Educação a Distância “Suficientista”

Artigo que publiquei, com o título acima, e no URL abaixo, no Blog das Editoras Ática e Scipione em 29/08/2011.

http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/educacao-a-distancia-suficientista

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Conheço Wilson Azevedo há cerca de quinze anos. Quando o conheci ele era pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil e responsável pelo site (webmaster) e pelas listas de discussão da igreja. Já naquela época era também responsável por um interessante programa de EaD – Educação a Distância na área teológica no Seminário Presbiteriano do Rio de Janeiro (STPr-RJ).

Desde então, convivemos na lista EduTec.Net, que criei em outubro de 1998, da qual ele foi não só um dos participantes mais ativos, mas o meu principal mentor e consultor pro bono. Encontramo-nos várias vezes em eventos da área de tecnologia e educação – especialmente os que envolviam EaD, como as reuniões promovidas ou apoiadas pela ABED – Associação Brasileira de Educação a Distância, criada e dirigida por nosso amigo Fred Litto, professor hoje aposentado da USP, onde dirigia “A Escola do Futuro”. 

O Wilson e eu já trabalhamos juntos em alguns empreendimentos, como um curso presencial sobre o uso de tecnologia no trabalho eclesiástico para pastores e administradores de igreja, ministrado (lá atrás no tempo) nas dependências de educação religiosa da Catedral Evangélica de São Paulo, e um curso a distância sobre escolas inovadoras, em que José Pacheco, Rosely Sayão e eu discutimos escolas inovadoras com que estivemos envolvidos (na ocasião, Pacheco falou sobre a Escola da Ponte, onde a filha do Wilson estudou quando a família morou em Portugal; Rosely abordou sua experiência como articulista da Folha de S. Paulo e eu falei sobre a Escola Lumiar, de cuja mantenedor, o Instituto Lumiar, fui Presidente e minha mulher Coordenadora Pedagógica).

Recebi, recentemente, um anúncio de que o Wilson estaria ministrando um curso a distância sobre “Ambientes Tecnológicos Minimalistas para EaD”. Resolvi me inscrever. Começou na segunda-feira passada (22/9), e vai durar apenas duas semanas. O Wilson leva a sério o minimalismo até na duração dos cursos dele…

O primeiro texto que li para o curso foi do próprio Wilson: um artigo que tem o título de “O Minimalismo Tecnológico em Educação Online e a Inclusão Educacional e Digital no Brasil”. Fiquei entusiasmado com o que li (embora discorde de algumas coisas pequenas, como vai ficar evidente aqui). Sempre soube, desde os tempos da EduTec.Net, que o Wilson era um “minimalista tecnológico”. Para explicar que bicho é esse, vou ter de fazer um preâmbulo relativamente longo…

Naquela época, fim da década de 1990, estava começando a se tornar possível redigir e-mails “formatados”. Para os usuários de e-mail de hoje essa noção nem faz mais sentido, porque e-mail formatado é tudo o que eles conhecem: uma mensagem na qual você pode escolher o tipo gráfico (fonte), o tamanho e o estilo (normal, negrito, itálico, sublinhado etc.) das letras que você vai usar, acentuar as palavras, incluir links para sites, assim como fotos, desenhos, gráficos, vídeos, etc.

Antes de tudo isso ter se tecnologicamente possível, porém, os e-mails precisavam ser redigidos em “texto puro”, isto é, sem nenhuma formatação, usando tipo de letra que fosse default no seu computador (em geral o que hoje se chama Courier), tudo de um tamanho só – sem acentos, sem links, sem fotos, sem desenhos, sem gráficos. Algo que fazia lembrar pobreza franciscana.

Para deixar claro que a gente queria dizer “é” e não “e”, a gente precisava escrever ” e’ ” ou “eh”… Além da pobreza, sofrimento (pelo menos para quem não estava acostumado a escrever sem acento). Naquele contexto, se alguém tentasse enviar um e-mail com texto formatado, a maioria dos sistemas de e-mail não era capaz de decodificar a meta-informação que especificava como o texto deveria ser recebido e o resultado eram códigos ilegíveis ou, pelo menos, muito difíceis de serem lidos.

Pois bem… Naquela época em que todos estávamos entusiasmados com a possibilidade de escrever e-mails com tipos gráficos exóticos, com letras de cores e tamanhos chamativos, o Wilson não se deixou seduzir: continuou partidário do e-mail com texto puro, porque imaginava que muitos de seus interlocutores usassem um mínimo de tecnologia. Continua assim até hoje.

Mas o que parecia apenas uma mania virou um referencial teórico interessante e sofisticado… Acho que, ao final do curso, o referencial teórico vai ficar mais sofisticado ainda, porque há muita gente boa entre os parcos treze alunos da turma. (O curso dele não é minimalista só na duração: também no número mínimo de alunos com o qual funciona).

Gosto disso. Se o curso do Wilson durasse seis meses, ou mesmo seis semanas, eu não teria optado por fazê-lo – não tenho tanto tempo disponível. Se exigisse que eu fosse a um Centro de Apoio ou a uma universidade para assistir a uma video-conferência (sincronicamente), ou para fazer uma prova, eu passaria longe do curso. Mas duas semanas (na verdade, dez dias úteis, cerca de uma hora por dia, em média), em que posso trabalhar em casa, tarde da noite ou de madrugada, é algo perfeitamente factível.

No artigo que mencionei, Wilson faz uma apologia extremamente interessante dos princípios do minimalismo tecnológico em EaD. O minimalismo teórico envolve outros princípios, como a simplicidade e a parcimônia, e possui uma justificativa teórica e pragmática que vale a pena divulgar.

Exceto no caso de algumas universidades, em especial no Estado de São Paulo, onde a FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa tinha um link exclusivo com o Fermilab, de Chicago, a Internet chegou ao Brasil apenas em 1995, graças aos esforços do então ministro Sérgio Motta – que pode ser considerado o primeiro mártir da internet brasileira. Ele “peitou” o sistema Telebrás, que queria uma Internet “chapa branca” para o Brasil e conseguiu, com o apoio de FHC, que o acesso à rede para os usuários finais fosse propiciado por provedores privados.

Mesmo assim, nos dez anos que se seguiram (1995-2005) a internet foi coisa “de rico”, vamos dizer assim. O preço do hardware era proibitivo, o preço do software era muito alto e o preço do acesso não era baixo, apesar da entrada da iniciativa privada no negócio, e, portanto, da concorrência. O resultado foi que, durante esse período, quase só as classes A e B tiveram acesso à Internet.

A partir de 2005, por aí, segundo o Wilson, o cenário mudou em muitos aspectos:

a) O preço do hardware caiu significativamente: hoje é possível comprar um netbook por cerca de dez prestações mensais de 65 reais, mais ou menos;

b) O preço do software também caiu, mas em proporção menor, embora exista hoje no mercado uma quantidade grande de software gratuito – e o brasileiro pessoa física continue a utilizar software pirateado, malgrado a ilegalidade da prática;

c) Os provedores de acesso à Internet também baixaram o preço e melhoraram um pouco a qualidade do acesso à chamada “banda larga” de 256 Kbps, 512 Kbps e 1 Mbps, já havendo, “no andar de cima”, como diz o Elio Gaspari, empresas oferecendo acesso por fibra óptica de até 100 Mbps). A concorrência do acesso à internet pelo telefone celular e, mais recentemente, pelos tablets que usam tecnologia celular, tem contribuído com a redução do custo do acesso. (Quando escrevo isto, meu acesso é de 100 Mbps, por fibra óptica, na Chácara Klabin, em São Paulo, perto do metrô Imigrantes.)

Fora do plano tecnológico, agora no plano educacional, quase todo mundo na faixa etária da escolarização obrigatória hoje está matriculado. A matrícula no Ensino Médio cresceu, o número de Escolas Técnicas cresceu significativamente e, principalmente, melhorou o acesso ao Ensino Superior, com a criação de mais universidades públicas federais, com o aumento de vagas nos CEFET e FATEC, e com a criação do Prouni. O número de vagas nas Faculdades e Universidades privadas também cresceu significativamente.

Com mais gente completando a Educação Básica e mais gente frequentando a faculdade ou a universidade, aumentou significativamente a demanda pelo acesso à Internet. Como o acesso à Internet (em seu tríplice aspecto de harware, software e acesso, propriamente dito) estava mais barato, muito mais gente se tornou “digitalmente incluída”, como diz o jargão. E essa gente era predominantemente das classes C, D e até mesmo E. Com isso, aumentou a demanda por EaD.

Diante desse quadro, nossa responsabilidade como educadores não se exaure em oferecer a essa clientela composta pelos “emergentes digitais” cursos a distância que exigem, na ponta do usuário, tecnologia extremamente sofisticada, estado da arte. Ou seja: o cenário parece estar pronto para uma abordagem minimalista à EaD – que é o que o Wilson preconiza e oferece.

Na verdade, a discussão no curso tem deixado claro que uma abordagem minimalista é útil até mesmo em contextos em que o argumento financeiro (o custo) não se aplica. É possível defendê-la, no contexto de EaD, argumentando que, em muitos contextos em que existe tecnologia sofisticada disponível para o usuário, o “maximalismo tecnológico” (usar tudo a que se tem direito) em geral funciona como uma distração para o usuário que não contribui, necessariamente, para que a quantidade e qualidade do seu aprendizado melhorem proporcionalmente ao investimento feito.

Isso posto, é preciso esclarecer melhor o que está envolvido na proposta minimalista.

Na discussão tem ficado claro que o minimalismo em EaD, embora combata a “obesidade tecnológica”, não propõe a “anorexia tecnológica”. No caso da alimentação, refeições adequadas são aquelas em que as pessoas comem, em quantidade suficiente, comida de qualidade: saudável, nutritiva, gostosa. Não é preciso que, na alimentação, a gente se empanturre, encha e limpe o prato, de comida pesada, gordurosa, ultra-temperada – isso só produz azia e má digestão (e, talvez, doença coronariana). Nem é preciso que a gente quase não se alimente e saia da mesa morrendo de fome. O princípio minimalista fica entre o “tudismo” e o “nadismo”, defendendo, na realidade, o “suficientismo”.

Que o leitor me desculpe: adoro neologismos. Por isso já usei tantos aqui. E dou outro exemplo.

O liberalismo político clássico, que propõe e defende o “Estado mínimo”, é, nessa linha, suficientista. É contra a proposta de que o Estado seja tudo (como era no mundo comunista) e contra a proposta de que o Estado seja nada (como é a proposta anarquista do não-Estado). O liberalismo político clássico defende a existência de um Estado forte (mas pequeno), exigindo que suas funções sejam clara e especificamente delimitadas e restringidas ao mínimo essencial.

O básico da discussão, até agora, é esse.

Na discussão, porém, foi sugerido um complicômetro interessante – por um médico. Disse ele mais ou menos o seguinte: no passado, em que a tecnologia era bem mais simples, quase minimalista, a “experiência operatícia” de um paciente que tivesse de se submeter a uma cirurgia do abdômen era, digamos, maximamente complexa. Ele ficava internado alguns dias, sofria um corte significativo em sua barriga, tinha uma recuperação lenta, e tinha de se conformar com viver com uma cicatriz feia para o resto da vida. Hoje, com micro-tecnologia ultra-sofisticada, a operação se faz em poucos minutos, o acesso aos órgãos internos se dando pelos “orifícios naturais” do corpo (ou, em casos extremos) fazendo um pequeno orifício artificial – ou um corte pequeno), e o paciente muitas vezes vai embora para casa sem trauma e sem cicatriz, com uma “experiência operatícia” mínima.

Em suma: o que importa, para o paciente (fazendo às vezes de usuário passivo da tecnologia) é que sua operação seja indolor, rápida, sem deixar cicatriz, e, se possível, barata – e que, naturalmente, que seja eficaz, isto é, resolva o seu problema. Se, para isso, é necessário que se use tecnologia ultra-sofisticada, maximalista, que seja.

Aplicando esse princípio à EaD, teríamos o seguinte: o importante é que a experiência de aprendizagem do aluno seja eficaz (isto é, que ele realmente aprenda o que precisa ou deseja aprender), indolor, rápida, sem sequelas negativas, e (ele espera) barata. Se, para isso, quem propicia essa experiência precisa usar tecnologia sofisticada, que use…

O complicômetro a que fiz referência está no fato de que a analogia médico-cirúrgica sugere que é necessário distinguir (pelo menos) dois problemas:

O primeiro problema envolve uma questão de dois lados: de um lado, a tecnologia que se usa ou aplica em determinado contexto (cirúrgico, pedagógico etc.); de outro lado, a experiência (“operatícia”, “aprenditícia” ou que nome quisermos dar a ela) que as pessoas envolvidas nesse contexto têm em decorrência do uso ou da aplicação da tecnologia.

O outro problema diz respeito ao segundo lado da questão anterior (as pessoas envolvidas) e também possui dois lados: a experiência de quem propicia o uso ou aplicação da tecnologia; e a experiência do próprio beneficiário do uso ou aplicação da tecnologia.

Neste segundo problema, temos que, para o operado, a experiência “operatícia”, quando o médico usa a tecnologia maximalista mencionada, é minimalista. Ele não sente quase nada. Ele, na realidade, nem é paciente, no sentido estrito do termo, porque não sofre nada! Para o médico, entretanto, há uma curva de aprendizagem significativa, tanto no uso da tecnologia em si como na aplicação das novas técnicas cirúrgicas que a tecnologia torna possíveis – porque, para propiciar ao paciente operado a experiência minimalista (quase nihilista, ou nadista) de não sentir quase nada, de não ficar com cicatriz etc., o médico teve de aprender a usar essa tecnologia sofisticada, isto é, maximalista!

[Parêntese: será que há resistência, entre os membros da classe médica, à necessidade de estar sempre reaprendendo a profissão, como parece haver entre os professores? Parece-me que não, mas posso estar enganado.]

No caso da educação, porém, não queremos que o aluno seja equivalente ao paciente operado, que não faz nada e é só objeto da ação de outrem: queremos que o aluno participe, seja ativo, interativo, colaborativo, e tenha papel significativo (tudo ativo, nada passivo), no processo de sua própria aprendizagem… Por isso, é difícil, se não totalmente impossível, imaginá-lo, no contexto de EaD, totalmente sem acesso à tecnologia (como acontece com o paciente operado). Mesmo no caso de um telecurso oferecido pela televisão, o aluno precisa fazer uso do aparelho de televisão (que é tecnologia), e, portanto, não se compara exatamente ao paciente de uma operação (embora, admitamos, neste caso fique perto).

Espero ter despertado o interesse dos leitores pelo tema…

Em São Paulo, 29 de Agosto de 2011, transcrito neste blog aqui em 11 de Outubro de 2011

Escrita à Mão, Papel Almaço…

Artigo, com o título acima, que publiquei no Blog das Editoras Ática e Scipione em 18/08/2011, no URL abaixo.

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http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/escrita-a-mao-papel-almaco…

Imaginemos uma escola particular de qualidade razoável em uma grande cidade brasileira nos dias de hoje. Digamos que ela se localize em São Paulo, num bairro tradicional que está tentando conseguir um upgrade para o século 21, e seus alunos pertençam às classes A e B do bairro. Ela usa sistema de ensino de grife. Os alunos, pelo menos os da quinta série em diante, carregam smartphones (fones espertos?) de última geração, têm notebooks (cadernos eletrônicos?), usam Facebook e Messenger o tempo todo etc. E se vestem, digamos, a rigor: GAP, Nike etc.

Imaginemos que nessa escola, numa sala de aula da oitava série, uma professora peça aos alunos que façam uma redação sobre tema de sua escolha e a entreguem numa data combinada. Mas, especifica a professora, a tarefa tem de vir escrita à mão em folha de papel almaço. Isso quer dizer que não serão aceitas redações feitas no computador: nem as impressas em impressora, nem, muito menos, as enviadas por e-mail.

Faz sentido?

A maioria dos alunos, legítimos membros da “Geração dos Nativos Digitais”, nascidos que são por volta de 1998, como é de se esperar, protesta – se não durante a sala, depois dela, na escola, em casa, e, naturalmente, pelo Facebook (há pouco mais de um ano, teria sido pelo Orkut).

Eu, como pai de aluno, como pessoa envolvida com tecnologia, e como professor e pensador na área da educação, não tenho nenhuma dificuldade em entender os alunos protestantes (i.e., que protestam) e, por conseguinte, me solidarizo totalmente com eles. Idade aqui não faz diferença. Nem as divergências em outros contextos.

Na verdade, escrevi uma nota de desabafo no meu mural no Facebook, dizendo:

“Fui testemunha, hoje, de uma coisa que me fez perguntar se estou de fato vivendo no século 21: uma tarefa de escola – uma redação – que tinha de ser feita à mão e entregue pessoalmente à professora em papel almaço. Tive de sair por aí procurando papel almaço (depois das 18h). Achei na Papel Magia, no Shopping Plaza Sul… Mas ainda estou escandalizado e com vontade de citar o nome da professora e do colégio aqui. Ou seria melhor citar a rede do sistema de ensino que o colégio usa?”

Quando saí procurando o papel, esperava que os atendentes das papelarias nem soubessem o que era papel almaço. Afinal de contas, quando eu fazia o Ginásio, no final de 1950, e o Clássico, no início dos anos 1960, ou seja, mais de 50 anos atrás, era nesse bendito papel que tínhamos de entregar nossas redações. A gente era obrigado a fazer uma margem, dobrada, de 2,5 cm (não sabia então que essa medida era basicamente equivalente a uma polegada) e entregar a folha sem dobrar. Para mim, um material desses nem existia mais, ou, se existisse, não seria conhecido do público em geral. Assim, foi com ceticismo que me dirigi às papelarias. Bom, surpreendi-me. Na Papel Magia o atendente não só sabia exatamente o que era aquilo que eu queria como tinha o material para pronta entrega e, ainda, o encontrou de pronto: um pacotinho de vinte folhas por 2,50. O preço me pareceu razoabilíssimo nas circunstâncias. Já estava preparado para fazer um rodízio de livrarias e papelarias de shoppings naquela altura.Se me surpreendi na papelaria, não esperava me surpreender no Facebook. Imaginava que todos os meus contatos concordariam comigo que a exigência da professora era absurda – não, naturalmente, a exigência de que os alunos fizessem uma redação, mas a de que a apresentassem escrita à mão e, pior ainda, em folha de papel almaço.

Bom… Surpreendi-me de novo.

Um contato meu no Facebook disse que achava “sensacional” o aluno ser obrigado a fazer uma redação à mão. OK. Admito que alguém queira discutir isso. Outra foi além e disse que achava “maravilhoso” que a escola obrigasse os alunos a usar o papel almaço e expressava o desejo de que todas as escolas brasileiras voltassem a usar esse material. Neste caso, não OK… Acho isso um absurdo. Uma terceira participante no debate afirmou não entender por que havia tanta gente “se descabelando” por causa de uma coisa tão comum e trivial, como exigir que alguém usasse papel e caneta para fazer alguma coisa… Não era bem isso que era exigido, mas vamos fazer de conta que sim. Uma quarta disse que, se soubesse quem era o professor que havia feito a exigência, dar-lhe-ia um beijo. Disse que daria um beijo mesmo que o imaginado professor fosse de fato uma professora.

É verdade que a maior parte dos meus amigos de longa data no Facebook saiu à luta… De início, um pouco reticentes, meio que se recusando a acreditar que fossem genuínos todos esses elogios a uma exigência que lhes parecia totalmente despropositada. Talvez pensassem que os elogios fossem fake – uma gozação que eles simplesmente não estavam entendendo. Quando viram que era pra valer, muniram-se de brio e combateram o bom combate, mesmo assim com um leve sorriso nos lábios (conjecturo, pois não via seus rostos no Facebook), porque, afinal de contas, era difícil de acreditar que ainda seria preciso engajar-se nesse tipo de batalha no mês em que se comemora o aniversário de 30 anos do lançamento do IBM PC.

O sinal de que a coisa era séria ficou evidente quando uma das defensoras do papel almaço começou a gritar (isto é, a escrever tudo em maiúscula) e a dizer que ERA UMA PENA QUE EU ME DISPUSESSE A CRITICAR O “MELHOR ENSINO” (sic)…

Enfim, quais eram os argumentos alinhavados na crítica delas à minha crítica?

Em respeito aos leitores vou despachar rapidamente a defesa do papel almaço para dedicar mais espaço ao que é mais importante: a defesa da escrita à mão.

Para mim (e para vários participantes no debate que, começando à meia-noite, já tinha alcançado mais de cem comentários pela manhã), dada a exigência de que a redação fosse escrita à mão, exigir que a entrega fosse em papel almaço (em vez de folha de caderno ou papel sulfite) era equivalente a exigir que o texto fosse escrito com caneta tinteiro em vez de esferográfica… Ou datilogrado numa máquina de escrever Remington em vez de impresso por Microsoft Word em uma impressora a laser colorida. Ou, talvez, que fosse escrito com aquelas canetas de pena, sem depósito de tinta, que eu usava na escola a partir do segundo ano primário, que requeriam a colocação de um tinteiro em um buraquinho redondo na carteira que, de vez em quando, fruto de uma joelhada involuntária, espalhava tinta pela carteira inteira, sujando livros, cadernos e não raro a branca camisa dos alunos. (Quase toda carteira, no meu Grupo Escolar Prof. José Augusto de Azevedo Antunes, em Santo André, tinha uma mancha de tinta escura, ou mais de uma, virtualmente impossível de remover sem lixa muito grossa).  Considero isso suficiente para dispor do papel almaço – aquele que foi, sem deixar saudade.

Vejamos então o que foi apresentado em defesa da exigência de que o texto fosse escrito à mão, em letra cursiva.

Na realidade, muito pouco foi apresentado em defesa dessa exigência específica, porque havia confusão entre coisas que são – ou deveriam ser – bem distintas. A primeira dessas confusões estava em atribuir as dificuldades que muitos alunos hoje têm com a escrita e a redação ao fato de que a maior parte dos professores não exige deles que façam redação com frequência e que as façam do modo tradicional: escrevendo à mão num papel qualquer.

A segunda confusão foi atribuir essa escassez na quantidade de redações exigidas dos alunos à presença da tecnologia na escola. Parece que imaginavam que, assim que o computador entra em cena, os professores encontram outras coisas mais “modernosas” para fazer em sala de aula e se descuidam do básico e essencial, como redigir (à mão). É mais ou menos isso.

A primeira tarefa dos defensores da “modernidade”  foi desconfundir as coisas. Afinal, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, e uma terceira coisa é, bem, uma terceira coisa.

Primeiro, nenhum dos críticos da professora tinha qualquer dúvida de que é extremamente importante aprender a escrever e a redigir textos mais complexos e que essas coisas a gente aprende fazendo. Portanto, nada contra o fato de que a professora exigiu dos alunos uma redação. Pelo contrário. E até se deve louvar o fato de que ela deixou o tópico a critério dos alunos – porque isso permite que a criatividade de alguns venha à tona. (Fazer cópia e receber ditado são tarefas que supostamente também nos ajudam no processo de aprender a escrever e a redigir… Mas, convenhamos, são das coisas mais desinteressantes do mundo).

Segundo, as dificuldades com escrita e redação dos alunos de hoje se devem, em parte, ao fato de que os professores não dão a importância devida a elas. Mas só pedir que os alunos façam redação não basta. É preciso ajudá-los a redigir bem, e isso se faz explicando no que consiste uma boa redação, lendo o que escrevem, discutindo com eles o que escrevem, sugerindo formas de expressarem melhor o que querem dizer etc.

Parte importante desse processo, que foi levantada na discussão, reflete algo que dificilmente acontece numa escola típica. A língua, falada e escrita, é o veículo através do qual nos comunicamos uns com os outros e expressamos o nosso pensamento. Toda roda de adolescentes é prova de que é possível falar e falar sem se dizer nada, isto é, de que é possível falar sem expressar pensamentos significativos. É a fala vazia, o falar por falar, a famosa “abobrinha”. (Essas rodinhas também provam que é possível rir o tempo todo – de nada ou daquilo que não tem a menor graça. Mas este é outro assunto…).

A escrita, em especial a redação, foi inventada para que a gente possa comunicar o nosso pensamento aos outros. Assim, se não sabemos pensar de forma clara, precisa, coerente e concatenada, dificilmente conseguiremos fazer uma boa redação. Ou seja, os maiores problemas com a escrita e a redação dos nossos alunos podem não ter causas apenas linguísticas, mas, também, lógicas e epistemológicas. E disso poucos professores das séries iniciais e poucos professores de língua portuguesa parecem se dar conta.

Terceiro, o impacto da tecnologia sobre essas questões é benéfico, não prejudicial. A coisa já vinha ruim desde antes da chegada maciça e significativa da tecnologia na escola (algo que, convenhamos, em relação à escola pública ainda não se deu), e as causas do problema não são tecnológicas.

Seymour Papert, o “papa” do uso da tecnologia na educação, uma vez escreveu um artigo em que dizia algo extremamente importante. Vou dividir a tese dele em partes para que seu argumento seja mais facilmente apreendido.  Reproduzo o argumento de memória, porque não fui capaz de localizar o artigo. Talvez tenha sido numa palestra ou aula dele que ouvi.

a. Aprender a escrever é um processo extremamente complexo. A escrita pressupõe a fala. E tanto a escrita como a fala pressupõem o pensamento (como já foi ressaltado atrás).

b. O ato de escrever à mão em letra cursiva envolve, além disso, em primeiro lugar, o domínio da coordenação motora fina necessária para desenhar as letras, que (exceto no caso de letras hoje chamadas bastão, antigamente de forma) são objetos normalmente muito pequenos e cheios de curvas e detalhes que exigem cuidado e prática para serem serem colocados no papel de forma correta e apresentável.

c. Além disso, o ato de escrever à mão, em letra cursiva ou não, envolve conhecimento da grafia correta das palavras, a “ortografia”: se, num determinado lugar, usa-se – para expressar de forma escrita um mesmo fonema – o “s” (como em sala), ou dois “esses” (como em passarinho), ou “ç” (como em caça), ou “c” (como em cego) ou “sc” (como em piscina)…  E há os acentos, os sinais diacríticos e diferenciais de antigamente, que parecem mudar a toda hora…

d. Para expressar pensamentos inteiros, é preciso usar frases de estrutura relativamente complexa, e, para isso, é preciso conhecer a sintaxe: a concordância, a regência, a combinação de orações coordenadas (sindéticas e assindéticas) e subordinadas, a diferença entre complemento nominal e adjunto adnominal…

e. Enfim, há que se fazer tudo isso e ainda produzir algo que, além de dizer alguma coisa interessante e de forma correta, precisa estar apresentável: a letra tem de estar bonita (para que outra coisa serve a “caligrafia”?), não deve haver borrões e outras manchas, o papel não deve ficar amarrotado etc.

Enfim… Na escola convencional, em que se aprende a escrever à mão, o aluno, ao aprender a dizer coisas por escrito, também tem de aprender tudo isso. É muita coisa ao mesmo tempo para um ser tão pequeno – e que tem tantas outras coisas interessantes para fazer… A atenção do aluno é dividida com todos esses processos que, em muitos casos, claramente não são essenciais ao processo de exprimir o pensamento em linguagem escrita. Olhando para um aluno que está aprendendo a desenhar as letras, a gente vê o esforço e a concentração. Às vezes a linguinha até fica de fora, no canto da boca, para (supostamente) facilitar o processo. Coitado.

Quando o aluno aprende a dizer coisas por escrito usando o computador, porém, vários desses processos acessórios são assumidos pelo computador, que corrige ortografia, acentuação, pontuação, e até sintaxe, e deixa o texto lindo de morrer ao permitir que diferentes fontes ou tipos gráficos sejam usados. Além disso, se o aluno erra, ou quer alterar o texto, é fácil fazer isso, sem que o texto fique rasurado e o papel, borrado ou amassado.

Assim, ele pode concentrar a atenção no processo de escrever, isto é, pensar coisas e dizê-las por escrito.

Depois de aprender a dizer as coisas por escrito, ele pode aprender, se necessário, a desenhar as letras com a mão, a grafar as palavras corretamente sem o auxílio de um corretor ortográfico, a estruturar as frases sem o apoio do computador etc. Há quem ache que ele aprende isso tranquilamente, só no processo – prazeroso – de escrever o que lhe interessa.

Muitos países desenvolvidos já estão abolindo a aprendizagem da escrita cursiva no contexto escolar (o assunto foi discutido na imprensa – “EUA passam a abolir ensino de letra de mão nas escolas”; este blog também registrou o tema).

Uma das pessoas que me criticou no episódio do papel almaço escreveu no post sobre essa notícia:

“Deus me livre que isso aconteça no Brasil, escrever é um habito saudável, deveria ser muito mais estimulado [quem está propondo o contrário?], o fazer exercícios com caneta e papel é que faz com que o individuo aprenda a ler e a escrever [será?]. Nem tudo o que é bom pros Estados Unidos é bom pro Brasil, em vez de imitarem esse absurdo, porque não copiam as leis que realmente funcionam, a tolerância zero, enfim várias medidas que seriam ótimas pro país, agora reclamar e querer denegrir uma escola só porque ela pediu pra ser feita uma redação a mão e num papel almaço, me desculpem, mas é pura ignorância.”

A seguinte afirmação, usada no debate, é falsa: “O método antigo é que valia a pena ser aplicado; a modernidade só trouxe alunos que não sabem escrever, nem ler, corretamente”. A tecnologia, aqui, é parte da solução, não do problema. O problema é causado por uma falsa concepção e uma metodologia inadequada.

Que os que me criticam me desculpem. Fazer uma redação é importante. Fazê-la à mão, um atraso de vida. Fazê-la numa folha de papel almaço, troglodismo puro. A escrita não se limita à escrita cursiva, muito menos numa folha de papel almaço. Ou será que meus críticos preferem também os lindos livros manuscritos da Idade Média à conveniência de um livro impresso ou, melhor ainda, digital, num Kindle ou num iPad? Não foi a modernidade que trouxe alunos analfabetos, não. A tecnologia não é inimiga da aprendizagem – da boa aprendizagem, da melhor aprendizagem. O que prejudica a aprendizagem é a visão estreita e incompetência de quem se propõe a ajudá-la ou apoiá-la.

Assim, o importante é aprender a escrever e redigir. Não necessariamente à mão, nem à máquina, nem no computador: simplesmente aprender. Vamos pensar no que é essencial e não nos fixarmos no que é acessório.

Em São Paulo, 18 de Agosto de 2011, transcrito aqui em 27 de Setembro de 2011

Educação, Tecnologia e Mudanças (ou: A Importância de Outras Tecnologias para a Educação)

Artigo que publiquei em 28/07/2011 no Blog das Editoras Ática e Scipione, no endereço

http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/educacao-tecnologia-e-mudancas.

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Mudanças educacionais inovadoras requerem visão e coragem. Para promovê-las, é necessário abandonar as soluções parciais e buscar soluções globais.

Este é o vigésimo artigo que publico nesta coluna. Vou retomar nele algumas das principais questões abordadas nos artigos anteriores e levar a discussão um pouco adiante.

É bastante plausível e verossímil a tese de que “nunca antes na história da humanidade” o ser humano passou por uma onda de mudanças tão ampla, profunda, radical, duradoura e acelerada como nos cerca de sessenta e cinco anos decorridos desde o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945.

Essas mudanças são sociais, culturais, políticas e econômicas e foram alavancadas, em grande medida (mas não apenas), pela inovação tecnológica, em especial pelo desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação, comumente chamadas de TIC.

Embora quando se fale em tecnologia na área da educação tenha-se em mente quase que exclusivamente as TIC, porque a comunicação e a informação são processos essencialmente ligados à educação e suas tecnologias, por conseguinte, são diretamente relevantes para a atividade educacional, é preciso reconhecer que as TIC não foram a única tecnologia relevante na deflagração e sustentação dessas mudanças.

Vou mencionar, apenas à guisa de ilustração, duas outras tecnologias que provocaram grandes mudanças no contexto em que a educação tem lugar.

Em primeiro lugar, a tecnologia dos transportes.

O aperfeiçoamento da aviação, especialmente com a introdução dos motores a jato e com a construção de aeronaves cada vez maiores e com maior autonomia de voo, literalmente encolheu o nosso mundo. Hoje encaramos com naturalidade o fato de que, saindo de São Paulo à noitinha, podemos estar em Nova York ou em Paris no outro dia bem antes do almoço (de madrugada, em Nova York, que está dois fusos horários atrás, e cedo, mas não tanto, em Paris, que está quatro fusos horários na frente). Mas nossos bisavôs considerariam isso algo próximo de um milagre, acostumados que estavam a cruzar o Atlântico apenas em navios, em viagens de várias semanas. Foi apenas em 1927 que Charles Lindbergh cruzou o Atlântico, de Nova York a Paris, sem parada, com um avião. Hoje é possível sair de casa no Brasil na sexta-feira à noitinha, passar o fim de semana em Nova York ou em Paris, e estar em casa de novo na manhã da segunda-feira, em tempo de ir para o trabalho. Futebolistas famosos que jogam na Europa e corredores de Formula 1 fazem algo mais ou menos assim, no sentido inverso. Os corredores de Formula 1 muitas vezes pilotam seus próprios jatos.

Isso tudo era inimaginável há algum tempo.

Essa revolução alavancada pela tecnologia dos transportes é significativa. Ela revolucionou não apenas o transporte de pessoas, mas também o transporte de mercadorias e de correspondência. (O transporte de correspondência seria, naturalmente, mais uma vez revolucionado com o aparecimento da tecnologia digital, com o e-mail e as mensagens instantâneas). Aquilo que hoje chamamos de globalização depende, naturalmente, das TIC e do fluxo rápido da informação – mas também depende do transporte rápido e confiável de produtos agropecuários, minérios e outras matérias primas, e mercadorias manufaturadas.

Em segundo lugar, a tecnologia médico-farmacológica.

Essa tecnologia, que produziu em 1961 a pílula anticoncepcional, tem parcela significativa de responsabilidade na facilitação das mudanças que ocorreram no comportamento sexual das pessoas (especialmente das mulheres) e nas atitudes da maioria das pessoas em relação ao sexo e aos sexos (hoje comumente chamados de gênero – expressão que acho horrível, mas não vou criticar aqui). A revolução sexual e a revolução feminista são creditadas, em grande medida, a essa pequena pílula.

Essa mesma tecnologia médico-farmacológica, apoiada por algumas políticas públicas, vem aumentando a duração média da vida humana. A engenharia genética poderá fazer com que, em alguns anos, uma pessoa típica possa viver o equivalente a quatro ou cinco vidas dos poetas românticos do século XIX: Castro Alves morreu com 24 anos; Casemiro de Abreu, com 21; Álvares de Azevedo, com 20; Gonçalves Dias morreu relativamente velho, com 41 anos!

Uma característica importante dessas mudanças, para a qual especialmente Alvin Toffler nos chamou a atenção com seus livrosChoque do Futuro (1970) e A Terceira Onda (1980), é a sua velocidade, que parece acelerar-se cada vez mais.

As mudanças que vimos descrevendo, e outras que facilmente poderiam ser incluídas no cenário, devem ter um grande impacto sobre a educação, pois elas afetam pelo menos os seguintes aspectos da atividade educacional:

a)      O contexto histórico-social mais amplo em que em que a educação acontece

b)      Os ambientes específicos em que a aprendizagem ocorre

c)      As metodologias, os materiais e os recursos que as pessoas usam para aprender

d)      O perfil dos alunos que chegam à escola

Não é preciso discorrer em detalhe sobre todos esses aspectos. Vou apenas ilustrar o que tenho em mente. As mudanças descritas, principalmente por causa de sua rapidez, acabaram por investir as coisas, os processos e os relacionamentos de certo caráter de impermanência, instabilidade, volatilidade. Antes, presumia-se que as coisas, os processos e os relacionamentos fossem razoavelmente permanentes, pelo menos estáveis, isto é, que não mudassem ou mesmo desaparecessem de uma hora para a outra.

Ou vejamos.

Há não muito tempo, a vida das pessoas tinha as seguintes características:

  • as pessoas viviam a maior parte de suas vidas em apenas um país (uma nação), em uma região de um país, ou até mesmo em uma cidade específica de uma região;
  • as pessoas falavam apenas uma língua, professavam apenas uma religião, frequentavam apenas uma igreja, filiavam-se a apenas um partido político, adotavam um código de valores estável, considerado permanente;
  • as pessoas se casavam apenas uma vez (a menos que enviuvassem), e certamente com alguém do sexo oposto, tinham apenas uma família, muitas vezes viviam a vida adulta inteira em apenas uma casa;
  • a mulher cuidava da casa e dos filhos e o homem trabalhava fora, não raro em apenas um emprego ou ramo de atividade durante toda a vida;
  • as pessoas tinham um tipo de lazer bem definido e se dava em um clube da cidade;
  • as pessoas tinham hobbies razoavelmente padronizados (colecionar selos ou moedas, ler, ir ao cinema);
  • as pessoas não tinham dúvida de que havia uma distinção clara entre lazer, aprendizagem e trabalho, que essa distinção se aplicava a todos, e que havia épocas distintas na vida para cada uma dessas coisas;
  • a “virtualidade” da vida era pequena (limitando-se à literatura e ao cinema);
  • enfim, as pessoas conviviam basicamente com apenas uma “cultura” – a menos que descendessem de imigrantes de cultura diferente.

Hoje, tudo mudou, sendo comum que:

  • as pessoas mudem de país (região de um país, cidade de uma região) ao longo de sua vida, ou mesmo morem em mais de um país (região de um país, cidade) ao mesmo tempo;
  • as pessoas falem diversas línguas e até mesmo tenham múltiplas nacionalidades;
  • as pessoas troquem de religião ou de convicção política com relativa facilidade, e, em alguns casos, passem a não professar nenhuma religião ou crença política distintiva;
  • as pessoas se casem mais de uma vez, algumas vezes com pessoas estrangeiras, que falam uma língua diferente e têm costumes significativamente distintos;
  • as pessoas se casem até mesmo com pessoas do mesmo sexo;
  • as crianças tenham mais de um “pai” ou “mãe”, múltiplos avós e uma família estendida enorme, formada por várias famílias que se estendem, sequencialmente, no tempo;
  • as crenças, os valores e os costumes das pessoas combinem elementos de diversas origens e culturas (em um verdadeiro multiculturalismo, muitas vezes no âmbito de uma só pessoa);
  • as pessoas exerçam várias profissões e tenham vários empregos ao longo da vida;
  • as pessoas não saibam exatamente onde começam e terminam o trabalho, a aprendizagem, o lazer;
  • as pessoas passem um tempo longo (e significativo) em relacionamentos virtuais nas redes sociais;
  • enfim, as próprias pessoas, e não apenas as nações, se tornem basicamente “multiculturais”.

É por isso que hoje em dia a residência, a igreja, o emprego, o casamento, até mesmo a família assumiram certo caráter de impermanência, instabilidade, volatilidade. Hoje é assim, amanhã pode ser diferente… Inspirando-me no que disse Marx, tudo o que era sólido parece se desmanchar no ar, tudo o que era sagrado parece ter sido profanado…”. Diante disso a própria noção de lealdade exclusiva a um país (patriotismo), uma cultura (identidade cultural definida), uma língua (a materna), a uma religião (a dos nossos pais), para não dizer a uma só pessoa (nos relacionamentos afetivos) se torna problemática. Na melhor das hipóteses há múltiplas lealdades que se substituem umas às outras, em série…

No entanto, apesar de todas essas mudanças que afetam o contexto em que a educação tem lugar, e que foram alavancadas por múltiplas tecnologias, os sistemas e as unidades escolares não parecem estar levando muito a sério o impacto dessas mudanças sobre a educação, em geral, e a prática escolar, em particular.

Mas elas afetam o contexto em que se educa, o ambiente em que se aprende, e os recursos e materiais com os quais se aprende. Mais e mais sério ainda: elas transformam a clientela que chega à escola. Todo o alarde que hoje se faz acerca dos nativos digitais tem como base o fato de que a escola precisa se transformar radicalmente para receber um aluno essencialmente diferente.

Como já vimos em outros artigos, há, em última instância, dois tipos de mudanças:

  • Mudanças incrementais, parciais, menores, lentas, superficiais, de longo prazo (em geral graduais)
  • Mudanças sistêmicas, radicais, maiores, rápidas, profundas, de curto prazo (em geral abruptas)

O que separa e diferencia um tipo de mudança do outro é o grau de inovação – a radicalidade – presente na mudança. Mudanças pouco inovadoras, que ficam perto da prática atual, reforçam o paradigma vigente. Mudanças muito inovadoras, que se distanciam bastante da prática atual, tendem a subverter e eventualmente a destruir o paradigma vigente.

Mudanças educacionais inovadoras requerem visão e coragem. Para promove-las é necessário, primeiro, desaprender muita coisa, abandonar as soluções parciais e buscar soluções globais, que transformem pelo menos os seguintes aspectos do trabalho educacional:

  • A Visão da Educação e da Aprendizagem e a Estratégia Pedagógica (para que, embora informadas pelo passado, sejam focadas no futuro)
  • A Liderança (para que seja iluminada e inspiradora em nível do sistema e das unidades locais)
  • Os Profissionais da Educação (para que sejam engajados e bem capacitados)
  • Os Ambientes de Aprendizagem (para que integrem, de forma natural e sem “costuras” visíveis, o formal e o não formal, o presencial e virtual, de forma rica, diversificada e flexível)
  • Os Recursos de Aprendizagem (para que sejam desafiadores, eficazes e envolventes)
  • A Comunidade (para que seja envolvida e apoiadora, em nível local, regional, nacional e até mesmo global)

Todas essas mudanças devem ocorrer mantendo-se o foco nos alunos, porque a clientela das escolas mudou significativamente. Para que os alunos possam continuar a ser, dentro da escola, o que já são fora dela, a saber, aprendentes motivados, ativos, interativos e colaborativos, é necessário que a escola mude, e mude radicalmente. Se isso não acontecer, a sua participação na aprendizagem das pessoas se tornará cada vez menor e menos significativa.

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Transcrito aqui em São Paulo, 12 de Agosto de 2011

Educação e Felicidade

Artigo que publiquei em 19/07/2011 no Blog das Editoras Ática e Scipione, no endereço http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/educacao-e-felicidade.

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As competências não cognitivas, como a sensibilidade, as emoções, a criatividade, os valores e as atitudes não parecem relevantes ao trabalho pedagógico realizado na escola convencional.

Nos mais de 30 anos em que fui professor de Filosofia da Educação para as primeiranistas do curso de Pedagogia da Unicamp (95% dos alunos eram mulheres), fiz um levantamento com as minhas turmas sobre possíveis objetivos para a escola. O levantamento foi adaptado de algo que fazia meu colega Morris J. Weinberger, daUniversidade de Bowling Green, em Ohio. Vi o levantamento quando ele passou um ano sabático na Unicamp, em meados da década de 70 (acho que em 1976).

O levantamento listava 20 possíveis objetivos para a escola de Educação Básica e pedia que as alunas hierarquizassem individualmente esses objetivos segundo sua preferência, depois de discutir durante cerca de 30 minutos com as colegas. Aquele que fosse o principal objetivo da escola ficaria em primeiro lugar na resposta do aluno – e, claro, o objetivo colocado em vigésimo lugar não seria algo que a escola devesse perseguir, na opinião de quem estivesse respondendo ao levantamento. Na sequência, fazia-se a média da classe.

Estes são alguns dos possíveis objetivos listados para a escola:

  • “Ensinar o aluno a pensar criticamente”;
  • “Contribuir para que os alunos alcancem autonomia na vida”;
  • “Ajudar o aluno a se conscientizar dos problemas sociais e a aprender a lutar por uma sociedade melhor e mais justa”;
  • “Conseguir que o aluno assimile bem os conhecimentos apresentados e obtenha bom rendimento nas provas”;
  • “Contribuir para que o aluno possa entrar numa boa universidade e oportunamente arranjar um bom emprego”.

“Ajudar os alunos a alcançar a felicidade” sempre apareceu em penúltimo lugar nas respostas de minhas alunas. Só perdia para o objetivo que aparecia consistentemente em último lugar: “Ajudar os alunos a alcançar sucesso financeiro (enriquecer)”.

Vou deixar a questão do enriquecimento de fora. No tocante à felicidade, porém, considero essa consistente colocação em penúltimo lugar do objetivo relacionado à felicidade uma aberração muito séria. Uso o termo conscientemente. E me indago, sem encontrar uma resposta clara, acerca do que teria levado as alunas a essa aberração.

A educação, quando entendida como um processo mediante o qual nos desenvolvemos como seres humanos, tem que ver com a construção de capacidades que tornam possível que:

  • Sonhemos nossos próprios sonhos;
  • Transformemos nossos sonhos em projeto de vida consistente e defensável;
  • Realizemos esse projeto de vida, tornando-o “vida vivida”.

Quando conseguimos fazer isso, sentimo-nos realizados, bem-sucedidos na vida. Em outras palavras, sentimo-nos felizes. Logo, o principal objetivo da educação, entendida esta como processo de desenvolvimento humano, é que alcancemos a felicidade. O resto é meio.

Confesso que esse entendimento da educação e do desenvolvimento humano é derivado mais da cultura grega clássica do que da cultura cristã que dominou o Ocidente por tanto tempo. Por isso esse entendimento chega a soar um pouco pagão, talvez quase hedonista (embora em nenhum momento se faça referência a prazer). Esse entendimento parte do pressuposto de que o homem está aqui nesta Terra para conquistar, nesta vida, a felicidade, entendida como autorrealização, porque essa felicidade é sua por direito.

Os gregos tinham um conceito, representado pelo termo eudaimonia, que exprimia perfeitamente esse sentido da vida, para o qual a educação deveria decididamente contribuir: autorrealização. Para que alguém a alcance, afirmavam eles, precisa, acima de tudo, aprender a ser humano…

1.) Autoconhecimento
Para aprender a ser humano o homem precisa, primeiro, conhecer-se a si próprio. O autoconhecimento envolve a capacidade de identificar e reconhecer, em si próprio:

  • Os pontos fortes (strengths), ou talentos, e os pontos fracos (weaknesses), ou áreas a monitorar;
  • Os seus interesses, gostos, preferências, atitudes, paixões, valores, áreas de sentido ou importância especial;
  • O seu pertencimento a grupos significativos, como, por exemplo, a família, a vizinhança ou comunidade local, a comunidade dos amigos e colegas, os que partilham ideias religiosas, políticas ou filosóficas afins, a etnia, a nação, o continente, ou mesmo o planeta, que ajudam a dar sentido à vida.

2.) Criatividade
Criatividade é a capacidade de imaginar coisas que não existem e de encontrar formas de criá-las, de encontrar soluções novas e originais para problemas, recentes ou antigos, de encontrar problemas onde nenhum era visto etc.

3.) Tomada de decisão
A capacidade de tomar decisões envolve reconhecer situações que exigem uma escolha, identificar e avaliar as opções e alternativas, e selecionar a melhor alternativa com base em valores, interesses pessoais ou sociais e objetivos de vida.

4.) Gestão estratégica da vida
A capacidade de gerir estrategicamente a vida envolve a definição de um projeto de vida, incluindo aspectos pessoais, sociais e profissionais, além da determinação dos passos básicos necessários para transformá-lo em realidade.

5.) Construção da identidade
O processo de construção da identidade desemboca na capacidade de se ver e reconhecer como ser humano único e irrepetível e de respeitar e apreciar os demais seres humanos pelas semelhanças e diferenças que exibem em relação a si próprio.

6.) Busca de autorrealização
Por fim, tudo isso culmina com a autorrealização, que é a determinação de persistir sempre na tentativa de realizar o projeto de vida, vivendo de tal modo que se possa, um dia, fazer jus à sensação de ver seus objetivos alcançados, de ter cumprido seu dever consigo próprio, de ter alcançado sucesso, de ter vivido a vida em sua plenitude. A felicidade é isso.

A busca de autorrealização é compatível com dificuldades e mesmo fracassos em determinados pontos da jornada. Ela envolve a capacidade de perceber quando o projeto de vida definido precisa ter correções de rumo, ou ser até mesmo substituído, e de identificar as razões que tornam as mudanças necessárias, mas tudo isso sempre sem perder de vista que o fim principal do ser humano é se realizar nas múltiplas dimensões em que a vida se desdobra, e que incluem, pelo menos, a vida pessoal, social e profissional.

*

Isso posto, é preciso reconhecer que a escola, como a conhecemos, aquela que podemos chamar de escola convencional, não parece ter muito a ver com nossa felicidade. Pelo contrário. Muitos de nós nos sentimos entediados e frustrados na escola. A escola convencional organiza suas atividades em aulas, e aulas são quase universalmente consideradas coisa extremamente chata.

Gostaria de sugerir duas razões para esse estado de coisas:

Em primeiro lugar, a felicidade tem componentes cognitivos (como a consciência de que você conseguiu realizar o seu projeto de vida, que é a face racional do seu sonho), mas também tem componentes não cognitivos: a sensação de autorrealização, o sentimento de satisfação pelo sucesso alcançado, o prazer que advém do reconhecimento de que você viveu a vida que queria viver em sua plenitude.

A escola convencional, porém, só foca o cognitivo. E não foca nem mesmo as competências cognitivas, preferindo apenas encher as cabeças de seus alunos de informações e conhecimentos. Como disse uma vez Sir Ken Robinson, a escola parece pressupor que seus alunos só têm cabeça, não têm coração nem corpo… E quer fazer da cabeça de seus alunos, como um dia disse Rubem Alves, umas cabeçonas obesas, com pouca agilidade… (Professores universitários, segundo Sir Ken Robinson, parecem achar que o único uso relevante de seus corpos é levar sua cabeça a conferências e congressos…).

As competências não cognitivas, a sensibilidade, as emoções, a criatividade, os valores, as atitudes, nada disso parece relevante ao trabalho pedagógico que tem lugar na escola convencional.

Alain de Botton, filósofo suíço, disse em entrevista à Folha de S. Pauloem 16/7/2011:

‎”Se uma pessoa for a uma boa universidade, como Harvard, Oxford ou Cambridge, e pedir aconselhamento sobre moral, ou se disser que quer aprender como viver, vão encaminhá-la para uma instituição psiquiátrica. As universidades acreditam que todos somos adultos racionais, que precisamos apenas de informação e dados, não de ajuda.”

Essa citação sugere que a felicidade tem que ver com a realização de nosso projeto de vida. Para definir um projeto de vida e transformá-lo em realidade precisamos fazer escolhas e, como vimos em artigo anterior, escolhas têm que ver com valores. Valores são algo de que a escola foge como o diabo da cruz. A escola, sob uma pretensa adesão à ciência, têm se preocupado com fatos, não com valores que possam orientar as escolas e as ações. É isso que a citação de Alain de Botton sugere.

Em segundo lugar, a felicidade é algo que se alcança através da ação consciente e intencional.  Há os que dizem, com verdade, que a felicidade não é apenas uma linha de chegada, mas também todo o processo que leva a essa linha. O caminhar é tão importante quanto o destino, porque, ao desejar chegar a um determinado lugar, ao desejar transformar um projeto de vida em realidade, desejamos, também, os meios que nos levarão lá, os processos que permitem que o projeto de vida se concretize em nossa vida.

A escola convencional não dá quase nenhuma importância ao fazer, ao saber fazer, ao desenvolvimento de competências e habilidades. Na escola tradicional espera-se que o aluno fique passivamente quieto e que preste atenção ao que diz o professor. Assim sendo, há um claro descompasso entre a vida e a escola, entre a busca da felicidade e o que se aprende nos bancos escolares, entre aspectos cognitivos e aspectos vitais de nossa vida (para tomar emprestada uma frase de Hugo Assmann).

Ser feliz (diferentemente de estar contente) é uma condição duradoura, não um estado momentâneo. É feliz aquele que, sobre o alicerce de seus valores, é capaz de definir seu projeto de vida e transformá-lo em realidade. Em outras palavras, feliz é aquele cujos valores determinam os seus sonhos e que é capaz de transformar os seus sonhos em realidade. A felicidade existe – não é uma quimera.

O objetivo maior de nossa vida não é sobreviver: é alcançar a felicidade. Viver a vida em sua plenitude é ser capaz de fruir a vida, ser feliz… O papel fundamental da educação é nos ajudar a viver a vida que, com base em nossos valores, escolhemos para nós mesmos.

O que nos traz a felicidade é, portanto, a realização de um projeto de vida defensável, alicerçado em valores: não o mero alcançar daquilo que simplesmente queremos.

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Tomando emprestada uma ideia de Karl Popper, o que torna a vida o valor supremo é o fato de ela ter duração limitada e desconhecida: pode terminar a qualquer hora… Os jovens em geral não se dão conta disso: pensam que têm todo o tempo do mundo. São os mais velhos que em geral percebem que seu recurso mais valioso não é dinheiro ou qualquer outro: é tempo. Tempo de vida.

O tempo é um recurso interessante… É igual para todos: um dia tem 24 horas para todo mundo, rico ou pobre, culto ou inculto, britânico, suíço ou brasileiro. No entanto, uns conseguem fazer muita coisa em um dia, outros veem os dias passar sem conseguir fazer grande coisa…

Administrar o tempo não é tornar-se escravo do tempo, mas tornar-se senhor dele. Administrar o tempo não é ficar obcecado com o relógio: é definir prioridades e levá-las a sério. Tem tempo, não aquele que não faz nada, mas aquele que sabe administrar prioridades e fazer o que realmente importa para ele, no quadro de seu projeto de vida.

Não somos donos de boa parte de nosso tempo – pois o vendemos (em troca de dinheiro). Mas a importância do dinheiro está no fato de que ele também nos permite comprar tempo.  A solução do dilema está em conseguir ganhar dinheiro fazendo o que realmente importa.

Ser produtivo, portanto, não é estar sempre ocupado. (Na verdade, gente muito ocupada em geral não é muito produtiva). Ser produtivo é saber administrar o tempo, ter prioridades, ter sentido de direção, saber para onde se vai.

Administrar o tempo, em última instância, é planejar estrategicamente a vida. Quem dentre nós tem um projeto de vida, ou seja, realmente sabe o que deseja e espera da vida? Quem dentre nós tem um plano para onde deseja estar na vida daqui a 5, 10, 20, 50 anos? “Quem não sabe para onde vai nunca vai chegar lá – ou acaba indo para qualquer lugar” – vide Alice no País das Maravilhas.

A importância da administração do tempo está em que, quando acaba o nosso tempo, acaba a nossa vida. Quem administra o tempo ganha vida, ainda que viva o mesmo tempo que os outros. Prolongar a vida não é algo sobre o qual tenhamos muito controle. Mas ganhar mais vida, administrando o tempo, está ao alcance de todos!

Para planejar estrategicamente a vida o primeiro passo é determinar onde estamos e escolher aonde queremos chegar. Escolher aonde queremos chegar é definir um projeto de vida. A natureza da educação tem a ver com mudança: transformar o ser incompetente, dependente, inautônomo, arresponsável que nasce em um adulto capaz, competente, livre, autônomo para escolher sua vida e responsável pelas escolhas que faz.

Muitos de nós tentamos mudar os outros, ou as instituições, antes de entender que a mudança começa conosco: em realidade, só conseguimos mudar a nós mesmos. A educação deve ser voltada para a vida, nos capacitar para viver a nossa vida. Isso envolve a construção de competências, habilidades, valores, atitudes – e a aquisição de conhecimentos e informações. Mas a competência central é a de planejar estrategicamente a vida – para a qual a administração do tempo é essencial. Sem essa competência, ninguém será realmente feliz.

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Transcrito aqui em São Paulo, 12 de Agosto de 2011

50 Anos de Carreira

Todo mundo anda fazendo 50 anos de carreira ultimamente… O Erasmo Carlos, o Tremendão, foi o último, no fim de Junho deste ano. Mas o Roberto Carlos fez antes dele, em 2009. O Renato Aragão, por sua vez, emplacou 50 de palhaçadas em 2010. O Chico Buarque também andou fazendo, se bem me lembro. E assim vai. Eu já era gente bem crescidinha quando eles todos começaram.

É um exercício interessante tentar definir o início da carreira da gente. Será que a gente tem consciência, na hora que está fazendo algo, que aquilo que a gente está fazendo vai ser o primeiro passo de uma longa carreira? Ou será que a gente só define o início da carreira em retrospectiva, depois que descobriu o que a gente realmente fez na vida?

Ao ver tanta gente mais ou menos da minha idade comemorando 50 anos de carreira, resolvi pensar sobre a minha carreira. E de pronto me envolvi em grandes dificuldades.

O grande problema que tive de enfrentar foi: qual é (foi, tem sido) a minha carreira? É possível dizer que seja a de Professor Universitário. Mas se é isso, quando a comecei? No dia em que dei minha primeira aula de Lógica na California State University at Hayward (hoje at East Bay), em Hayward, CA, EUA, no Outono americano de Setembro de 1972? Ou será que foi quando recebi a carta me oferecendo o emprego? Além disso, não gostei da ideia porque, se fosse isso, eu só iria comemorar 50 anos de carreira, querendo Deus, em 2022, daqui a onze longos anos. E se eu chegar a 2022, será que chegarei no exercício dessa carreira, para que possa comemorar 50 anos dela?

Pensei um pouco mais e resolvi resolver o problema de vez. Determinei que a minha carreira é a de Escritor – e decretei que ela começou em 1961, quando produzi meu primeiro trabalho escrito, enquanto cursava o primeiro ano do Curso Clássico do Instituto “José Manuel da Conceição” (JMC), em Jandira, SP. O trabalho teve o título “Pobre Muda de Dono mas não Muda de Sorte: Inspirado nas Fábulas de Esopo e de Fedro”, e foi escrito para a disciplina Língua Portuguesa, ministrada por meu caro mestre, Rev. Joaquim Machado. Eu ainda tenho esse trabalho, manuscrito, passado a limpo e em rascunho (este a lápis), redigido em folhas de caderno, com data de 9 de Abril de 1961. 

Antes desse trabalho creio que só escrevi cartas para a minha avó Angelina, para a minha Tia Alice e para os meus primos Anello e Márcia. Lembro-me também de ter escrito umas bobagenzinhas adolescentes nos Livros de Recordação de minhas primas Irene e Idília. Creio que elas me pediram para escrever um pouco por condescendência, pois eu era pouca coisa mais do que um pirralho na época e não merecia a honra… Além disso era primo, e o tal livro era destinado a avaliar os méritos literários (e a caligrafia, coisa importante então) dos diversos pretendentes… Principalmente a Irene tinha uma fila deles. Esnobou a todos e quase ficou solteirona…

Assim, fica para todo sempre decidido que o meu primeiro trabalho para o curso do “Machadinho” (era assim que nos referíamos ao professor, quando a uma distância confortável) foi o início da minha carreira de escritor, em 9 de Abril de 1961. Eu tinha dezessete anos e meio.

Assim, também estou comemorando este ano 50 anos de carreira. Foi nesse abençoado ano de 1961 que eu fui estudar no JMC e comecei minha vida de adulto – e minha vida profissional, pois carreira é um negócio pelo menos em parte profissional. Foi nesse ano que também preguei meu primeiro sermão – mas essa foi uma outra carreira que abandonei há muito tempo. Meus sermões, agora, são todos por escrito, aqui neste blog… E foi nesse ano que, no auge dos meus 17 anos, e mais ou menos na mesma data, eu me apaixonei seriamente pela primeira vez, pela Reaci Camargo, de Fartura. (O Rev. Elizeu Cremm, hoje meu pastor, então apenas meu amigo e colega, também se apaixonou, ele pela Marly Medeiros, que hoje é esposa dele. No caso deles, a coisa durou. No meu caso, não passou do primeiro ano na escola).

Depois desse primeiro trabalho, escrevi vários outros, em especial para o Rev. Renato Fiuza Telles (que chamávamos de “Renatinho”), meu professor de Literatura Portuguesa e Brasileira. Um deles, “As Cartas de Amor de Soror Mariana Alcoforado para o Cavaleiro de Chamilly”, me deu muito trabalho, pois precisei ir três vezes até a Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo, para conseguir ler o livrinho inteiro com as cartas apaixonadas da freirinha portuguesa que se perdeu de amor por um oficial francês. O trabalho me marcou tanto que hoje tenho duas cópias do livrinho, uma antiga, igual à que havia na biblioteca, a outra editada recentemente e vendida, por incrível que pareça, numa banca de jornal da Av. Paulista, em frente ao Conjunto Nacional. Outros trabalhos: A Carta de Achamento de Pero Vaz de Caminha (em que ele pede ao Rei um emprego para o genro), e mini-ensaios sobre Damião de Góis e sobre Oliveira Martins.

No curso de Literatura Brasileira – que também era ministrado pelo Renatinho – escrevi sobre Casemiro de Abreu (“O Poeta do Exílio”) e sobre Machado de Assis, e elaborei um sofisticado trabalho (para alguém de 18 anos) sobre Dom Casmurro de Machado de Assis: “Capitu, Culpada ou Inocente?” O título parecia original naquela época. Hoje é batido.

No curso de Redação em Língua Portuguesa, ministrado, nos dois semestres, em 1963, pelo Rev. Joaquim Machado, que era pai da minha amiga Dorotéa Machado Kerr, organista e maestrina de fama internacional (já tocou até para o Papa!), escrevi um trabalho sobre “Brasília, Capital da Esperança” (hoje reconheço aí um chavão), a propósito da inauguração da (então) nova capital… Esse trabalho foi submetido a um concurso de melhor redação (que, infelizmente, não ganhei – não me lembro quem venceu). Para avaliação pela banca, assinei-o com um pseudônimo: Dias de Caxuque.

Meus dotes literários e oratórios foram, quero crer, apreciados pelos meus pares, pois fui escolhido por eles para ser o Orador da Turma, quando de nossa formatura, em Novembro de 1963 – mês da morte de John Fitzgerald Kennedy. (No dia em que ele morreu, 22 de Novembro, nós, os formandos do Clássico e do Ginásio, estávamos em nossa Viagem de Formatura, naquele dia em uma praia em Florianópolis. Fomos levados por um ônibus da Viação São João da Boa Vista – São Paulo, dirigido por um motorista que era meu xará).

Em homenagem aos meus 50 anos de carreira, resolvi compilar uma lista de tudo o que já escrevi e, de alguma forma, divulguei. Incluí na lista trabalhos de escola, como os que acabei de mencionar (e outros) e os escritos na Graduação, no Mestrado e no Doutorado. Tenho-os todos. Incluí, naturalmente, os trabalhos publicados e os de tradução, bem como os divulgados apenas pela Internet – inclusos aí os artigos do meu blog principal, Liberal Space, onde escrevo agora, que já chegam, com este aqui, a 735. Ao todo, chegaram a 973 unidades. Se eu me cuidar bem, chego à marca do Pelé: mil gols literários…

Concluí, ao analisar os números, que, apesar de minha idade quase vetusta, a Internet liberou os meus dotes de escritor e me deixou soltinho, livre para escrever e até mesmo criar um certo estilo…

Como ninguém mais, além de mim, iria se lembrar de tudo isso, resolvi me prestar essa merecida homenagem e comemorar, em 2011, o meu laborioso e produtivo ano de 1961 e os meus 50 anos de carreira como escritor.

Em São Paulo, 13 de Julho de 2011

GPS, Instrumentos de Navegação e Guias de Viagem

Foi publicado ontem um novo artigo meu no Blog das Editoras Ática e Scipione. Transcrevo-o aqui, como sempre.

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No meu penúltimo artigo falei sobre escolhas. Neste, vou discutir algo que poderia ser descrito como tecnologia de apoio à escolha – na área de viagens. Antes, porém, farei um breve preâmbulo, em que darei continuidade à discussão já iniciada acerca de escolhas. E, no final, procurarei aplicar a discussão à área da educação.

1. Uma tese sobre escolhas

Em condições normais, a maior parte das pessoas prefere poder fazer uma escolha a não ter nenhuma para fazer. E, podendo fazer uma escolha, prefere, em princípio, ter mais opções do que menos para, dentre elas, escolher uma…

É verdade que opções demais muitas vezes podem tornar uma escolha mais difícil, e, de vez em quando, até quase impossível, em muitos casos nos paralisando. Basta ver uma criança numa loja de brinquedos ou numa sorveteria. Parece impossível que ela seja capaz de escolher apenas um brinquedo: ela gostaria de levar todos. Numa sorveteria self-service, com umas quatro dezenas de sabores e outro tanto de coberturas e extras, ela também fica sem saber o que fazer, querendo pegar um pouquinho de cada coisa, e, no processo, quem sabe, enchendo a taça a tal ponto que dificilmente conseguiria comer tudo. (Um professor universitário numa megalivraria também enfrenta dificuldade semelhante: fica paralisado, sem saber qual livro, ou quais livros, levar. Gostaria de levar todos. Como não pode, por falta de dinheiro ou espaço em casa, fica tenso… Conheço alguns que até enfrentam ataques de enxaqueca nessa situação).

Entretanto, feita essa ressalva, a tese original parece se sustentar: a maior parte das pessoas prefere ter a não ter escolha, ter mais a ter menos opções. No entanto, é preciso fazer uma qualificação. O objetivo deste artigo é discutir essa qualificação. A qualificação explica porque sistemas que fornecem roteiros ou instruções passo a passo são tão populares hoje. Eles nos permitem delegar a eles uma boa parte de nossas escolhas.

2. GPS

Vou começar discutindo uma tecnologia que está se tornando extremamente popular e barata: o GPS, ou Global Positioning System (Sistema de Posicionamento Global). Esta fantástica tecnologia é materializada em um pequeno equipamento que envia e capta sinais. Esse equipamento, apelidado de GPS, envia sinais acerca de onde está localizado em cada momento (mesmo que esteja em movimento). Esses sinais são captados por satélites situados ao redor da Terra, que identificam a localização do GPS e lhe enviam informação acerca das coordenadas de latitude e longitude em que o GPS está posicionado. Com base nessas coordenadas, o software do GPS é capaz de identificar em um mapa digital, contido em uma base de dados armazenada no próprio equipamento, o ponto preciso do mapa em que o equipamento se encontra.

A maior utilidade desse equipamento está em permitir que o seu usuário defina um destino, para o qual o GPS fornece uma rota, detalhada, passo a passo, a partir do local onde o equipamento se encontra. Assim, o GPS é uma excelente – hoje indispensável – ferramenta para que motoristas encontrem o caminho em uma grande cidade ou em qualquer contexto onde o trânsito seja complexo (isto é, em que há várias opções para chegar de um lugar a outro). Outra importante utilidade do GPS está em sugerir, com base em uma base de dados armazenada no próprio equipamento, quais serviços (ou outras coisas, como radares) estão presentes na vizinhança de qualquer lugar que selecionemos como referência (como, por exemplo, o local em que nos encontramos no momento): postos de serviço, supermercados, farmácias, cinemas, shoppings, etc. O usuário pode também identificar as coordenadas de destinos frequentemente utilizados, como a sua casa, o seu local de trabalho, ou qualquer outro ponto de interesse (POI, Point of Interest), e rotulá-las com descrições simples (Casa, Serviço, Sítio, etc.).

A principal função do GPS, portanto, é fabricar rotas passo a passo no trânsito para destinos fornecidos pelo usuário. Quando estamos usando uma rota, como as fornecidas pelo GPS, nós abrimos mão, até certo ponto, do direito de fazer escolhas em relação àquelas que vamos seguir. Delegamos (no caso) ao GPS a responsabilidade de fazê-las por nós, porque sabemos que, não importa quão complicado o caminho que leva ao destino desejado, o GPS nos levará lá.

No entanto, mesmo um GPS nos deixa espaço para muitas escolhas.

Em primeiro lugar, o GPS não escolhe o nosso destino: isso somos nós que temos de prover. O GPS não faz nem mesmo sugestões. Quando procuramos descobrir que serviços estão disponíveis na região onde estamos, ele nos mostra todos os serviços, classificados por categoria. Cabe a nós escolher a categoria e, dentro dela, o serviço desejado.

Em segundo lugar, o GPS nos deixa configurar o equipamento com nossa escolha do tipo de rota que preferimos: a rota mais curta, a rota mais rápida, a rota mais simples (quase sempre a rota mais rápida, que faz uso das grandes avenidas), e a rota mais pitoresca (em que há coisas interessantes ou vistas bonitas para desfrutar).

Em terceiro lugar, qualquer que seja a configuração que adotemos para a rota (mais curta, mais rápida etc.), o usuário sempre tem a opção de não seguir, no detalhe, a rota sugerida pelo GPS para adotar, em contextos específicos, um caminho que conhece bem e prefere seguir. O GPS, disciplinadamente, arranja o restante da rota para acomodar a sua preferência.

Ou seja, mesmo que escolhamos usar um GPS, que opera na base de uma série de roteiros passo a passo, ainda temos escolhas. E elas se situam principalmente no plano mais importante, o dos fins: a escolha do destino. Mas ainda podemos chamar para nós algumas escolhas acerca de meios (o tipo geral de rota, por exemplo, ou a rota específica em um determinado lugar).

Uma lição a tirar da discussão até aqui é que o GPS, com seus roteiros passo a passo, pode ser extremamente úteis no plano dos meios. E isso não só na área do trânsito. Um roteiro passo a passo para instalar ou utilizar um software complicado, ou para corrigir um problema de configuração num computador, é, como a rota de GPS, algo bastante útil. Eu mesmo, que tenho razoável experiência com computadores, de vez em quando preciso ligar para um Centro de Apoio (Help Desk) de banco para ser teleguiado na instalação de um certificado de segurança ou de um plug in, porque as configurações de segurança de meu computador tornam virtualmente impossível instalar o dito cujo sem ajuda externa.

A questão se torna mais complicada, porém, se adentramos o plano do fim. Falaremos mais sobre isso adiante, na Seção 5.

3. Instrumentos de navegação

Pode-se dizer que o GPS é um instrumento de navegação. Mas aquilo que eu chamo instrumento de navegação é algo um pouco diferente de um GPS.

Antonio Carlos Gomes da Costa, falecido em março deste ano, gostava de citar o seguinte verso de Gilberto Gil, retirado de sua famosa canção Aquele Abraço:

“Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço,
A Bahia já me deu régua e compasso.
Quem sabe de mim sou eu.
Aquele abraço.”

Gilberto Gil não deixa dúvida de que o caminho dele pelo mundo é ele que traça. Isso quer dizer que ele não só escolhe seus destinos, mas também traça o percurso que vai seguir pela vida para chegar ao seu destino. Para traçar o seu percurso, ele não o GPS, mas outra tecnologia: instrumentos de navegação. No caso, os instrumentos de navegação que ele menciona são régua e compasso.

Tenho para mim a impressão que uma pessoa como Gil não gosta de GPS. Ele gosta não só de escolher o seu destino (como o faz o usuário de GPS) como também de escolher o caminho que vai ser trilhado, isto é, a rota. Mas, para definir a rota, ele usa certas ferramentas tecnológicas: régua e compasso.

Fico com a nítida impressão de que Gil escolheu régua e compasso porque compasso rima com abraço. Só por isso. Na área de navegação, parece-me que mapa e bússola são instrumentos de navegação muito mais indicados para essa tarefa.

Uma bússola nos indica o Norte, e, a partir dele, podemos descobrir a direção geral em que devemos seguir para chegar aonde queremos chegar. Um mapa nos permite escolher caminhos específicos. Podemos escolher, com a ajuda do mapa, um caminho rápido e fácil, seguindo por autoestradas com pedágios. Ou podemos escolher, com a ajuda do mesmo mapa, um caminho mais sinuoso, pelas montanhas, mais longo, mais lento – mas muito mais bonito (e sem pedágio): aquilo que os americanos chamam de scenic route, rota cênica.

Um mapa (dependendo do seu nível de detalhe) também nos ajuda a descobrir onde há obstáculos ou empecilhos nas rotas que gostaríamos de escolher: montanhas muito altas, com apenas umas poucas passagens (quem sabe um só túnel), ou um rio, que é preciso cruzar, mas que só tem uma ou outra ponte, aqui e ali.

O GPS nos permite escolher o nosso destino. Mas instrumentos de navegação, além de nos permitir escolher o nosso destino, nos ajudam a escolher a rota, fornecendo-nos apenas a direção geral, as rotas possíveis, e os obstáculos ou empecilhos que podemos encontrar.

4. Guias impressos de viagem

Um guia de viagem impresso nos descreve vários possíveis destinos dentro de um “macrodestino” que escolhemos. Digamos que queremos conhecer a França – esse é o macrodestino. O guia de viagem nos descreve vários possíveis destinos específicos na França. Ou pode ser que o nosso macrodestino seja Paris. O nosso guia de viagem nos descreve vários possíveis destinos (as diversas atrações da cidade), dentro desse macrodestino. Cabe a nós escolher o destino que nos parece mais interessante, dentro do leque de opções fornecido pelo guia de viagem.

Raramente um guia de viagem se preocupa em nos fornecer rotas, percursos, itinerários, no formato passo a passo. O máximo que ele faz é sugerir que, se você está numa região (o 16e Arrondissement, por exemplo), visitando o Trocadéro, há, na vizinhança, várias outras atrações que você pode visitar, como, por exemplo, Le Bois de Boulogne ou La Maison de la Radio.

Para chegar ao destino escolhido, é possível usar um carro equipado com GPS ou, então, usar um mapa e uma bússola…

5. Aplicação à educação

No meu último artigo, falei um pouco sobre meu itinerário de aprendizagem e minha trajetória intelectual. Terminei com uma citação de um biógrafo de John Dewey, que tomo a liberdade de transcrever, porque é relevante como introdução ao presente tópico.

“Sempre aberto às ideias dos outros, Dewey, no entanto, passava essas influências pelo crivo de seu pensamento e sentimento [i.e., de sua experiência] de modo a dar-lhes sentido e a transformá-las em algo seu, muito pessoal. Ele nunca se esqueceu de uma dívida intelectual ou pessoal significativa, em áreas que considerasse realmente importantes. Mas ele nunca permitiu que as várias ideias que o influenciaram ficassem separadas umas das outras, isoladas, como se ele fosse apenas um conjunto de espelhos que refletisse o pensamento dos outros. Ele armazenava tudo o que aprendia, mas, deixando de lado peculiaridades das fontes que o influenciaram, transformava as ideias dos outros em algo tipicamente seu”. (Jay Martin, The Education of John Dewey: A Biography [Columbia University Press, New York, 2002] p.131).

Quando recebemos a influência intelectual de outra pessoa (em geral um autor, um professor, um padre ou pastor, ou um parente), ficamos com uma dívida intelectual para com ela. Nesse caso, prestamos-lhe uma homenagem se o nosso pensamento, decorrente dessa influência, não é apenas uma cópia ou um espelho do pensamento da pessoa que nos influenciou. Para usar as palavras de Jay Martin, não devemos ser um conjunto de espelhos que apenas reflita o pensamento dos outros. Precisamos, como eu disse naquele artigo, ingerir, mastigar e digerir aquilo que tomamos dos outros, para que esse legado entre em nosso sangue a passe a integrar o nosso DNA intelectual.

Nesse contexto, preocupa-me a tendência, herdada dos Estados Unidos, mas bastante comum em nossa cultura, de, para tudo, não só para percursos de uma viagem, elaborar um roteiro passo a passo, um step by step. O passo a passo, como vimos, é um algoritmo, uma receita, que prescreve como devemos fazer algo “nos mínimos detalhes”.

Essa tendência se manifesta também em uma série de livros americanos, em geral manuais de instrução ou de vida, que pretendem ensinar os seus leitores, da maneira mais simples possível, a fazer alguma coisa. Eles chegam a se descrever como “à prova de idiotas”. Isso quer dizer que, qualquer idiota, seguindo o livro, é capaz de fazer aquilo que se pretende ensinar.

Mas justifica-se um passo a passo para professores darem aula de suas matérias? Ou seria melhor, num caso assim, usar um guia de viagem, que deixa ao professor não só a tarefa de expor vários possíveis destinos para os seus alunos, e de explicar a eles como usar os mapas e as bússolas, incentivando-os e ajudando-os a escolher seus próprios destinos e os seus itinerários de aprendizagem?

Alguns dos chamados “sistemas de ensino” existentes no mercado parecem não passar de um conjunto de roteiros passo a passo. Felizmente não se anunciam como idiot proof… Mas, à primeira vista, parecem não ser muito mais do que isso. Melhor seria que funcionassem mais como guias de viagem e instrumentos de navegação, deixando aos alunos a tarefa prazerosa de escolher os destinos que vão visitar e de escolher as rotas mais interessantes.

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Em São Paulo, 12 de Julho de 2011

Itinerários de Aprendizagem e Trajetórias Intelectuais

O décimo sétimo artigo meu no Blog das Editoras Ática e Scipione foi publicado ontem. Vide a URL original: http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/itinerarios-de-aprendizagem-e-trajetorias-intelectuais 

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Li uma vez a história de um avô que passeava carregando a neta nos ombros. Ao encontrar um amigo, este resolveu brincar com a criança e elogiou-lhe o tamanho. Ao elogio a menina respondeu: “Bem, muito obrigado, mas nem tudo disso que o senhor vê sou eu”.

(Peguei essa história de terceira mão. Ela é mencionada no livro The Schools our Children Deserve: Moving Beyond Traditional Classrooms and “Tougher Standards”, de Alfie Kohn [Houghton Mifflin Company, New York, 1999, 2000], p. 333. O autor afirma que a ouviu contada pelo antropólogo Lionel Tiger, que dizia que o caso se passara com um não identificado professor e sua neta…).

Ao chegar perto de vinte artigos neste blog, lembrei-me da observação da menina, e concluí que ela é relevante aqui. Pouca coisa do que discuti aqui é ideia original minha. Ao especialista na área, isso ficará imediatamente evidente. Para o leigo no assunto, porém, isso deve ser clara e formalmente declarado – muito embora tenha, nos diversos artigos, feito referência a vários autores que me serviram de fonte e inspiração.

Nenhum trabalho intelectual é uma produção totalmente individual. Há dívidas com pessoas que já morreram, em alguns casos há muito tempo. E dívidas com pessoas ainda vivas.

Minha formação pessoal se deu, formalmente, na teologia e na filosofia. Tenho dívidas intelectuais enormes com alguns filósofos famosos, aos quais dediquei mais atenção em minha formação. Com nenhum deles concordo inteiramente, mas todos os que vou citar deixaram em mim influências marcantes.

Procurarei, aqui, fazer um breve relato de meu itinerário de aprendizagem, que define a minha trajetória intelectual. Primeiro falarei das influências de alguns grandes nomes da filosofia, todos eles já falecidos. Depois falarei dos vivos.

Comecemos no começo.

Sócrates, o mestre de Platão, sempre chamou minha atenção para os seguintes fatos:

Primeiro, como crianças, ideias são sempre concebidas em interação humana. Não nascem por geração espontânea.

Em segundo lugar, da mesma forma que a mulher que dá à luz uma criança frequentemente precisa da ajuda de um parteiro (ou obstetra), nós também precisamos de parteiros e obstetras intelectuais que nos ajudem a dar à luz as ideias que concebemos.

Em terceiro lugar, como a criança que nasce, nossas ideias precisam se desenvolver, o que novamente se dá através da interação humana, do diálogo, do embate de ideias, da discussão crítica.

O legado de Sócrates pode, portanto, ser resumido na seguinte frase: o foco da educação deve estar no aprendente: é sobre ele que deve brilhar a spotlight. A melhor metáfora a descrever a função do professor é “parteiro de ideias” – de ideias dos outros, bem entendido.

Aristóteles, aluno de Platão (por sua vez, discípulo de Sócrates), me marcou pela ênfase que deu ao fato de que as ideias que concebemos devem estar ancoradas na experiência e à necessidade de que, ao tratar essas ideias, respeitemos a lógica e razão. (Entendo a razão com o conjunto de procedimentos e métodos, que certamente incluem a lógica e o respeito à evidência, que impedem que nossos conceitos, juízos e decisões sejam totalmente arbitrários).

Aristóteles também me convenceu de que algumas de nossas ideias são objetivamente verdadeiras, e que o relativismo e o ceticismo se destroem a si próprios (são self-defeating, como se diz em inglês).

David Hume, o grande cético (não-radical, convenhamos) da época do Iluminismo, sobre quem escrevi minha tese de doutoramento em 1970-72, me ajudou a evitar o dogmatismo ao insistir que tudo, até mesmo nossa experiência sensorial, a lógica, a racionalidade e a crença na posse da verdade, deve ser encarado com certa dose de ceticismo.

Mas Hume não foi capaz de fazer de mim um cético total, nem um relativista, nem um descrente na experiência sensorial, na lógica, na razão e na existência da verdade.

Hume e seu melhor amigo, Adam Smith, foram, porém, capazes de me convencer de que existe algo que é apropriado chamar de natureza humana – que nunca se desrespeita impunemente, isto é, sem pagar um alto preço, especialmente quando se trata da organização da sociedade.

E os dois, mas principalmente Adam Smith, neste caso, me ajudaram a me tornar um liberal estilo clássico (mas nisso tiveram a ajuda de muitos outros, em especial de Ayn Rand).

Karl Popper, crítico de Hume em alguns aspectos, mas seguidor dele em outros, me ajudou a ver o processo de construção do conhecimento humano – incluindo o conhecimento científico – como algo hipotético, conjetural, falível, nunca final e definitivo, mas que não deixa de ser, por isso, objetivo e racional.

Popper ainda me ajudou a entender a continuidade que existe entre a ciência e o senso comum, bem como entre a ciência e a filosofia (ambas dependentes da razão crítica). Popper também me ajudou a entender porque a racionalidade crítica só pode prosperar numa sociedade aberta e livre.

Da mesma forma que Sócrates foi “avô intelectual” de Aristóteles, Popper foi o meu: ele foi orientador de doutorado do meu orientador de doutorado, William Warren Bartley III, falecido prematuramente.

Por fim, a minha influência maior, Ayn Rand, que, além de reforçar – de forma inigualável – os temas aristotélicos na filosofia do século 20, me fez ver algo que Popper já havia me mostrado: que a racionalidade só pode prosperar e frutificar em uma sociedade radicalmente aberta e livre, que valoriza o indivíduo e seus direitos, básicos e fundamentais, quais sejam: o direito à vida, o direito à liberdade (de expressão, locomoção, associação, contrato, e de busca da felicidade como ele a entender), e o direito à propriedade dos frutos do trabalho.

Com sua inestimável ajuda consegui integrar minha metafísica, minha epistemologia, minha ética, e minha filosofia política.

Em 5 de Fevereiro de 2005 o mundo racional e livre comemorou 100 anos do nascimento dessa grande filósofa e insuperável romancista, nascida na Rússia como Alyssa Zinovievna Rosenbaum, mas que cedo percebeu que não seria capaz de manter sua racionalidade numa sociedade sem liberdade, como era a sociedade russa depois da tomada do poder pelos comunistas em 1917, e, por isso, fugiu para os Estados Unidos, onde alcançou fama e sucesso e se tornou profundamente influente.

Esses filósofos são os principais pilares em cima dos quais minhas ideias e minha visão de mundo foram construídas. Mas ainda faltava integrar à minha visão de mundo a minha filosofia da educação.

Aqui, registro apenas uma influência estrangeira digna de nota.

John Dewey é, a meu ver, o maior filósofo da educação do século 20 (embora discorde dele em muitos pontos importantes) – talvez o maior desde Jean Jacques Rousseau, no século 18. Dewey me ajudou a perceber três aspectos essenciais da educação, que estão refletidos claramente nos artigos que escrevo neste blog.

Primeiro, a educação tem que ver com a criança, não com o professor, e, portanto, com a aprendizagem, não com o ensino.

Segundo, a educação é um processo natural de desenvolvimento humano, de “dentro para fora”, por assim dizer, não um processo artificial de imposição à criança, “de fora para dentro”, de um conjunto de informações e conhecimentos.

Terceiro, a forma mais eficaz e eficiente de ajudar a criança a aprender – e, portanto, de ajudá-la a se desenvolver – é respeitando, e não subjugando, seus interesses. Especialmente num contexto escolar, esse respeito se traduz na chamada aprendizagem ativa, que é promovida através da metodologia de projetos de aprendizagem (metodologia que foi introduzida no mundo pedagógico por um discípulo de Dewey, William Heard Kilpatrick).

O meu envolvimento com o Instituto Ayrton Senna a partir de 1999 me ajudou, de certo modo, a “traduzir” John Dewey para o contexto brasileiro atual, sem violar os demais elementos de minha visão filosófica, que acabei de ressaltar.

O meu envolvimento com o Instituto Lumiar me permitiu ver que o que penso não é utopia: a Escola Lumiar é, em sua concepção, e, espero, cada vez mais na sua prática, a escola mais próxima das ideias que tenho publicado neste blog que conheço.

Sou devedor a todas as pessoas mencionadas, e a muitas outras. Destaco, entre essas outras, dois amigos pessoais: Rubem Alves e Antonio Carlos Gomes da Costa (este, infelizmente, falecido recentemente, no último 5 de março). Dois magníficos educadores de estilos bastante diferentes.

Conheço Rubem Alves há quase cinquenta anos. Foi a Igreja Presbiteriana que nos aproximou. Estudamos no mesmo Seminário, em Campinas, ele um pouco antes de mim. Sofremos nas mãos das mesmas pessoas na igreja, na época do autoritarismo. Fomos para os Estados Unidos mais ou menos na mesma época, no final da década de sessenta. Estudamos em lugares diferentes, ele em Princeton, eu em Pittsburgh. Finalmente, trabalhamos juntos por longos anos na UNICAMP, no Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação. Foi por influência dele que eu vim para essa universidade, em 1974.

O Antonio Carlos fiquei conhecendo ao me envolver com o Instituto Ayrton Senna, no ano 2000. Ele foi o principal responsável pela construção do referencial teórico do Instituto: a noção de educação para o desenvolvimento humano. Foi também o grande introdutor no Brasil do conceito de protagonismo juvenil, que eu discuti no segundo artigo desta série: Educação centrada no aluno.

As principais ideias de ambos vêm se mesclando de tal forma com as que eu já trazia comigo que não sei o que estaria pensando hoje se, um dia, não tivesse tido o privilégio e a satisfação pessoal de me tornar amigo dos dois, embora com um intervalo de quase quarenta anos.

Há algum tempo escrevi que tinha um projeto pessoal de fazer com que os dois, o Rubem e o Antonio Carlos, se encontrassem pessoalmente. O Antonio Carlos me pregou uma peça. Foi embora antes.

O que apresento nos meus artigos aqui é a minha visão – visão que é fruto de minha ingestão, mastigação e digestão dos pontos de vista dessas muitas pessoas (e, desnecessário frisar, muitas outras). Mas esses pontos de vista, depois de devorados por mim, passaram a circular no meu sangue, e, por conseguinte, passaram a ser parte de mim: integraram-se à minha visão de mundo, ao meu DNA intelectual. O que se encontra aqui é minha opinião.

Encontrei uma referência a essa forma de “antropofagia” na excelente biografia de John Dewey escrita por Jay Martin, sob o títuloThe Education of John Dewey: A Biography (Columbia University Press, New York, 2002). Diz ele na p. 131:

“Sempre aberto às ideias dos outros, Dewey, no entanto, passava essas influências pelo crivo de seu pensamento e sentimento [i.e., de sua experiência] de modo a dar-lhes sentido e a transformá-las em algo seu, muito pessoal. Ele nunca se esqueceu de uma dívida intelectual ou pessoal significativa, em áreas que considerasse realmente importantes. Mas ele nunca permitiu que as várias ideias que o influenciaram ficassem separadas umas das outras, isoladas, como se ele fosse apenas um conjunto de espelhos que refletisse o pensamento dos outros. Ele armazenava tudo o que aprendia, mas, deixando de lado peculiaridades das fontes que o influenciaram, transformava as ideias dos outros em algo tipicamente seu”.

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Em São Paulo, 5 de Julho de 2011

Escolhas

Artigo publicado em 29/06/2011 no Blog das Editoras Ática e Scipione:

http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/escolhas

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1. Escolhas, opções e decisões

As escolhas que fazemos na vida dependem das opções que temos – e se materializam através de nossas decisões.

Há momentos na vida em que somos confrontados por situações em que (segundo tudo indica) temos de fazer uma escolha e tomar uma decisão. Em situações assim, não nos é ofertada a opção da continuidade: ou seguimos por um lado, ou pelo outro.

Se, Deus nos livre, formos assaltados na rua e o assaltante nos colocar diante da clássica equação “a bolsa ou a vida”, nos depararemos com uma escolha a fazer, embora as opções não sejam apenas as que o assaltante impõe. Podemos lhe entregar a bolsa e, se tudo sair certo, nos safarmos do incidente com vida, ou podemos ficar com a bolsa e arriscar a vida. Mas ainda podemos – apesar de o bom senso e as autoridades policiais não recomendarem – criar uma terceira opção: tentar ficar tanto com a vida como com a bolsa, reagindo contra o assaltante. Há, evidentemente, a possibilidade de perdermos ambos, mas o fato é que numa situação assim não temos a opção de não fazer uma escolha: somos obrigados, forçosamente, a fazê-la.

Há momentos na vida em que somos confrontados por situações em que (pelo menos aparentemente) temos a opção de fazer uma escolha (dentro de uma série de opções), mas podemos também não fazê-la (pelo menos naquele momento). Só que não fazer a escolha também reflete, de certo modo, uma escolha…

Imaginemos um jovem solteiro, com cerca de 30 anos, que esteja bem empregado e ainda more com seus pais. Em algumas sociedades, ele será pressionado a fazer uma escolha: casar-se (ou viver junto em união estável) ou não. Se ele inicialmente optar por não fazer a escolha, de certo modo fará a escolha de não se casar (pelo menos naquele momento). Se optar por se casar, terá, na sequência, de fazer várias outras escolhas. Hoje em dia, pelo andar da carruagem, terá de fazer uma escolha básica: decidir se se casa com alguém do outro sexo ou com alguém do mesmo sexo… Após esta etapa, terá de escolher com quem irá se casar. E assim vai.

Em uma sociedade simples, normalmente temos poucas opções. Se a sociedade é também conservadora e estável – isto é, se quase não muda, ou muda muito devagar –, o número de opções que temos é ainda menor, porque várias coisas são decididas por nós através da tradição, do costume, ou até mesmo da lei, que muitas vezes incorpora a tradição e o costume.

Quando a lei, ou o costume, ou a tradição proíbem alguma coisa, sempre temos a opção de afrontá-los, se julgamos o assunto suficientemente importante e estivermos dispostos a sofrer as consequências. Numa sociedade assim, o curso de nossa vida é, em grande medida, decidido por nós, isto é, independe de nossas escolhas.

Ou vejamos.

Na sociedade brasileira em que viviam nossos avós (ou bisavós, se você, leitor, for muito jovem), casar-se com alguém do mesmo sexo não era uma opção. A tradição, o costume e a lei daquela sociedade não colocavam essa opção. É inegável que as pessoas podiam afrontar a tradição, o costume e a lei e viver juntos com alguém do mesmo sexo. Mas essa união, além de não ser bem aceita socialmente, não produzia no plano jurídico os mesmos efeitos que, hoje, uma união estável entre pessoas do mesmo sexo produz (pensão, seguro, herança etc.). Naquela sociedade, nem mesmo a opção de simplesmente não se casar era muito realista, por causa da pressão social – a menos que você estivesse disposto a se tornar padre ou freira.

É verdade que muitos (quem sabe muitas) queriam se casar dentro do padrão convencional, mas não encontravam ninguém suficientemente interessante com quem pudessem fazê-lo – ou simplesmente não encontravam ninguém, ponto, interessante ou não, dentro ou fora do convencional, disposto a aceitar uma proposta de casamento. (Ninguém nunca disse que a vida é fácil…).

Na sociedade brasileira anterior a 1977, uma vez casado, sempre casado: o divórcio não era uma opção, porque a lei não o permitia. A separação de fato sempre era possível, mas ela não produzia efeitos no plano jurídico. A “separação de jure”, o chamado desquite, era possível e produzia alguns efeitos jurídicos, mas não podia ser seguida de um novo casamento ou união estável legalmente registrada, porque apenas a sociedade conjugal era dissolvida, não o casamento.

Note-se que estamos falando, aqui, de coisas importantes, como casar-se ou não se casar, e, tendo se casado, separar-se ou não se separar… Mas as coisas funcionam do mesmo jeito mesmo em situações relativamente simples.

Disse atrás que uma sociedade simples é uma sociedade em que, normalmente, temos poucas opções. Antigamente, se estivéssemos na rua e quiséssemos tomar um café, iríamos a um bar e pediríamos um cafezinho – passado no coador convencional, ele seria servido já adoçado, inevitavelmente. Hoje em dia, se entrarmos num bar e pedirmos um café, teremos, provavelmente, de fazer várias escolhas: comum ou expresso? Puro ou com um pouco de leite? Com açúcar, com adoçante, ou sem nada? Se formos a uma coffee shop sofisticada, provavelmente teremos de fazer várias outras escolhas, porque lá existe até mesmo a oportunidade de tomar café com chocolate e canela, ou café gelado em um copo com mistura de conhaque, por exemplo. Isso mostra que, à medida que a sociedade se sofistica, o número de nossas opções aumenta e, consequentemente, temos mais escolhas a fazer e somos obrigados a tomar mais decisões.

Embora possamos concluir que é melhor ter mais opções do que menos, é inegável que, em muitas situações, fazer escolhas e tomar decisões não é algo fácil. Às vezes é muito difícil, e em situações extremas pode parecer até impossível. (Alguém viu o filme A Escolha de Sofia?)

É difícil fazer uma escolha se nenhuma das opções disponíveis é aceitável… No caso do assaltante, descrito atrás, nem a opção de entregar a bolsa nem a opção de abrir mão da vida é aceitável para a maioria das pessoas. Por isso algumas delas criam a opção, arriscadíssima, de reagir. Também é difícil fazer uma escolha se mais de uma opção é igualmente aceitável, mas não é permitido ou viável escolher mais de uma opção…

Também é difícil fazer uma escolha se o número de opções é muito grande, mesmo que seja possível adotar mais de uma delas. Uma criança numa loja de brinquedos, ou um professor universitário numa livraria, ou uma jovem numa loja de sapatos atraentes em liquidação são todos exemplos dessa situação. Têm vontade de levar tudo – mas, por razões financeiras ou logísticas, estão impedidos de fazê-lo, tendo, portanto, de escolher apenas uns poucos.

2. A escolha de uma profissão ou carreira

A escolha de uma profissão ou carreira era, num passado não muito remoto, algo bem mais simples e fácil do que é hoje. Por um lado, havia menos opções. Por outro lado, a fixidez dos costumes, a rigidez dos papéis sociais e sexuais e a ausência de possibilidades reais de mobilidade social restringiam as opções de cada um. O filho de um pequeno agricultor tinha poucas opções além de seguir a profissão ou carreira do pai, ao mesmo tempo em que filhos de advogados e médicos dificilmente não se formavam advogados e médicos.

Note-se que estou usando exemplos de pessoas do sexo masculino de forma intencional, porque mulheres, especialmente as mais pobres, não tinham muitas opções profissionais, além do casamento ou (e) do trabalho doméstico. Para as mulheres da – relativamente pequena – classe média, havia a opção de seguir o magistério, a enfermagem, ou de trabalhar no comércio. Existiam mais opções para as mulheres das classes mais abastadas – mesmo assim, uma gama bastante limitada face às possibilidades disponíveis atualmente.

Uma menina pobre que diga que pretende ser médica ou astronauta faz ainda hoje com que as sobrancelhas de muita gente se entortem. Um menino pobre, engraxate, que afirme que um dia será presidente da nação ainda causa a mesma reação – embora, como todos sabemos, isso hoje não só é possível como já aconteceu.

De qualquer maneira, as opções hoje disponíveis para quem está no momento de escolher uma profissão ou uma carreira são infinitamente superiores às que existiam cem anos atrás – tanto para homens como para mulheres. O problema, há cem anos, é que existiam poucas opções. Hoje o problema é o excesso de opções.

3. Projeto de vida

A definição de um projeto de vida envolve mais do que a escolha de uma profissão ou carreira (embora necessariamente inclua isso). Ela envolve, por exemplo, as questões que discutimos no primeiro ponto: queremos viver a vida basicamente sozinhos ou queremos compartilhá-la com alguém? Se optarmos por compartilhá-la com alguém, qual é, em linhas gerais, o perfil da pessoa com quem gostaríamos de compartilhá-la? Definido este perfil, qual, dentre as pessoas que o preenchem, parece mais interessante? Ela está disponível e disposta a compartilhar sua vida conosco? Se não está, devemos desistir ou há possibilidade de a convencermos de que compartilhar sua vida conosco é uma opção atraente?

Mas um projeto de vida envolve mais do que escolhas sobre profissão e carreira, ou sobre casar ou não casar, ou (tendo decidido casar) com quem… Também envolve a escolha (extremamente complexa) do tipo de pessoa que queremos ser e do tipo de vida que queremos viver. Por exemplo: onde vamos querer viver – numa grande capital ou numa pequena cidade? Numa montanha ou num vale? Na praia ou num sítio sossegado no interior?

4. Autoconhecimento

Todos nós nascemos com certas capacidades e aptidões naturais. Normalmente chamamos essas capacidades ou aptidões de talentos naturais, ou dons – um dom é algo que nos é dado, que não fomos nós que adquirimos ou construímos.

Uns têm talento ou dom para a comunicação verbal (oral ou escrita), outros para lidar com números, outros para a música (que se desdobra em vários dons subsidiários), outros para a dança (que também se desdobra em vários dons subsidiários), outros para o esporte (que igualmente se desdobra em vários dons subsidiários), outros para a negociação e para a busca de acordos e consensos, outros para cuidar de crianças, ou de idosos, ou de doentes, etc.

Nosso projeto de vida deve refletir aquilo que realmente queremos ser e fazer na vida. Para isso, devemos buscar conhecimento sobre nossos talentos ou dons…

É verdade, entretanto, que, algumas vezes, podemos ter talentos e dons para uma coisa, mas não sentir prazer em realizá-la. Neste caso, nossos talentos e dons não combinam com aquilo que realmente gostamos de fazer.

Outras vezes escolhemos fazer algo porque representa o que nos dá prazer, ou é a nossa paixão, mas não temos talento para a coisa. Por exemplo, tocar violino ou piano, jogar futebol… Aqui a paixão não combina com nossos talentos e dons.

Situação talvez mais difícil seja a de quem não consegue descobrir quais seus talentos e dons, ou, talvez ainda mais complicado, quais são as suas paixões, as coisas de que realmente gosta de fazer, que o faz vibrar, o que lhe enche de entusiasmo e motivação.

Muitos jovens, hoje em dia, parecem perdidos diante da vida, sendo incapazes de definir um projeto de vida de longo prazo. Precisam aprender a fazer isso.

5. Valores

Definir um projeto de vida envolve fazer escolhas. E escolhas são feitas com base em valores.
Valores (verdade, honestidade, justiça, bondade, beleza) são entidades abstratas que orientam nossas escolhas e decisões e, através delas, nossas ações. Sendo assim, muitas vezes abrimos mão de algo que queremos ou que nos traria vantagem por causa de nosso compromisso com a verdade ou com a honestidade ou com a justiça.

Suponhamos que um jogador de futebol faça um gol com a mão e, na sequência, levante o braço e acuse, ele próprio, a irregularidade no lance. Ainda que o árbitro tenha validado o gol, ele exibirá, na prática, o que são valores, porque a atitude representa que ele não está interessado em levar vantagem o tempo todo nem a qualquer preço. (No Brasil, infelizmente, se alguém fizer isso provavelmente será considerado um babaca).

É possível que nossos valores nos impeçam de escolher determinadas profissões ou carreiras que gostaríamos de exercer, ou, tendo-as escolhido, de exercê-las como a maior parte das pessoas as exerce. Também é possível que nossos valores nos impeçam de nos casar com determinadas pessoas, com quem gostaríamos de nos casar, porque são de raça ou de cor ou de religião ou de orientação sexual ou de posição ideológica diferente – ou apenas porque elas já são casadas.

Nesses casos, devemos nos privar daquilo que queremos ou submetermos nossos valores a uma análise séria e, quem sabe, a uma revisão.

6. O papel da educação

A visão de educação como processo de desenvolvimento humano (e não como processo de transmissão da tradição cultural da humanidade de uma geração para outra) coloca todo esse conjunto de questões no centro do trabalho educativo.

Essa visão da educação se alicerça num entendimento, ainda que minimalista e formal, da natureza do ser humano, que ressalta os seguintes traços:

  • O ser humano ao nascer

Para estabelecer comparação e contraste, vamos analisar brevemente uma espécie animal bastante curiosa e interessante: as tartarugas marinhas.

O filhote de uma tartaruga marinha nasce sabendo fazer aquilo que ele precisa fazer para sobreviver. Ao sair do ovo, ele já domina as competências básicas necessárias para sua sobrevivência: sabe andar, sabe nadar, sabe encontrar alimento adequado. Por isso, o filhote de tartaruga marinha nem sequer precisa de cuidados maternos para sobreviver. Sua mãe bota ovos na areia da praia e vai embora, abandonando os futuros filhotes à própria sorte antes mesmo de eles nascerem. O filhote, depois de nascido, não precisa se submeter a um processo de desenvolvimento, digamos, “tartarugal”: ele já nasce pronto para viver sua vida de tartaruga marinha. Não precisa aprender nada. Tudo que ele precisa saber fazer para sobreviver ele já nasce sabendo. Só lhe resta crescer e amadurecer algumas funções já existentes, como, por exemplo, a função reprodutiva.

Isso poderia parecer uma grande vantagem. Mas tem seu preço. Nenhuma tartaruguinha marinha escolhe o que vai ser e o que vai fazer na vida, nenhuma tartaruguinha define um projeto de vida e gasta tempo procurando descobrir quais seus talentos e dons, ou procurando selecionar seus valores.

Em contraste, o ser humano não nasce totalmente desenvolvido: nasce, por assim dizer, inacabado. Apesar de passar por uma gestação relativamente prolongada no útero materno, ao nascer ele não está pronto para viver a vida de um ser humano: não sabe fazer basicamente nada, além de chorar, quando está em desconforto.

Diferentemente da tartaruguinha marinha, o bebê humano é, no momento do nascimento, totalmente incompetente, do ponto de vista de sua capacidade de sobrevivência autônoma: não domina nenhuma das competências específicas indispensáveis para esse tipo de sobrevivência, como, por exemplo, locomover-se com eficiência, comunicar-se de forma eficaz com aqueles que vivem ao seu redor, arranjar comida e abrigo para si próprio… Para se locomover de forma mais ou menos eficiente, o ser humano leva pelo menos um ano; para se comunicar de forma mais ou menos eficaz com seus semelhantes, precisa de no mínimo três anos; para cuidar de sua vida com um mínimo de autonomia, precisa de vários anos – só Deus sabe quantos, hoje em dia. Por isso, o ser humano é, ao nascer e por bom tempo depois, totalmente dependente de outras pessoas. E, por ser dependente, não pode ser considerado responsável por suas ações. Na verdade, por bom tempo ele mais sofre as ações dos outros do que propriamente age (no sentido estrito do termo “agir”). Por isso, a legislação em geral o considera legalmente incapaz durante esse tempo.

Assim sendo, ou o ser humano constrói, através da aprendizagem, as competências específicas indispensáveis para a sua sobrevivência, ou ele viverá para sempre dependente dos outros, um parasita, porque, deixado à própria sorte, morrerá.

  • Sua capacidade de aprender

Apesar de nascer incompetente, no sentido visto, o ser humano nasce com uma incrível capacidade de aprender, que lhe possibilita a partir do seu nascimento dominar várias habilidades que, oportunamente, se aglutinam nas competências que lhe permitem deixar para trás a incompetência originária, alcançando níveis cada vez maiores de autonomia e assim se tornando cada vez mais responsável por suas ações e pelo seu destino.

A capacidade de aprender do ser humano lhe permite aprender em interação com o seu ambiente, em especial com o ambiente humano. E essa capacidade é inata: o ser humano não precisa aprender a aprender. Isso, ele já nasce sabendo. Depois de nascer, ele precisa apenas exercitar essa aptidão de modo a adquirir outras habilidades, que não lhe são inatas.

  • Educação e projeto de vida

Porque o ser humano não nasce pronto para a vida, sua “programação genética” é, em grande medida, “aberta”: restringe-se aos essenciais biológicos.

Esse fato lhe permite, oportunamente, por escolha própria, respeitadas as circunstâncias em que vive (que incluem condições naturais, históricas e sociais, bem como decisões e ações de terceiros), definir seu projeto de vida, isto é: (a.) Escolher que tipo de vida deseja viver e que tipo de ser humano deseja ser; (b.) Usar sua capacidade de aprender para desenvolver as habilidades e competências necessárias para transformar seu projeto de vida em realidade.

Esse projeto de vida pode e deve ir muito além da mera sobrevivência de cada um para incluir a fruição da vida, vale dizer, sua realização nos diversos planos em que essa vida se desenrola: pessoal, social, profissional etc.

É importante registrar que, nessa visão da educação, não são os educadores que definem o tipo de ser humano que querem “formar”: cada criança escolhe que tipo de pessoa quer ser, vale dizer, que tipo de pessoa pretende se tornar.

  • Projeto de vida e construção de competências

Informações, conhecimentos, valores e atitudes são necessários para que o ser humano defina seu projeto de vida e o transforme em realidade. No entanto, o foco da educação está no processo de desenvolvimento humano – e esse processo se dá pela aprendizagem, entendida como construção de capacidades, vale dizer, de competências.

Uma competência é um conjunto de habilidades adquiridas ou construídas pela aprendizagem que permite ao ser humano fazer coisas que ele não sabe fazer naturalmente – como, por exemplo, falar uma linguagem verbal específica, ou ler e escrever o código escrito dela.

Algumas competências básicas, como falar uma linguagem verbal, são essenciais para qualquer projeto de vida. No tipo de sociedade desenvolvida em que vivemos, dominar o código escrito dessa linguagem também é uma competência essencial para qualquer projeto de vida. Muitos argumentam que manejar tecnicamente as tecnologias digitais e saber o que fazer com elas também são competências essenciais aos seres humanos privilegiados que vivem no Século XXI, em que essas tecnologias estão por toda a parte.

A aprendizagem, embora seja social, isto é, aconteça no processo de interação de cada ser humano com seus semelhantes, precisa ser uma construção de cada um. É essa a essência da visão construtivista da educação e da aprendizagem. O ser humano aprende, neste caso, quando se torna capaz de fazer aquilo que não conseguia fazer antes.

Dentro dessa visão, o ser humano se desenvolve à medida que aprende, e a construção de sua identidade como pessoa autônoma (que define seu próprio projeto de vida) e responsável (que transforma seu projeto de vida em realidade) é um processo que acontece ao longo de toda a sua vida. Por isso, a aprendizagem, e, por conseguinte, o desenvolvimento do ser humano, tem lugar ao longo de toda a sua vida.

7. O desafio: meios e fins

Se não me engano foi Albert Einstein que disse uma vez que nós vivemos em uma época de meios cada vez mais aperfeiçoados e fins cada vez mais confusos. Isto se reflete na educação que proporcionamos a nós mesmos e aos outros.

Tecnologia é meio. Competências são meios. Meios sem dúvida são importantes. Mas só são importantes quando servem para nos ajudar a alcançar fins que desejamos atingir e que estão firmemente alicerçados em nossos valores.

Dar ênfase, na educação, ao desenvolvimento de competências e ao domínio de tecnologias, sem enfatizar os fins, sem uma concomitante discussão séria do papel que esses fins têm no projeto de vida de cada um e nos projetos de vida coletivos é propiciar uma educação capenga, que permite que as crianças fiquem com potentes meios nas mãos, mas sem saber o que podem e o que devem fazer com eles.

Que as crianças, os adolescentes e os jovens queiram saber para que servem as coisas que queremos e esperamos que eles aprendam na escola não é de admirar. Na realidade, é evidência de que eles têm a cabeça focada nas coisas certas. O que é de admirar é que tantos educadores não saibam responder a essas perguntas, nem se preocupem com isso.

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Em São Paulo, 4 de Julho de 2011

A Escola e as Redes Sociais

Artigo publicado no dia 20/06/2011 no Blog das Editoras Ática e Scipione:

http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/a-escola-e-as-redes-sociais

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Meu artigo anterior, A revolução da desintermediação, gerou alguns comentários longos. A alguns eu respondi na seção de comentários do próprio blog. No entanto, resolvi abrir uma exceção para escrever um artigo inteiro acerca do comentário de Rose Marie Dubinskas. Acho que ela tocou em algumas questões importantes cuja discussão merece ficar num plano mais amplo.

Transcrevo aqui, na íntegra, o comentário que ela deixou no blog, para que os leitores possam tê-lo como pano de fundo do meu artigo e fazer referência a ele com mais facilidade.

Diz Rose Marie:

Não acredito que seja algo tão simples assim. Não se trata simplesmente de “desintermediar”, ou seja lá qual for o termo, a educação. A escola precisa e deve ser mais do que um ambiente onde se discute o conhecimento humano acumulado ao longo dos séculos. Tem que ser um lugar onde as relações humanas, a vivência e a troca de experiências se desenvolvam naturalmente e façam parte do dia a dia daqueles que nela se encontram. Deve privilegiar as descobertas e os caminhos percorridos para se chegar a determinados objetivos e não ter como meta a pura e simples aquisição do conhecimento. Deve proporcionar um convívio no qual as relações sejam questionadas e os métodos sejam avaliados mais do que os resultados. Reduzir o trabalho do professor a um mero cuidador de pessoas é minimizar demais a sua importância. Nem as escolas de educação infantil têm mais esse caráter. As redes sociais têm sim a sua importância, mas por si só não substituem o aconchego do encontro entre as pessoas, o sentir-se acolhido e amado entre seus semelhantes, a troca, o compartilhar, o toque, o olhar e a sensação de pertencimento. Muito eu teria ainda para dizer em relação aos espaços escolares, mas aqui não há como fazê-lo com a amplitude e a importância merecidos. Há que se trabalhar neles e vivenciar a beleza das relações que ali se desenvolvem, num processo muito mais amplo do que um simples aprender técnico e funcional. Aprender a fazer uma bomba através da internet parece muito simples, mas a ética, o porquê construir uma bomba e suas consequências não são, de maneira nenhuma, objeto de discussão no processo.”

Cara Rose Marie…

Há algumas questões que você levanta em seu comentário sobre as quais nós (acredito) realmente discordamos. Há uma ou outra questão colocada por você sobre a qual acredito que não fui interpretado corretamente. E, naturalmente, há questões sobre as quais concordamos.

Vejamos.

1.) Você afirma: “A escola precisa e deve ser mais do que um ambiente onde se discute o conhecimento humano acumulado ao longo dos séculos.” A sua redação sugere que a escola deve ser isso (“um ambiente onde se discute o conhecimento humano acumulado ao longo dos séculos”) e mais alguma coisa. Eu discordo de que a escola deva ser isso – e mostrarei nos itens seguintes (em especial no item 2) as razões que tenho para discordar. Acho que, se ela continuar a existir, ela forçosamente vai ser outra coisa (sem o “mais”): a) OU, se ela não se transformar, ela vai se tornar um mero lugar de custódia de crianças e adolescentes, sem maior significado para a sua aprendizagem; OU, se ela se dispuser a se reinventar, ela vai se tornar alguma coisa que não é NEM “um ambiente onde se discute o conhecimento humano acumulado ao longo dos séculos” NEM um local de custódia de crianças e adolescentes. Neste caso, voltará a ser um ambiente de aprendizagem.

2.) Por que eu acho que a escola não é nem deve ser “um ambiente onde se discute o conhecimento humano acumulado ao longo dos séculos”? Que ela (falo da escola básica) não é um ambiente “onde se discute o conhecimento humano acumulado ao longo dos séculos” me parece evidente. Esse conhecimento é discutido (se o termo “discutir” for levado a sério) em livros e artigos escritos por gente que realmente domina esse conhecimento. A escola básica tem simplesmente tentado repassar aos seus alunos uma leve ideia do que é esse conhecimento.  O pior é que o tem feito de uma maneira tal que a maior parte dos alunos acaba por não querer ter mais nada que ver com esse legado intelectual. Deveria a escola básica tentar se tornar nesse ambiente? Creio que não. Ela tem, a meu ver, funções muito mais importantes, voltadas para o futuro, não para o passado, e, além disso, a função que você sublinha já vem sendo exercida satisfatoriamente por outras instituições e pessoas: universidades, institutos de pesquisa, a mídia especializada, estudiosos independentes, intelectuais autônomos, críticos, autores em geral. (No entanto, é bom que se frise que o estudo do passado, por parte daqueles que, por alguma razão, têm interesse nele, pode ser extremamente valioso. Eu próprio tenho enorme interesse no estudo da história da filosofia – mas não acho que a história da filosofia, nem mesmo a filosofia, deva se tornar estudo obrigatório nas escolas de educação básica para todos os alunos).

3.) Você afirma: “Reduzir o trabalho do professor a um mero cuidador de pessoas é minimizar demais a sua importância”. Também acho. Nisso concordo totalmente com você. Mas eu não propus que isso acontecesse. Apenas previ que poderia acontecer. Minha previsão foi (e continua sendo) que, SE a escola não se transformar e reinventar, ela se tornará um local de mera custódia de crianças e adolescentes, e, nesse caso, os professores se tornarão meros cuidadores de pessoas. (Já que estamos tratando disso, não considero cuidar de pessoas uma atividade desprezível: acho-a extremamente importante. Mas ela é uma função, em si mesma, despida, ou vazia, de significado pedagógico).  SE, no entanto, a escola se transformar e reinventar (como eu sinceramente desejo, embora ache cada vez mais difícil, à medida que passa o tempo e ela permanece fundamentalmente inerte), o trabalho do professor terá de ser forçosamente redimensionado para que se torne novamente relevante para a aprendizagem dos seus alunos. (Para aqueles que se preocupam com o que será dos atuais professores se as mudanças aqui imaginadas acontecerem, é preciso ressaltar que pode ser que haja mais oportunidades de trabalho para facilitadores da aprendizagem do que há hoje para professores. Em espaços de aprendizagem diferenciados, a presença de pessoas que estejam dispostas e interessadas em ajudar a aprendizagem dos outros é sempre muito bem-vinda!).

4.) Você afirma: “[A escola] tem que ser um lugar onde as relações humanas, a vivência e a troca de experiências se desenvolvam naturalmente e façam parte do dia a dia daqueles que nela se encontram”. Aqui tenho de dizer, como costumo dizer no meu Facebook, “hummmm…”. De um lado, acho extremamente importante que as pessoas tenham lugares assim, onde se relacionem uns com os outros de maneira significativa; onde não só troquem experiências vivenciadas em outros lugares, mas também criem e vivenciem experiências que contribuam para seu crescimento, para seu desenvolvimento, para sua aprendizagem; onde gostem de estar, porque percebem que estar ali contribui, não só para a sua aprendizagem, mas, também, para o seu lazer e seu bem-estar, e, não raro, para o seu crescimento e desenvolvimento profissional. Perfeito! Só que o lugar que você descreve se parece muito mais com Facebook do que com uma escola típica… :)

5.) Digamos que você me responda que afirmou que a escola “tem que ser” um lugar assim, não que ela seja, hoje, um lugar assim. Se você me disser isso, eu simplesmente lhe direi que a escola atual, para se tornar um lugar assim, terá de sofrer um processo de transformação tão radical que representará sua total reinvenção. Ou vejamos:

5.a) Em primeiro lugar, Facebook (ou locais semelhantes) não é um local que as pessoas são obrigadas a frequentar. A escola básica é. Só isso já faz uma diferença enorme. As pessoas frequentam Facebook se quiserem e quando querem. Em geral o fazem quando estão interessadas em conversar, trocar ideias, compartilhar suas fotos ou ver e comentar as fotos dos outros, provocar ou cutucar (em mais de um sentido) seus amigos, ficar sabendo de gente que não vê há muito tempo, descobrir o que é que está alegrando, irritando ou de alguma forma agitando as pessoas, comentar os acontecimentos e as notícias do dia, tirar sarro dos torcedores dos times rivais que perderam etc.

5.b) Em segundo lugar, Facebook é um local em que a maioria das pessoas passam no máximo uma ou duas horas por dia (exceto alguns fanáticos como eu que ficam com o Facebook aberto quase o dia inteiro). A escola é um local em que crianças e adolescentes passam, hoje, cerca de quatro a cinco horas por dia, duzentos dias por ano – e há quem defenda a ideia de que devam passar até o dobro disso. (É uma característica extremamente positiva desta rede social que a gente possa monitorá-la o tempo todo, pelo computador e pelo telefone, sem precisar dedicar-lhe atenção total, pois isso permite que a gente lhe dê alguma atenção o tempo todo sem lhe dar toda atenção em nenhum momento…).

5.c) Em terceiro lugar, no tempo que eu passo no Facebook eu faço o que eu quero – apenas aquilo que me interessa. Se eu estou a fim de ver fotos dos amigos, é isso que eu faço. Se estou disposto a discutir união estável de homossexuais, procuro um lugar onde isso esteja sendo discutido ou começo uma discussão sobre a questão. Em outras palavras: o uso de meu tempo, enquanto estou no Facebook, é totalmente discricionário: sou eu que decido o que vou fazer quando estou lá. “Discricionário” quer dizer, segundo oDicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, “livre de condições, de restrições; arbitrário”. O uso do tempo que a criança e o adolescente são obrigados a passar na escola é exatamente o oposto disso: totalmente condicionado, controlado, determinado por terceiros. Em muitas escolas, até para ir ao banheiro é preciso pedir permissão – e casos são conhecidos em que a permissão foi negada, com consequências desastrosas.

5.d) No Facebook cada um se junta com seus amigos, com sua turma, com aqueles com os quais têm interesses comuns. Ali, muitas vezes, especialmente entre os mais jovens, o fato de pertencer à mesma faixa etária é poderoso aglutinador. Pré-adolescentes de onze ou doze anos dificilmente se enturmam com coroas de quarenta ou cinquenta anos: juntam-se preferencialmente com amigos da mesma idade. É com eles que gostam de conversar. E sua conversa às vezes é ininteligível para os mais velhos. Como pré-teens, às vezes fazem (ou sofrem) distinções que, para os mais velhos, parecem absurdas: não aceitam, por exemplo, os teens – ou são por eles rejeitados… É difícil de imaginar que, na escola, queiram estabelecer “relações humanas” e fazer “troca de experiências” com seus professores… Ou que estes, enquanto na escola, queiram fazer o mesmo com seus pré-teens.

5.e) O que foi descrito no item anterior talvez seja um caso especial de algo mais abrangente: no Facebook as “relações humanas” e as “trocas de experiência” se fazem entre iguais. Ali não há hierarquia. A escola, porém, é uma instituição totalmente hierarquizada, dominada por aqueles que são investidos de autoridade: diretores, coordenadores, professores… É difícil imaginar relações humanas e troca de experiências genuínas entre os alunos e as figuras de autoridade que, na escola, detêm o poder de colocar os alunos fora da sala, dar-lhes ou obter-lhes uma suspensão, ou até mesmo deflagrar processos que podem culminar em sua expulsão da escola. Relacionamentos desse tipo em geral se dão entre pares – e alunos e professores na escola definitivamente não são iguais, estão longe de ser pares.

5.f) No Facebook todo mundo aprende, todo mundo se diverte, todo mundo é capaz de encontrar algo que sirva para sua atividade profissional. Na escola, espera-se que uns aprendam – os alunos – e outros ensinem – os professores. Facebook se parece muito mais com o ambiente de aprendizagem descrito por Paulo Freire emPedagogia do Oprimido: ali ninguém educa ninguém, mas também ninguém se educa sozinho: todos se educam uns aos outros, em comunhão, em “curtição” mútua… A escola está muito longe disto. Ali uns são educadores, outros são educandos.

5.g) No Facebook ninguém é pago para fazer o que quer (com uma ou outra exceção, talvez). A participação é totalmente voluntária. Na escola, o professor é pago para estar ali e para realizar um conjunto específico de tarefas. Se ele não as realiza, ou as realiza mal, ele pode (dependendo do tipo de escola em que atua) até perder o emprego… O aluno, cuja presença ali é obrigatória e involuntária, é, por assim dizer, o insumo básico do trabalho do professor. Em escolas particulares, se os alunos se vão, porque os professores são ruins, os professores também se vão… Sem alunos, uma escola particular fecha. Uma escola pública tem, de certo modo, alunos cativos – as crianças e os adolescentes que moram numa determinada região e não podem (ou não querem) pagar uma escola particular, são obrigados a frequentar uma escola daquela região, com pouca flexibilidade. Esse ambiente é muito pouco condizente com significativos relacionamentos pessoais e troca de experiências entre alunos e professores.

5.h) Basta, não?

6.) Você afirma, Rose Marie: “As redes sociais têm sim a sua importância, mas por si só não substituem o aconchego do encontro entre as pessoas, o sentir-se acolhido e amado entre seus semelhantes, a troca, o compartilhar, o toque, o olhar e a sensação de pertencimento”. De novo sinto vontade de dizer “hummmm”. Começo com uma pergunta, não sobre o que você diz, mas sobre o que você aparentemente sugere: as escolas que você conhece favorecem e estimulam “o aconchego do encontro entre as pessoas, o sentir-se acolhido e amado entre seus semelhantes, a troca, o compartilhar, o toque, o olhar e a sensação de pertencimento”? Continuo: de que redes sociais virtuais você participa? Pergunto isso porque conheço várias redes sociais virtuais que, exceto, naturalmente, pelo toque e o olhar, fazem exatamente isso.

Meu grupo de discussão na internet, o EduTec.Net, que existiu, em sua forma original, durante quase três anos, era uma rede social que propiciava, favorecia e estimulava, para cerca de mil participantes, exatamente isso: “o aconchego do encontro entre as pessoas, o sentir-se acolhido e amado entre seus semelhantes, a troca, o compartilhar, a sensação de pertencimento”. Parece impossível que isso pudesse ser feito para cerca de mil pessoas de uma vez, mas era – embora para uns, mais do que para outros. Uma vez, um dos membros teve seu jovem filho assassinado em Búzios por um ladrão que queria lhe roubar o relógio. Foi com seus amigos da EduTec.Net que ele compartilhou a notícia e buscou apoio e ajuda. Uma outra jovem, jornalista em Alagoas, uma vez, lia as mensagens do grupo no computador do seu trabalho, quando, emocionada com o teor da troca, começou a chorar quietinha… Um colega insensível viu e disse: “Chorando por quê? Isso é apenas uma tela de computador”. Ao que ela respondeu: “É uma tela… mas do outro lado tem gente! Gente mais humana e compreensiva do que você…”. É por isso que há pessoas que chegam a se apaixonar nesses ambientes por pessoas de quem ainda não sentiram o toque e o olhar.

7.) Concluindo: vou resumir o essencial daquilo que você diz que é importante que a escola seja – aquilo que você afirma que a escola “tem que ser”: “[A escola] tem que ser um lugar onde as relações humanas, a vivência e a troca de experiências se desenvolvam naturalmente e façam parte do dia a dia daqueles que nela se encontram”. Você deixa subentendido que a escola deve ser um ambiente que favoreça “o aconchego do encontro entre as pessoas, o sentir-se acolhido e amado entre seus semelhantes, a troca, o compartilhar, o toque, o olhar e a sensação de pertencimento”. Parece-me, Rose Marie, que você propõe que a escola, para se tornar novamente um agente significativo de aprendizagem e de desenvolvimento humano, precisa se tornar algo muito parecido com uma rede social. É exatamente isso que eu venho sugerindo neste blog desde o início. Mas, diferentemente de você, não acho que a escola já seja isso. Na verdade, acredito que, para se tornar isso, ela terá de se reinventar. Terá de se transformar a tal ponto que ficará irreconhecível como escola, porque terá quebrado o paradigma atual da educação escolar.

8.) Mais uma coisa, porém, antes de terminar, apenas para não deixar uma referência lá de trás ficar solta no espaço. Disse, no item 2, que a escola tem funções muito mais importantes (do que discutir o passado), voltadas para o futuro. No meu entender, e, creio, também no seu, educar não é transmitir a herança cultural do passado. (Talvez você dissesse que não é apenas isso). Para mim, educação é a mesma coisa que desenvolvimento humano. O ser humano nasce com inúmeros potenciais e uma enorme capacidade de aprender, mas sem saber, ou saber fazer, efetivamente, nada. Para que se desenvolva, que transforme seus potenciais em realidade, que construa ou domine competências, que alcance autonomia. Tudo isso se conquista através da aprendizagem, que é um processo de se tornar capaz de fazer aquilo que antes não se conseguia fazer. Para que consiga viver uma vida propriamente sua, única, diferente da vida de todos os outros, uma vida que o realize como pessoa, como profissional, como cidadão, cada um precisa, como parte da sua educação, escolher um projeto de vida, com base em seus valores, e adquirir as competências que tornarão esse projeto de vida uma realidade. É por isso que a educação tem que ver com o futuro, não com o passado. Ela é o mecanismo que o ser humano inventou para permitir que os membros da espécie não só sobrevivam desassistidos, mas criem para si mesmos vidas que os realizem plenamente.

Obrigado, Rose Marie, por me ajudar a escrever este artigo.

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Em São Paulo, 4 de Julho de 2011