana Martinelli (hoje Carvalho), de criar um modelo de programa de formação a distância, usando a Internet. Foi nessa ocasião que, em discussão com a equipe do Instituto, criei a expressão “Experiência de Aprendizagem Colaborativa (EAC)” para dar nome à coisa. Não queria chamar o programa de formação de uma série de “cursos”, porque curso imediatamente chama à mente as ideias de conteúdo, professor e ensino. A expressão escolhida enfatizava o fato de que a ênfase estava na aprendizagem, não no ensino, e que a aprendizagem deveria se dar de forma colaborativa, isto é, envolvendo interação, troca de ideias, diálogo, discussão.

Com o tempo a minha visão foi se expandindo e tornando mais abrangente.

Um grande valor da educação que eu encontrava e admirava em Sócrates estava no fato de que ela era personalizada (além de dialógica). Ou seja: o diálogo de Sócrates não era pautado por ele, mas por seu interlocutor. Este vinha a Sócrates com um problema ou uma questão e a discussão partia do interesse dele, não dos interesses de Sócrates. O grande filósofo ateniense se via, modestamente, como uma parteira, que ajuda os outros a dar à luz (ou a construir, para usar uma noção mais atual) conceitos (concepções!) e ideias, mas que é, ela própria, estéril . . .

Assim, concluí que não basta que a aprendizagem seja colaborativa: ela também precisa ser personalizada, isto é, ancorada nos interesses (nos projetos e sonhos!) do aprendente. Assim, mudei o acrônimo de EAC para APEC — Aprendizagem Personalizada e Colaborativa. 

Mas a experiência de 1998 me mostrou que um ambiente totalmente aberto e desestruturado frequentemente leva a resultados não desejados. Para que aprendamos de forma efetiva, isto é, eficaz (aquilo que de fato queremos aprender) e eficiente (sem desperdício de recursos, dos quais o tempo talvez seja o mais importante), é necessário que os ambientes de aprendizagem, em especial os virtuais, sejam estruturados para esse fim e que as atividades desenvolvidas sejam planejadas para esse fim. Assim, completei o acrônimo, que se tornou APECAVE — Aprendizagem Personalizada e Colaborativa em Ambientes Virtuais Estruturados.

3. O Amadurecimento das Ideias

Meu trabalho como consultor da Microsoft e do Instituto Ayrton Senna ao longo de cerca de 15 anos (1998-2013) me comprovou uma tese que eu havia proposto mais de dez anos antes de começar a trabalhar nessas duas fantásticas instituições.

A tese era a seguinte: O maior impacto que as tecnologias digitais vão ter na educação virá através do atacado, isto é, por meio das mudanças que essas tecnologias vão tornar possíveis na sociedade, não através do varejo, isto é, por meio dos usos específicos da tecnologia dentro da escola e, em especial, na sala de aula.

Eu enunciei essa tese pela primeira vez num livro que publiquei em 1987 em parceria com o Waldemar V. Setzer, que teve o título O Uso de Computadores em Escolas: Fundamentos e Críticas (publicado pela Editora Scipione e lançado pela Livraria Cultura num concorrido coquetel naquele ano).

Uma das mudanças mais chocantes que essas tecnologias produziram na sociedade foi transforma-la de uma condição de penúria para uma condição de superabundância na área de informações e conhecimentos. Até o aparecimento e a popularização das tecnologias digitais, a informação e o conhecimento eram escassos e o acesso a eles, difícil e trabalhoso. Hoje vivemos, a bem dizer, soterrados debaixo de informações e conhecimentos e o acesso a essa quantidade quase infinita de informações e conhecimentos está na ponta de nossos dedos, sendo fácil, rápido e qualquer coisa menos penoso.

Tradicionalmente, o papel das escolas e dos professores era, de certo modo, preservar e custodiar o montante relativamente pequeno de informações e conhecimentos considerados valiosos e transmiti-lo ou entrega-lo para as gerações futuras.

Mas hoje essas informações e esses conhecimentos, em quantidades antes inimagináveis, estão preservados e são custodiados fora da escola, e ninguém precisa transmiti-los a ninguém, porque eles estão disponíveis “na nuvem” para quem tiver interesse em busca-los e deles se valer.

O problema maior, hoje, não é, a preservação e a transmissão desse legado, mas, sim, o que se pode fazer com tamanha quantidade de informações e conhecimentos.

Em outras palavras: o foco deixa de estar no saber e passa para o saber fazer — ou seja, deixa de estar em informações e conhecimentos e passa para habilidades e competências.

O importante, hoje, não é o que devo saber, mas o que devo saber fazer, que habilidades e competências devo desenvolver para definir e realizar meu projeto de vida, para fazer de mim aquilo que eu posso, quero e devo me tornar.

John Dewey já havia prenunciado esse tema. Mas hoje ele se tornou imperativo.

4. É Possível Personalizar a Educação para Todos?

Estou totalmente convicto de que nenhum educador sério e em sã consciência, podendo escolher entre, de um lado, uma educação personalizada (ajustada aos interesses e às necessidades de cada um), significativa, autonomizadora, emancipadora, libertadora, e, de outro lado, uma educação de massa (em que um tamanho deve servir para todo mundo), sem sentido, automatizadora, enquadradora, escravizadora, vá escolher a segunda.

O que acontece é que, embora tenha preferencia pelo primeiro tipo de educação, a maior parte dos educadores acha que não há como, realisticamente, disponibiliza-la para todos, a educação de massa sendo, lastimavelmente, a única forma viável de educar.

Tenho defendido a tese, nos últimos quatro ou cinco anos, de que as redes sociais tornadas possíveis pela tecnologia apresentam um modelo de educação personalizada para todos (sem massificação).

Há muito trabalho ainda a ser feito para que as redes sociais se tornem verdadeiramente educativas. Quando se tornarem, teremos alcançado o paradigma da sociedade educativa — teremos adotado a pedagogia socrática em escala.

É neste ponto que me encontro hoje em relação à questão da tecnologia e da educação.

O desafio não é nem de longe tecnológico. É pedagógico. Ele não exige competência técnica no manejo da tecnologia. Ele exige criatividade e inteligência no âmbito da pedagogia.

5. Um Mundo Diferente é Possível na Educação

Ontem tive prova cabal de que um mundo diferente é possível na educação. Assisti a uma palestra inspiradora e desafiadora do professor Manoel Andrade Neto.

A aparência do Manoel já é, como dizem os americanos, um sopro de ar fresco. Ele não é um engravatado bonito e bem nutrido que acabou de fazer seu MBA numa escola de elite e que se veste na moda. É um senhor de 55 anos, magrinho, de ar despretensioso, que se veste e fala como a gente do povo. Mas quando ele começa a falar, você não quer mais parar de ouvir…

Manoel é professor de Química na Universidade Federal do Ceará (UFC), onde fez seu bacharelado, mestrado e doutorado. Mas não foi lá que ele aprendeu o que sabe, porque lá, e em nenhuma outra universidade que eu conheço, não se aprende o que ele aprendeu. O que aprendeu ele aprendeu na vida — “na acre escola da vida”, não “na doce vida da escola”, como um dia escreveu um poeta aqui do lado, de Americana (Antonio Zoppi).

O projeto inicial dele teve origem décadas atrás, lá no sertão do Ceará, num lugar chapado Cipó, na cidade de Pentecoste. Já ouviu falar desses lugares? Eu não havia ouvido — e, sem saber, era mais pobre por não ter ouvido. A ideia do projeto surgiu quando o Manoel nem sequer sonhava com a ideia de ir para uma universidade (que ele nem sabia direito o que era). O projeto se chamava PRECE (nome que sugere que o Manoel tem raízes “crentes”, o que de fato é verdadeiro): “Projeto Educacional Coração de Estudante” (com a devida permissão do Milton Nascimento). Depois o nome se alterou um pouco, mas o acrônimo permaneceu: “Programa Educacional por Células de Estudo”. Deem uma olhada no site http://prece.ufc.br/.

Para minha surpresa, a Fundação Mary Harriet Speers, de minha igreja, é uma das apoiadoras do projeto, sendo essa uma das razões pelas quais o Manoel foi convidado a falar na Faculdade de Teologia da igreja ontem à tarde. Até hoje também já têm apoiado o projeto dele a Fundação Lehman, o Instituto Ashoka, a Brazil Foundation… E o Manoel foi fazer seu pós-doutorado no Cooperative Learning Institute (http://www.co-operation.org), com os irmãos David e Roger Johnson.

A paixão do Manoel é a “aprendizagem cooperativa”. (Ele prefere “cooperativa” a “colaborativa” e tem boas razões para isso). Mas suas ideias mestras são proatividade, protagonismo, autonomia, emancipação, liberação… A definição de um projeto de vida e a construção de uma história de vida são recursos de que se vale.

Depois dos milagres que o Manoel conseguiu no interior do Ceará sua universidade se interessou pelo projeto, a Secretaria da Educação se interessou pelo projeto… Mas o que ele fez ele fez de baixo pra cima, começando das raízes para, oportunamente, colher os frutos.

Por enquanto o projeto não usa tecnologia — e mesmo assim tem se expandido “viralmente”. Fiquei sonhando com a possibilidade de transplantar o que ele fez e está fazendo para o mundo virtual…

Imagine the possibilities!

Manoel, obrigado pela lição de vida de ontem. Você ontem me fez lembrar de meu amigo Antonio Carlos Gomes da Costa. Também um educador de primeira, fora do mundo acadêmico, desprezado pelos educadores profissionais, ignorado pela mídia educacional. Antonio Carlos já se foi. Você, por favor, se cuide.

Em São Paulo, 7 de Fevereiro de 2015

A vida é um enigma — ou, as boas risadas de Deus

A vida é um enigma.

Nos últimos dias dois amigos meus se foram — João Carlos Giampietro, que conheci através da Dell e do Instituto Paramitas, e Greg Butler, que conheci através da Microsoft. Um (Greg) bem mais chegado do que o outro. E um (Greg, de novo) de forma bem mais chocante do que o outro. Um de mal súbito — provavelmente enfarto — e o outro (ainda o Greg), em acidente: atropelado por um trem em Londres. Ambos, de qualquer maneira, eram (ao morrer) BEM mais novos do que eu (hoje).

Se você for fazer seguro de vida e pedir cobertura para atropelamento por trem em Londres, provavelmente ganhará a cobertura de graça ou por menos de 0,01, tamanha a sua improbabilidade. A probabilidade de morrer atropelado por um trem em Londres provavelmente só é maior do a de morrer por abalroamento da residência por um avião cainte. Mas em Guarujá, no ano passado, o risco de morrer desta forma foi enorme, quando o avião que carregava Eduardo Campos caiu sobre um monte de casas e prédios de apartamentos. E o desastre poderia ter sido muito pior, se um dos edifícios altos tivesse sido atingido.

Também se foi, nos últimos poucos dias, uma amiga de longa data, a Tamiko Shimizu, irmã de meu grande amigo Takashi, de Santo André e do Instituto JMC (Jandira) — esta cerca de 13 anos mais velha do que eu, e, aparentemente, daquilo que chamamos de causas naturais: nada excepcional, só velheira.

Fico a me perguntar, em relação ao João Carlos e ao Greg: por que eles, e não eu, mais velho, e que já tive um enfarto, há 13 anos (e, evidentemente, sobrevivi, caso contrário não estaria aqui escrevendo estas mal traçadas)?

E me pergunto, em relação à  Tamiko: será que eu chego aos 83 anos com que ela morreu? Meu pai morreu com 78 completos, minha mãe com 84 (incompletos, mas chegando lá). Então, de alguma forma, tirante o enfarto, parece que não é de todo loucura imaginar que possa chegar aos 83.

Quando tive meu enfarto, no alto dos meus 58 anos, em 1 de Março de 2002, achei que, mesmo tendo sobrevivido à morte súbita que muitas vezes acompanha o enfarto (que, no caso, se torna fulminante), teria pouco tempo de vida pela frente. Meu cardiologista me disse que, se eu me cuidasse direito, e tomasse meus remédios como receitados, poderia chegar aos 90 com enfarto e tudo. Os remédios eu tomo religiosamente (eles são quase que a única coisa que eu trato de forma religiosa). Mas, exceto durante os dois primeiros anos depois do enfarto, não tenho me exercitado como devia, nem comido como os radicais sanitaristas recomendam: mato verde, mato amarelo, mato isso, mato aquilo. Mas reduzi (sem de todo abandonar) açúcar, massas, carnes. E procurei gerenciar o meu stress, conseguindo sucesso, em muitos casos (no trânsito, por exemplo — hoje dirijo muito tranquilo). Mesmo assim, acho difícil que chegue aos 90 — mas será que chego aos 83 da Tamiko? Teria mais 11,5 anos de vida, se chegar lá e, como ela, parar. Para um jovem, não parece muito. Mas, para mim, não é de desprezar. Por outro lado, o Niemeyer, que era uma chaminé ambulante e, tanto quanto sei, nunca fez um dia de exercícios em sua vida madura, e que, além de tudo, era ateu e comunista sem o menor resquício de dúvida no seu cérebro arquitetonicamente privilegiado, chegou aos 103. Vá entender.

Quem é crente, especialmente na vertente calvinista (especialmente na presbiteriana), tende a acreditar que as coisas não acontecem por acaso, que tudo é obra da divina providência — da qual haveria três modalidades: a providentia generalis (que cuida de todo o universo), a providentia specialis (que cuida dos seres humanos em geral) e a providentia specialissima (que cuida de nós, calvinistas convictos, os escolhidos e eleitos para a salvação eterna…).

Se eu tivesse morrido em 2002, quando do meu enfarto, teria morrido admitidamente agnóstico e, provavelmente, ateu. Mas, se tivesse sido escolhido e eleito por Deus, desde antes da fundação do mundo, teria morrido (segundo o calvinismo clássico mais radical) ateu e salvo. A minha salvação não dependia de nada que eu pudesse fazer (nem mesmo crer), nem deixar de fazer, mas apenas e tão somente da graça divina (sola gratia) que atua de forma inescrutável mas totalmente irresistível.

Segundo interpretações mais “amenas” (arminianas?) do calvinismo, quem sabe Deus me salvou da morte em 2002 (dentro da providentia specialis) para que eu tivesse uma segunda chance e me voltasse para ele, crendo, reconhecendo-me de novo como eleito… (dentro da providentia specialissima, ainda pela graça, mas envolvendo, necessariamente, pelo menos uma dose mínima de fé: pelo menos abrindo a boca para receber a graça…)… Para os calvinistas linha dura essa amenização já cheira a arminianismo ou semi-pelagianismo. Mas deixemo-los de lado, como certamente merecem.

Mas o que é a fé, nesse caso? É a crença que exclui toda e qualquer dúvida ou é deixar de resistir e abrir a porta para a esperança, é não desistir e voltar a buscar, mesmo sem certezas, mas apostando sempre (como sugeriu Pascal), confiando? “Eu creio, Senhor, mas ajuda-me em minha descrença” (“Lord, I believe; help thou mine unbelief”; Marcos/Mark 9:24, KJV).

Vá saber. Ou, quem sabe, só Deus sabe. De qualquer forma, vários dos meus amigos se têm ido e eu aqui ainda estou. Aguentando firme (mais ou menos). E, reconhecidamente, por enquanto. Enquanto Deus quiser, diz a religião e a teologia — e digo eu. Por mim, tudo bem — Deo volente. Ele tem querido até aqui. “Até aqui nos ajudou o Senhor” (1 Samuel 7:12). Parodiando o versículo que usei como base para meu discurso de formatura no Clássico em 1963, “Uns confiam em carros [médicos e remédios], outros em cavalos [exercícios, dietas e estilo de vida]; mas nós faremos menção do nome do Senhor, nosso Deus” (Salmos 20:7). Talvez a fé, em sua essência mínima, seja isso: reconhecer que nossos esforços só podem nos levar até certo ponto, e, que, se chegamos além dele, quem sabe é porque alguém, além de nós, o quis e para isso tramou. . .

Conheci o pai da Paloma quando ele e eu éramos crianças — ele mais criança do que eu, que sou mais velho do que ele cerca de uma mão de anos. Quem sabe, num daqueles encontros nossos, lá na Santo André (Parque das Nações) dos anos 50, Deus, que tudo vê, nos observando, guris que éramos, tenha decidido, em seus insondáveis decretos, que o mais velho iria um dia se casar com a filha do mais novo… Algo assim parecido com o que parece ter acontecido com algumas das figuras nas estórias do Velho Testamento.

O ser humano, acreditando-se livre, julgando ter livre arbítrio, vai tomando suas decisões, fazendo seus planos, vivendo sua vida. Faz isso, faz aquilo. Escolhe o namorado, noiva, casa… Se é crente, pede a orientação e a bênção de Deus, acha que está fazendo a vontade divina, mas nunca sabe com certeza (ou nunca deveria ter total certeza, como têm alguns)… Sabe-se apenas (ou assim se presume) que Deus, lá por trás, vai mexendo os seus pauzinhos, tramando o seu plano, sem que saibamos o que ele faz e qual é efetivamente o seu plano.

Um dia — foi 26/8/2004 — Deus tramou (assim acredito hoje) para que a Paloma e eu nos encontrássemos. Houve agentes intermediários, interpostos, como a Mary Grace Andrioli. Ambos, Paloma e eu, segundo tudo indicava na ocasião, estávamos bem casados (com outras pessoas) e nos acreditávamos felizes. Nenhum dos dois estava procurando encrenca ou buscando uma vida diferente.

A coisa não funcionou naquela ocasião (daquela que pode muito bem ter sido a perspectiva divina — eu acho que foi) e Deus tramou para que nos encontrássemos de novo — dessa vez em condições mais tranquilas e propícias. Isso se deu quase nove meses depois, no dia 11/5/2005, no SENAC da Rua Tito na Lapa… Lá perto do lindo Bar e Restaurante da Cacilda. . . (que ficou para sempre com um lugar especial no meu coração).

Dessa vez as coisas começaram a se colocar em andamento. Devagar, naturalmente. Afinal de contas… Será que pode ser parte da vontade de Deus desmanchar (ou deixar que se desmanchem) dois casamento aparentente funcionais para constituir outro, improvável e arriscado, entre pessoas com 32 anos de diferença? Um ateu, ou quase, e a outra, crente convicta? Quem iria arriscar prever: a Paloma, tão crente, justo com um velho ateu de 65 anos. Alguém efetivamente publicou isso aos quatro ventos no Orkut…

Levou mais de três anos, a partir daquela data. E, deixados a nós mesmos, não sei se teríamos tido coragem…

Mas dessa vez Deus (aparentemente) estava resolvido e decidiu pegar as rédeas em suas mãos e agir (ainda que sempre através de interpostas pessoas). Decisões que não conseguíamos tomar, ele tomou por nós (através de terceiros). Facilitou o nosso processo decisório. E aqui estamos. Fazendo o que achamos que é o melhor, mas sem nunca saber por certo o que Deus trama por trás.

Tem gente que acha que sabe com certeza absoluta qual é a vontade de Deus para tudo e o que Deus acha certo e errado em cada caso particular.

Tenho pena deles. Uma hora Deus vai sacudir essa gente para um choque de realidade.

Eu prefiro acreditar como aquele ditado que diz que, se você quer ver Deus dando uma boa risada, conte a ele os seus planos… Diga a ele o que você acredita que é a vontade dele. Ele só não rola de rir no chão porque não tem corpo, e só não morre de rir porque é eterno. Ainda bem.

Leiam Tiago 4:13-16:

” 13. Ouçam agora, vocês que dizem: ‘Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro’.

14. Vocês nem sabem o que acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa.

15. Em vez disso, deveriam dizer: ‘Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo’.

16. Agora, porém, vocês se vangloriam das suas pretensões. Toda vanglória como essa é maligna. “

Em São Paulo, 20 de Janeiro de 2015

Greg Butler: business partner, mentor, and friend: A tribute

Greg Butler

I personally met Greg Butler for the first time in May of 2000 — it is going to be 15 years in a few months. I was the Technical Coordinator in charge of programming for a huge annual conference in São Paulo, SP, Brazil (about 4,000 attendees) called “Educador”, aimed at discussing Technology and Education. Microsoft’s subsidiary in Brazil was one of the sponsors and my friend Marcia Teixeira, then Senior Academic Program Manager for Education for the Brazilian subsidiary, indicated someone to be one of the keynote speakers: Greg Butler. I got in contact with him late in 1999 and early in 2000 and finally met him when the conference took place in May. He spoke about “Anytime, Anywhere Learning” – his passion at the time.

At that time Greg was not formally at Microsoft. He was managing a program in the United States (West Coast, mostly, if I remember it right) aimed at placing one laptop in the hand of each student. It was called Anytime, Anywhere Learning and it was, as far as I can tell, the first program of what came to be called “one-to-one (1:1) computing” or “one laptop per student”. Bruce Dixon, who later on became my friend as well, and who now heads the Anytime, Anywhere Learning Foundation, worked with him on that program.

Microsoft Corp (US) was one of the sponsors of the program, and noticing Greg’s talent brought him onboard (Greg as an employee and Bruce as a consultant). After a while Greg created at Microsoft the Partners in Learning program, a global initiative in education – a multimillion dollar attempt to change education in an innovative direction, today present in over 100 countries. That program came to receive about 750 million dollars from Microsoft over ten years, as I am informed.

At the end of 2002 Greg asked Marcia Teixeira to indicate someone to be part of the International Advisory Board (IAB) of Partners in Learning, representing Latin America. She approached me, told me about the main ideas of Partners in Learning and checked if I would be interested in participating in its IAB. I did not have to think twice. I had been a Microsoft partner in the area of education since 1998, when I created, with the support of Carlos Alberto Ferreira, who was Marcia’s predecessor in that position, a site and a virtual learning community called “EduTec.Net”. In the area of computer training I had been a partner since 1994, through my company. Marcia indicated my name. Greg called me to formalize the invitation and I remained on that illustrious board (with John Bransford, Michael Fullan, Jenny Lewis, Michael Furdyk and Bruce Dixon) for ten years, from 2003 to the beginning of 2013. Other members eventually came and went, but this group remained the core of the International Advisory Board for ten years.

Less than one month after the first meeting of the International Advisory Board, “Partners in Learning” (then baptized as PiL) was publically announced in what was then called the Global Leaders Summit (May 18-20), in Redmond, WA, USA, by Maggie Wilderotter, then Microsoft’s Senior Vice President of Business Strategy (later of Public Sector). I was honored to have a participation in her keynote speech, speaking in the name of the International Advisory Board for about fifteen minutes to underline the importance of the program. The speech took place on May 19th, which was the first full day of meetings (the Summit opened on May 18th with a Welcome Reception). That night (19th), during a special reserved dinner, I met Bill Gates and had the opportunity to have a brief chat with him.

The rest is history.

Through Partners in Learning I was able to participate, almost always alongside Greg, in events in London (several times), Salzburg and Amsterdam, in Europe; Taiwan (several cities), from 2004 through 2009, every year; Singapore; Sidney and Perth in Australia; Tokyo in Japan; Seoul in South Korea; Kuala Lumpur in Malaysia; Hanoi in Vietnam; Buenos Aires, in Argentina… In Sidney, in 2007, I stayed during seven days at his house, as family guest. I already knew his wife Diane and his three children (Catherine “Cathy”, John “Jack” and Timothy “Tim”) from frequent dinners in their house in Seattle, WA. I can’t remember how many times we met in the US, in Brazil and in other countries in Central and South America. Under his guidance I visited, in South America, Venezuela, Colombia, Peru, Ecuador, Chile, and Argentina to help them implant local Advisory Boards. He recommended my name to be the chief consultant to the program in Central America and the Caribbean and Yolanda Ramos, who coordinated the program in the area, hired me for two years in that capacity. There I visited Puerto Rico, Panama (more than once), Costa Rica, Guatemala and even the Bahamas…

I was older than Greg, a university professor, and supposedly an expert in Technology in Education, but in the area of business consulting Greg was my chief mentor. And he was always a friend. In his many visits to Brazil he brought Jack along once and Diane at another time. When Diane was here in São Paulo we went to Embu das Artes, nearby, a great fair, and had dinner at the Chacara Santa Cecília, a picturesque restaurant in São Paulo.

In 2008 Greg, already based in London, tried to create a venture in Europe involving the concepts behind the Lumiar School, founded in São Paulo by Ricardo Semler, and which became, in 2007, a Microsoft Innovative School within the Partners in Learning Program. I was the President of the Lumiar Institute then, institution which maintained the school. I was charged with writing the project, which I did. The thing somehow grew too big and involved too many vested interests and eventually was the idea was abandoned. But writing a great project like that, involving many of the “big shots” of the area of education (from Howard Gardner, from Harvard’s Project Zero, to the Future Lab, in England), was quite a learning experience – and Greg’s advice and guidance were essential.

On Sunday I was shocked with the news of his premature death, as were all of his friends. I can’t still quite believe he is gone. But feel compelled to leave this tribute to him here.

São Paulo, SP, Brazil, January 20th, 2015.

Excerto de “A Revolta de Atlas”, Obra de Ayn Rand

A seguir, um trecho de um romance de autoria de Ayn Rand. Rand é uma romancista e filósofa americana — embora tenha nascido na Rússia, em 1905, em lar judeu, com o nome de Alyssa Zinovievna Rosenbaum, só vindo para os Estados Unidos em 1926 — com 21 anos, portanto. Dominou a língua inglesa com perfeição e fez sucesso escrevendo — sempre em Inglês, nunca em Russo.

O trecho transcrito mostra a inviabilidade de uma sociedade baseada no princípio “De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade”. Em outras palavras, o trecho mostra a inviabilidade do Socialismo.

É um trecho longo. O romance do qual foi retirado é Atlas Shrugged, publicado em 1957. O livro já foi publicado três vezes em Português.

A primeira a publicar o livro foi a Editora Expressão e Cultura, em 1987, no trigésimo aniversário de sua publicação original. A tradução foi de Paulo Henriques Britto. A edição tem 904 páginas, em um só volume, e teve o título de Quem é John Galt?

A mesma edição, com o mesmo título, voltou a ser lançada pela mesma editora em 1999, agora em dois volumes (mas com o mesmo número de páginas total, visto se tratar da mesma diagramação anterior).

Finalmente, a terceira edição foi impressa pela Editora Sextante, com o patrocínio de várias instituições liberais, com destaque para o Instituto Millenium. A tradução é a mesma, mas foi revisada e recebeu nova diagramação. O livro saiu, desta vez, em três volumes, com 352, 382 e 496 páginas, respectivamente, o que traz o total de páginas para 1230. O título em Português foi alterado para A Revolta de Atlas.

A seguir, transcrevo um artigo meu escrito e publicado (a convite do jornal) na Folha de S. Paulo de 9 de Outubro de 2010, na seção Cifras & Letras, quando do lançamento da terceira edição do livro no Brasil.

CRÍTICA – LIBERALISMO

Ayn Rand ataca socialismo mostrando greve de patrões

Livro formou economistas como Alan Greenspan, ex-presidente do Fed

Eduardo CHAVES

[ESPECIAL PARA A FOLHA]

A Bíblia do pensamento liberal na segunda metade do século não é um livro de economia ou de filosofia política: é um romance.

Atlas Shrugged, a clássica defesa da liberdade, do individualismo e do capitalismo escrita por Ayn Rand (1905-81), romancista e filósofa russo-americana, acaba de ganhar nova edição em Português, com novo título: A Revolta de Atlas.

A edição anterior, publicada em 1987, e há muito esgotada, tinha o título de Quem é John Galt? A tradução é a mesma, mas foi editada e revisada pela editora Sextante.

Com 1230 páginas na presente edição, o livro tem um enredo extremamente complexo e bem elaborado, que não é possível resumir aqui.

No entanto, uma descrição, ainda que breve, do tema escolhido por Rand dá ideia da dimensão da obra.

Originalmente publicada em 1957, a história se passa nos Estados Unidos, numa época futura em que o país, seguindo o exemplo de países europeus e latino-americanos, caminha para o socialismo e resolve regular e assim controlar sua economia.

GREVE DOS CHEFES

O livro descreve o que acontece quando aqueles que (como Atlas) sustentam o mundo nas costas resolvem fazer greve, sacudindo o mundo dos ombros e deixando que literalmente se dane.

“Vamos ver o que acontece ao mundo quando quem faz greve contra quem” é frase (retirada do livro) que resume o tema da obra.

Entrando em greve, empresários americanos começam a desaparecer, abandonando suas empresas nas mãos de reguladores e controladores estatais. Grandes filósofos, cientistas e artistas também desaparecem, abandonando seus empreendimentos.

O lado otimista da história é que o Estado pode confiscar empresas e outros empreendimentos, mas não consegue obrigar empresários e outros empreendedores a lhe arrendar suas mentes, sua criatividade, sua competência, seu trabalho.

O Estado, portanto, que fique com os empreendimentos, decidem seus proprietários na história. Mas eles não colocam mais suas mentes a serviço da sustentação de um mundo onde esse tipo de confisco pode acontecer.

(Na realidade, o que deixam para o Estado espoliador não passa da carcaça de empresas e empreendimentos cuja alma eles levaram consigo.)

CAOS

A história narra nos mínimos detalhes o caos que resulta dessa inusitada greve em que aqueles que normalmente são vítimas das greves, os empreendedores, retiram do mercado sua mente e seu trabalho, e, no processo, deixam o mundo sem bens, sem serviços, sem empregos.

Quando Atlas faz greve, o mundo literalmente desmorona (mais ou menos como aconteceu com o mundo comunista em 1989).

Ao final da história, quando as luzes do velho mundo se apagam, simbolizando a derrocada que lhe sobrevém quando Atlas deixa de sustentá-lo, a porta está aberta para a construção de um mundo novo: a greve termina e Atlas está pronto para reassumir seu lugar.

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EDUARDO CHAVES foi professor de filosofia da Universidade Estadual de Campinas e, depois de aposentado, leciona filosofia da educação no Centro Universitário Salesiano de São Paulo.

TÍTULO: A Revolta de Atlas
AUTORA: Ayn Rand
TRADUÇÃO: Paulo Henriques Britto
EDITORA: Sextante
QUANTO: R$ 69,90 (1230 págs.)

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/me0910201005.htm

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Na passagem que será transcrita a seguir, que fica mais ou menos no meio do livro (pp. 343-517), Ayn Rand conta, entre outras coisas, como uma indústria de ponta e extremamente produtiva é destruída por ideias igualitárias.

A maior parte do trecho é uma explicação, por parte de um ex-empregado, dada a uma mulher que o entrevistava acerca das razões por que a fábrica faliu. A fábrica se chamava Motores Século Vinte (Twentieth-Century Motors).

Trata-se de uma obra de ficção — ma non troppo. . . Ela foi, ao final do Século 20, votada, na Internet, pelos leitores, o livro de ficção mais importante século. Vide a referência em

http://www.randomhouse.com/modernlibrary/100best/novels.html

Eis o trecho do livro que, a meu ver, mais vale a pena transcrever.

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[p.343]

— Bem, foi uma coisa que aconteceu na fábrica onde trabalhei durante 20 anos. Foi quando o velho morreu e os herdeiros tomaram conta. Eles eram três, dois filhos e uma filha, e inventaram um novo plano para administrar a fábrica. Deixaram a gente votar, também, para aceitar ou não o plano, e todo mundo, quase todo mundo, votou a favor. A gente não sabia, pensava que fosse bom. Não, também não é bem isso, não. A gente pensavam que queriam que a gente achasse que era bom. O plano era o seguinte: cada um trabalhava conforme sua capacidade, e recebia conforme sua necessidade.

. . .

— Aprovamos o tal plano numa grande assembleia. Nós éramos 6 mil, todo mundo que trabalhava na fábrica. Os herdeiros do velho Starnes fizeram uns discursos compridos, e ninguém entendeu muito bem, mas ninguém fez nenhuma pergunta. Ninguém sabia como é que o plano ia funcionar, mas cada um achava que o outro

[p.344]

sabia. E quem tinha dúvida se sentia culpado e não dizia nada, porque, do jeito que os herdeiros falavam, quem fosse contra era desumano e assassino de criancinhas. Disseram que esse plano ia concretizar um nobre ideal. Como é que a gente podia saber? Não era isso que a gente ouvia a vida toda dos pais, professores e pastores, em todos os jornais, filmes e discursos políticos? Não diziam sempre que isso era o certo e o justo?

. . .

— Bem, pode ser que a gente tenha alguma desculpa para o que fez naquela assembleia. O fato é que votamos a favor do plano, e o que aconteceu conosco depois foi merecido.

A senhora sabe, nós que trabalhamos lá na Século XX durante aqueles quatro anos, somos homens marcados. O que dizem que o inferno é? O mal, o mal puro, nu, absoluto, não é? Pois foi isso que a gente viu e ajudou a fazer, e acho que todos nós estamos malditos, e talvez nunca mais vamos ter perdão. . .

A senhora quer saber como funcionou o tal plano, e o que aconteceu com as pessoas? É como derramar água dentro de um tanque em que há um cano no fundo puxando mais água do que entra, e cada balde que a senhora derrama lá dentro o cano alarga mais um bocado, e quanto mais a senhor trabalha, mais exigem da senhora, e no fim a senhora está despejando baldes 40 horas por semana, depois 48, depois 56, para o jantar do vizinho, para a operação da mulher dele, para o sarampo do filho dele, para a cadeira de rodas da mãe dele, para a camisa do tio dele, para a escola do sobrinho dele, para o bebê do vizinho, para o bebê que ainda vai nascer, para todo mundo à sua volta, tudo é para eles, desde as fraldas até as dentaduras, e só o trabalho é seu, trabalhar da hora em que o sol nasce até escurecer, mês após mês, ano após ano, ganhando só suor, o prazer só deles, durante toda a sua vida, sem descansar, sem esperança, sem fim. . .

De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade.

. . .

— Nós somos uma grande família, todo mundo, é o que nos diziam, estamos todos no mesmo barco. Mas não é todo mundo que passa 10 horas com um maçarico na mão, nem todo mundo que fica com dor de barriga ao mesmo tempo. Capacidade de quem? Necessidade de quem, quem tem prioridade? Quando é tudo uma coisa só, ninguém pode dizer quais são as suas necessidades, não é? Senão qualquer um pode dizer que necessita de um iate, e se só o que conta são os sentimentos dele, ele acaba até provando que tem razão. Por que não? Se eu só tenho o direito de ter carro depois que eu trabalhei tanto que fui parar no hospital, depois de garantir um carro para todo vagabundo e todo selvagem nu do mundo, por que ele não pode exigir de mim um iate também, se eu ainda tenho a capacidade de trabalhar? Não pode? Então ele não pode exigir que eu tome meu café sem leite até ele conseguir pintar a sala de visitas dele? Pois é. . . .

Mas então decidiram que ninguém tinha o direito de julgar suas próprias

[p.345]

capacidades e necessidades. Tudo era resolvido na base da votação. Sim, senhora, tudo era votado em assembleia duas vezes por ano. Não tinha outro jeito, não é? E a senhora imagina o que acontecia nesses eventos? Bastou a primeira para a gente descobrir que todo mundo tinha virado mendigo — mendigos esfarrapados, humilhados, todos nós, porque nenhum homem podia dizer que fazia jus a seu salário, não tinha direitos nem fazia jus a nada, não era dono de seu trabalho, o trabalho pertencia à ‘família’, e ela não lhe devia nada em troca, a única coisa que cada um tinha era a sua ‘necessidade’, e aí tinha que pedir em público que atendessem às suas necessidades, como qualquer parasita, enumerando todos os seus problemas, até os remendos na calça e os resfriados da esposa, na esperança de que a ‘família’ lhe jogasse uma esmola. O jeito era chorar miséria, porque era a sua miséria, e não o seu trabalho, que agora era a moeda corrente de lá.

Assim, a coisa virou um concurso de misérias disputado por 6 mil pedintes, cada um chorando mais miséria que o outro. Não tinha outro jeito, não é? A senhora imagina o que aconteceu, que tipo de homem ficava calado, com vergonha, e que tipo de homem levava a melhor?

. . .

— Mas tem mais. Mais uma coisa que a gente descobriu na mesma assembleia. A produção da fábrica tinha caído 40 por cento naquele primeiro semestre, e então concluiu-se que alguém não tinha usado toda a sua ‘capacidade’. Quem? Como descobrir? A ‘família’ também decidia isso no voto. Escolhiam no voto quais eram os melhores trabalhadores, e esses eram condenados a trabalhar mais, fazer hora extra todas as noites durante os seis meses seguintes. E sem ganhar nada a mais, porque a gente ganhava não por tempo nem por trabalho, e sim conforme a necessidade.

Será que preciso explicar o que aconteceu depois disso? Explicar que tipo de criaturas nós fomos virando, nós que antes éramos seres humanos? Começamos a esconder toda a nossa capacidade, trabalhar mais devagar, ficar de olho para ter certeza de que a gente não trabalhava mais depressa nem melhor do que o colega ao nosso lado. Tinha que ser assim, pois a gente sabia que quem desse o melhor de si para a ‘família’ não ganhava elogio nem recompensa, mas castigo. Sabíamos que para cada imbecil que estragasse um motor e desse um prejuízo para a fábrica — ou por desleixo, porque não tinha nenhum motivo para caprichar, ou por pura incompetência — quem ia ter que pagar era a gente, trabalhando de noite e no domingo. Por isso, a gente se esforçava o máximo para ser o pior possível.

Tinha um garoto que começou todo empolgado com o nobre ideal, um garoto muito vivo, sem instrução, mas um crânio. No primeiro ano ele inventou um processo que economizava milhares de homens-hora. Deu de mão beijada a descoberta dele para a ‘família’, não pediu nada em troca, nem podia, mas não se incomodava com isso. ‘Era tudo pelo ideal’, dizia ele. Mas, quando foi eleito um dos mais capazes e condenado a trabalhar de noite, ele fechou a boca e o cérebro. No ano seguinte, é claro, não teve nenhuma ideia

[p.346]

brilhante.

A vida inteira nos ensinaram que os lucros e a competição tinham um efeito nefasto, que era terrível um competir com o outro para ver quem era melhor, não é?

. . .

Pois deviam ver o que acontecia quando um competia com o outro para ver quem era o pior.

Não há maneira melhor de destruir um homem do que obrigá-lo a tentar NÃO fazer o melhor de que é capaz, a se esforçar por fazer o pior possível, dia após dia. Isso mata mais depressa do que a bebida, a vadiagem, a vida de crime. Mas para nós a única saída era fingir incompetência. A única acusação que temíamos era a de que tínhamos capacidade. A capacidade era como uma hipoteca que nunca se termina de pagar.

E trabalhar para quê? A gente sabia que o mínimo para a sobrevivência era dado a todo mundo, quer trabalhasse quer não, a chamada ‘ajuda de custo para moradia e alimentação’, e mais do que isso não se tinha como ganhar, por mais que se esforçasse. Não se podia ter certeza de que seria possível comprar uma muda de roupas no ano seguinte — a senhora podia ou não ganhar uma ‘ajuda de custo para vestimentas’, dependendo de quantas pessoas quebrassem a perna, precisassem ser operadas, ou tivessem mais filhos. E, se não havia dinheiro para todo mundo comprar roupas, então a senhora também ficava sem roupa nova.

Havia um homem que tinha passado a vida toda trabalhando até não poder mais, porque queria que seu filho fizesse faculdade. Pois bem, o garoto terminou o secundário no segundo ano de vigência do plano, mas a ‘família’ não quis dar ao homem uma ‘ajuda de custo’ para pagar a faculdade do filho. Disseram que o filho só ia poder entrar para a faculdade quando houvesse dinheiro para os filhos de todos entrarem para a faculdade — e, para isso, era preciso primeiro pagar o ensino médio dos filhos de todos, e não havia dinheiro nem para isso. O homem morreu no ano seguinte, numa briga de faca num bar, uma briga sem motivo. Brigas desse tipo estavam se tornando cada vez mais comum entre nós.

Havia um sujeito mais velho, um viúvo sem família, que tinha um hobby: colecionar discos. Acho que era a única coisa de que ele gostava na vida. Antes, ele costumava ficar sem almoçar para ter dinheiro para comprar mais um disco clássico. Pois não lhe deram nenhuma ‘ajuda de custo’ para comprar discos — disseram que aquilo era ‘luxo pessoal’. Mas, naquela mesma assembleia, votaram a favor de dar para uma tal de Millie Bush, filha de alguém, uma garotinha de oito anos feia e má, um aparelho de ouro para corrigir seus dentes — isto era uma ‘necessidade médica’, porque o psicólogo da empresa disse que a coitadinha ia ficar com complexo de inferioridade se seus dentes não fossem endireitados. O velho que gostava de música passou a beber. Chegou a um ponto em que nunca mais era visto sóbrio. Mas parece que uma coisa ele nunca esqueceu. Uma noite, ele vinha cambaleando pela rua quando viu a tal da Millie Bush, então lhe deu um soco que lhe quebrou todos os dentes da menina. Todos.

. . .

— A bebida, naturalmente, era a solução para a qual todos nós apelávamos, uns

[p.347]

mais, outros menos. Não me pergunte onde é que achávamos dinheiro para isso. Quando todos os prazeres decentes são proibidos, sempre se dá um jeito de gozar os prazeres que não prestam. Ninguém arromba mercearias à noite nem rouba o colega para comprar discos clássicos nem caniços de pesca, mas, se é para tomar um porre e esquecer, faz-se de tudo. Caniços de pesca? Armas para caçar? Máquinas fotográficas? Hobbies? Não havia ‘ajuda de custo de entretenimento’ para ninguém. O lazer foi a primeira coisa que cortaram. Pois a gente não deve ter vergonha de reclamar quando alguém pede para abrirmos mão de uma coisa que nos dá prazer? Até mesmo a nossa ‘ajuda de custo de fumo’ foi racionada a ponto de só recebermos dois maços de cigarro por mês — e isso, diziam eles, porque o dinheiro estava indo para o fundo do leite dos bebês.

Os bebês eram o único produto que havia em quantidades cada vez maiores — porque as pessoas não tinham outra coisa para fazer, imagino, e porque não tinham que se preocupar com os gastos da criação dos bebês, já que eram uma responsabilidade da ‘família’. Aliás, a melhor maneira de conseguir um aumento e poder ficar mais folgado por uns tempos era ganhar uma ‘ajuda de custo para bebês’ — ou isso ou arranjar uma doença séria.

. . .

— Bom, não demorou muito para a gente entender como a coisa funcionava. Todo aquele que resolvia agir certinho tinha que se abster de tudo. Tinha que perder toda a vontade de gozar qualquer prazer, não gostar de fumar um cigarro nem mascar um chiclete, porque alguém podia ter uma necessidade maior do dinheiro gasto naquele cigarro ou chiclete. Sentia vergonha cada vez que engolia uma garfada de comida, pensando em quem tinha tido que trabalhar de noite para pagar aquela garfada, sabendo que o alimento que comia não era seu por direito, sentindo a vontade infame de ser trapaceado ao invés de trapacear, de ser um pato, e não um sanguessuga. Não podia ajudar os pais, para não colocar um fardo mais pesado sobre os ombros da ‘família’. Além disso, se ele tivesse um mínimo de senso de responsabilidade, não podia se casar nem ter filhos, pois não podia planejar nada, prometer nada, contar com nada.

Mas os indolentes e irresponsáveis se deram bem. Arranjaram filhos, seduziram moças, trouxeram todos os parentes imprestáveis que tinham, todas as irmãs solteiras grávidas, para receber uma ‘ajuda de custo de doença’, inventaram todas as doenças possíveis, sem que os médicos pudessem provar a fraude, estragaram suas roupas, seus móveis, suas casas — pois não era a ‘família’ que estava pagando? Descobriram muito mais ‘necessidades’ do que os outros, desenvolvendo um talento especial para isso, a única capacidade que demonstraram.

Deus me livre!

. . .

— A senhora entende? Compreendemos que nos tinham dado uma lei, uma lei MORAL, segundo eles, que punia quem a observava — pelo fato de a observar. Quanto mais a senhora tentava seguir essa lei, mais sofria; quanto mais a violava, mais lucrava.

[p.348]

A sua honestidade era como um instrumento nas mãos da desonestidade do próximo. Os honestos pagavam, e os desonestos lucravam. Os honestos perdiam, os desonestos, ganhavam. Com esse tipo de padrão do que é certo e errado, por quanto tempo os homens poderiam permanecer honestos? No começo éramos pessoas bem honestas, e só havia uns poucos aproveitadores. Éramos competentes, nos orgulhávamos do nosso trabalho, e éramos funcionários da melhor fábrica do país, para a qual o velho Starnes só contratava a nata dos trabalhadores. Um ano depois da implantação do plano não havia mais um homem honesto entre nós. Era ISSO o mal, o horror infernal que os pregadores usavam para assustar os fiéis, mas que a gente nunca imaginava ver em vida. A questão não foi que o plano estimulasse uns poucos corruptos, e sim que ele corrompia pessoas honestas, e o efeito não podia ser outro — e era isso que chamavam de ideia moral!

Queriam que trabalhássemos em nome de quê? Do amor pelos nossos irmãos? Que irmãos? Os parasitas, os sanguessugas que víamos ao redor? E se eles eram desonestos ou se eram incompetentes, se não tinham vontade ou não tinham capacidade de trabalhar — que diferença fazia para nós? Se estávamos presos para o restante da vida àquele nível de incompetência, fosse verdadeiro ou fingido, por quanto tempo nos daríamos ao trabalho de seguir em frente?

. . .

— Não tínhamos como saber qual era a verdadeira capacidade deles, não tínhamos como controlar suas necessidades — só sabíamos que éramos burros de carga lutando às cegas num lugar que era meio hospital, meio curral — um lugar onde só incentivavam a incompetência, as catástrofes, as doenças — burros de carga que só serviam às necessidades que os outros afirmavam ter.

Amor fraternal? Foi então que aprendemos, pela primeira vez na vida, a odiar nossos irmãos. Começamos a odiá-los por cada refeição que faziam, cada pequeno prazer que gozavam, a camisa nova de um, o chapéu da esposa de outro, o passeio que um dava com a família, a reforma que o outro fazia na casa — tudo aquilo era tirado de nós, era pago pelas nossas privações, nossas renúncias, nossa fome.

Um começou a espionar o outro, cada um tentando flagrar o outro em alguma mentira sobre suas necessidades, para cortar sua ‘ajuda de custo’ na assembleia seguinte. Começaram a surgir delatores, que descobriam que alguém tinha comprado às escondidas um peru para a família num domingo qualquer, provavelmente com o dinheiro que ganhara no jogo. Começamos a nos meter um na vida do outro. Provocávamos brigas de família, para conseguir que os parentes de alguém saíssem da lista de beneficiados. Toda vez que víamos algum homem começando a namorar uma moça, tornávamos a vida dele um inferno. Fizemos muitos noivados se romperem. Não queríamos que ninguém se casasse, não queríamos mais dependentes para alimentar.

Antes, comemorávamos quando alguém tinha filho, todo mundo contribuía para ajudar a pagar a conta do hospital, quando os pais estavam sem dinheiro. Nessa época, quando nascia uma criança,

[p.349]

ficávamos semanas sem falar com os pais. Para nós, os bebês eram o que os gafanhotos são para os fazendeiros: uma praga.

Antes, ajudávamos quem tinha doente na família. Depois . . .

. . .

— Bom, vou contar apenas um caso para a senhora. Era a mãe de um homem que trabalhava conosco havia quinze anos, uma senhora simpática, alegre e sábia, conhecia todos nós pelo primeiro nome, todos nós gostávamos dela antes. Um dia ela escorregou na escada do porão, caiu e quebrou a bacia. Nós sabíamos o que isso representava para uma pessoa daquela idade. O médico disse que ela teria que ser internada, para fazer um tratamento caro e demorado. A velha morreu na véspera do dia em que ia ser levada para o hospital. Ninguém nunca explicou a causa da morte dela. Não, não sei se foi assassinada. Ninguém disse isso. Não se comentava nada sobre o assunto. A única coisa que sei — e disso nunca vou me esquecer — é que eu, também, quando dei por mim, estava rezando para que ela morresse. Que Deus nos perdoe! Eram essas a fraternidade, a segurança, a abundância que nos haviam prometido com a adoção do plano.

. . .

[p.351]

— Bem, quando a gente via isso, entendia qual era a motivação verdadeira de todo mundo que já pregou o princípio ‘de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade’. Esse era o segredo da coisa. De início, eu não entendia como é que os homens instruídos, cultos e famosos do mundo podiam cometer um erro como esse e pregar que esse tipo de abominação era direito quando bastavam cinco minutos de reflexão para verem o que aconteceria quando alguém tentasse pôr em prática essa ideia. Agora sei que eles não defendiam isso por erro. Ninguém comete um erro desse tamanho inocentemente. Quando os homens defendem alguma loucura malévola, quando não têm como fazer essa ideia funcionar na prática e não têm um motivo que possa explicar essa sua escolha, então é porque não querem revelar o verdadeiro motivo.

E nós também não éramos tão inocentes assim, quando votamos a favor daquele plano na primeira assembleia. Não fizemos isso só porque acreditávamos naquelas besteiradas que eles vomitavam. Nós tínhamos outro motivo, mas as besteiradas nos ajudavam a escondê-lo dos outros e de nós mesmos, nos ofereciam uma oportunidade de dar a impressão de que era virtude algo que tínhamos vergonha de assumir. Cada um que aprovou o plano achava que, num sistema assim, conseguiria faturar em cima dos lucros dos homens mais capazes. Cada um, por mais rico e inteligente que fosse, achava que havia alguém mais rico e mais inteligente, e que esse plano lhe daria acesso a uma fatia da riqueza e da inteligência dos que eram melhores que ele. Mas enquanto ele pensava que ia ganhar aquilo que ele não merecia e que cabia aos que lhe eram superiores, ele esquecia os homens que lhe eram inferiores e que também iam ganhar aquilo que não mereciam. Ele esquecia os inferiores que iam querer roubá-lo tanto quanto ele queria roubar seus superiores. O trabalhador que gostava de pensar que suas necessidades lhe davam o direito de ter uma limusine igual à do patrão se esquecia de que todo vagabundo e mendigo do mundo viria gritando que as necessidades deles lhes davam o direito de ter uma geladeira igual à do trabalhador. Era ESSE o nosso motivo para aprovar o plano, na verdade, mas não gostávamos de pensar nisso. E então, quanto mais a ideia nos desagradava, mais alto gritávamos que éramos a favor do bem comum.

Bem, tivemos o que merecíamos. Quando vimos o que havíamos pedido, era tarde demais. Havíamos caído numa armadilha, e não tínhamos para onde ir. Os melhores de nós saíram da fábrica na primeira semana de vigência do plano. Perdemos nossos melhores engenheiros, superintendentes, chefes, os trabalhadores mais qualificados. Quem tem amor-próprio não se deixa transformar em vaca leiteira para ser ordenhada pelos outros. Alguns sujeitos capacitados tentaram seguir em frente, mas não conseguiram aguentar muito

[p.352]

tempo. A gente estava sempre perdendo os melhores, que viviam fugindo da fábrica como o diabo da cruz, até que só restavam os homens necessitados, sem mais nenhum dos capacitados. E os poucos que ainda valiam alguma coisa eram aqueles que já estavam lá havia muito tempo.

. . .

— Antigamente, ninguém pedia demissão da Século XX, e a gente não conseguia se convencer de que a companhia não existia mais. Depois de algum tempo, não podíamos mais pedir demissão porque nenhum outro empregador nos aceitaria — aliás com razão. Ninguém queria ter qualquer tipo de relacionamento conosco, nenhuma pessoa nem firma respeitável. Todas as pequenas lojas com as quais negociávamos começaram a sair de Starnesville depressa, e no fim só restavam bares, cassinos e salafrários que nos vendiam porcarias a preços exorbitantes. As esmolas que recebíamos eram cada vez menores, mas o custo de vida subia. A lista dos necessitados da fábrica não parava de aumentar, mas a quantidade de fregueses diminuía. Havia cada vez menos renda para dividir entre cada vez mais pessoas.

Antes, dizia-se que a marca da Século XX era tão confiável quanto a marca de quilates num lingote de ouro. Não sei o que pensavam os herdeiros do velho Starnes, se é que pensavam alguma coisa, mas imagino que, como todos os planejadores sociais e selvagens, eles achavam que essa marca era um selo mágico que tinha um poder sobrenatural que os manteria ricos, tal como enriquecera seu pai. Mas quando nossos fregueses começaram a perceber que nunca conseguíamos entregar uma encomenda dentro do prazo, nem produzir um motor que não tivesse algum defeito, o selo mágico passou a ter o valor oposto: as pessoas não queriam um motor, nem se ele fosse dado, se ostentasse o selo da Século XX.

E no final nossos fregueses eram todos do tipo que nunca pagam o que devem, e nunca têm nem mesmo a intenção de pagar.

. . .

— No entanto, Gerald Starnes, dopado por sua própria publicidade, ficava todo empertigado, com ar de superioridade moral, exigindo que os empresários comprassem nossos motores, não porque fossem bons, mas porque tínhamos muita NECESSIDADE de encomendas.

Àquela altura, qualquer imbecil já podia ver o que gerações de professores não haviam conseguido enxergar. De que adiantaria nossa necessidade, para uma usina, quando os geradores paravam porque nossos motores não funcionavam direito? De que ela adiantaria para um paciente sendo operado, quando faltasse luz no hospital? De que adiantaria para os passageiros de um avião, quando as turbinas pifassem em pleno voo? E se eles comprassem nossos produtos não por causa do seu valor, mas por causa de nossa necessidade, isso seria correto, bom, moralmente certo para o dono daquela usina, o cirurgião daquele hospital, o fabricante daquele avião?

Pois essa era a lei moral que os professores e líderes e pensadores queriam estabelecer por todo o mundo. Se era este o resultado quando ela era

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aplicada numa única cidadezinha onde todos se conheciam, a senhora pode imaginar o que aconteceria em escala mundial? Pode imaginar o que aconteceria se a senhora tivesse de viver e trabalhar afetada por todos os desastres e toda a malandragem do mundo? Trabalhar — e quando alguém cometesse um erro em algum lugar, a senhora é que teria de pagar. Trabalhar — sem jamais ter perspectivas de melhorar de vida, sendo que suas refeições, suas roupas, sua casa e seu prazer estariam à mercê de qualquer trapaça, de qualquer problema de fome ou de peste em qualquer parte do mundo. Trabalhar, sem nenhuma perspectiva de ganhar uma ração extra enquanto os cambojanos não tivessem sido alimentados e os patagônios não tivessem todos feito faculdade. Trabalhar, tendo cada criatura no mundo um cheque em branco na mão, gente que a senhora nunca vai conhecer, cujas necessidades a senhora jamais vai saber quais são, cuja capacidade, preguiça, desleixo e desonestidade são coisas de que a senhora jamais vai ter ciência nem terá o direito de questionar — enquanto as Ivys e os Geralds da vida resolvem quem vai consumir o esforço, os sonhos e os dias de sua vida. E é ESSA lei moral que se deve aceitar? ISSO é um ideal moral?

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— Olhe, nós tentamos — e aprendemos. Nossa agonia durou quatro anos, da nossa primeira assembleia à última, e acabou da única maneira que podia acabar: com a falência da companhia. Na nossa última assembleia, foi Ivy Starnes que tentou manter as aparências. Fez um discurso curto, vil e insolente, dizendo que o plano havia fracassado porque o restante do país não aceitara que uma única comunidade poderia ter sucesso no meio de um mundo egoísta e ganancioso, e que o plano era um ideal nobre, mas que a natureza humana não era suficientemente boa para que ele desse certo.

Um rapaz — o mesmo que fora punido por dar uma boa ideia no primeiro ano – se levantou, enquanto todos os outros permaneciam calados, e se dirigiu até Ivy Starnes, que estava no tablado. Sem dizer nada, ele cuspiu na cara dela. Foi assim que acabaram o nobre plano e a Século XX.

Em São Paulo, 22 de Dezembro de 2014.