A Revolução da Desintermediação

Meu décimo quarto artigo no Blog das Editoras Ática e Scipione, publicado nesta segunda-feira passada (13 de Junho de 2011) em:

 http://blog.aticaescipione.com.br

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Extra ecclesiam nulla salus – “Fora da Igreja não há salvação”. (Dito de São Ciprião de Cartago, bispo cristão do terceiro século; e máxima geralmente aceita pela Igreja Católica na Idade Média e até mesmo depois – quem sabe até hoje?).

“Se eu quiser falar com Deus tenho que ficar a sós”. (Gilberto Gil, em sua canção “Se eu quiser falar com Deus”, de 1980).

Durante boa parte da história do Cristianismo, não foi assim como disse Gilberto Gil, nosso ex-Ministro da Cultura. Para falar com Deus, o fiel não podia ficar a sós: tinha de encontrar um intermediário. Na verdade, o intermediário é quem falava com Deus por ele. Padres, santos, a Virgem Maria, todos eles eram credenciados como intermediários no relacionamento e na comunicação do fiel com Deus – algo parecido com despachantes espirituais. E todos eles abrigados dentro da Santa Madre Igreja, fora da qual, como ela mesma alegava, não havia salvação. Ou seja: nada se resolvia, no plano espiritual, sem a intermediação dos padres e da igreja.

Na verdade, nem mesmo ler o livro que consideravam a Palavra de Deus os fiéis podiam fazer sozinhos: o texto das Escrituras é de difícil interpretação, contém uma série de aparentes contradições, e está recheado de várias histórias pouco edificantes sobre alguns dos chamados heróis da fé. Assim, para a igreja, seria melhor que o fiel não lesse o livro diretamente e dependesse do sacerdote para selecionar as passagens certas, interpretá-las, e entregá-las ao fiel pré-digeridas, como se fosse.

Por isso, para a igreja da Idade Média era ótimo que o fiel nem soubesse ler, para não ser tentado a ler as Escrituras (ou, pior ainda, os escritos profanos). O fato de que os livros, naquela época, eram manuscritos, e, portanto, de difícil, lenta e cara produção, era, para a igreja, algo bom e positivo. Mesmo exemplares da Bíblia existiam em pequeníssima quantidade e, por isso, eram bem guardados em igrejas e mosteiros, raramente chegando às mãos dos fiéis (que, aliás, em sua maioria, nem sabiam ler, caso também de alguns religiosos; vide O Nome da Rosa, livro de Umberco Eco).

Nada disso é novidade. O que estou dizendo sobre a igreja da Idade Média é fato conhecido e notório.

A Reforma Protestante procurou acabar com essa intermediação de múltiplos níveis. Só por isso já deveria ser chamada de Revolução Protestante, em vez de Reforma, porque o que fez foi muito além de mera reforma: foi subversão, mesmo, de um sistema de mediação (e, portanto, de dependência, muito bem arranjadinho).

A doutrina protestante do “sacerdócio universal dos crentes” afirmava que todo crente é, na verdade, um sacerdote, e, como tal, tem acesso direto a Deus, sem intermediação de outros sacerdotes, ou dos santos, ou da santa virgem… A doutrina de que os santos e a Virgem Maria são intermediários, que intercedem por nós, também foi descartada. Na doutrina evangélica, os crentes, quando oram, estão a sós com Deus (como sugere Gilberto Gil), sem necessidade da presença de intermediários e intercessores.

Por conseguinte, não há motivo para que o crente não deva ler a Bíblia e interpretá-la desassistido dessa mediação. Por isso, Lutero traduziu a Bíblia, que antes existia apenas em língua que a maior parte do povo não falava, o Latim, para o Alemão, a língua que o povo falava na sua região. E criou escolas ao lado das igrejas para que o povo pudesse aprender a ler, exatamente para lê-la.

Dali em diante, pelo menos nas partes do mundo em que o Protestantismo vicejou, o fiel lia diretamente o livro que ele considerava a palavra de Deus e falava diretamente com Deus em oração. Por isso, a oração protestante não é reza, coisa fixada, decorada, repetida mecanicamente de cor: é conversa mesmo, do crente com seu pai, na qual o crente conta coisas, se confessa, pede coisas, agradece por coisas… Isso explica porque no Protestantismo não há confissão de pecados do fiel para o sacerdote: o fiel se confessa diretamente para Deus.

O que aconteceu durante a Reforma Protestante foi um processo gigantesco de desintermediação na interação e comunicação com Deus. Foram dispensados os intermediários, os despachantes espirituais.

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Passemos da Idade Média para o presente, da Europa para o Brasil.

Houve época no Brasil em que um despachante era indispensável para qualquer ação que envolvesse interação e comunicação entre o cidadão e os órgãos e as agências governamentais. Para comprar, transferir, e licenciar um veículo, era preciso um despachante. Para tirar, renovar ou recuperar a carteira de motorista, também. Para tirar uma carteira de identidade, passaporte, ou carteira de trabalho, idem. Para quase todo relacionamento do cidadão com os governos (federal, estaduais, municipais), ele precisava de um intermediário.

Hoje é possível fazer todas essas coisas e tirar todos esses documentos sem necessidade de despachante ou de outro intermediário qualquer. O usuário final pode ir diretamente aos órgãos ou às agências governamentais, que, em alguns estados, como São Paulo, estão todos reunidos em um mesmo espaço (Poupa Tempo, para os paulistas). Alternativamente, pode fazer várias dessas coisas diretamente pela internet, sem mesmo sair de casa.

Como os sacerdotes católicos na época da Reforma Protestante, os despachantes estão em baixa, hoje, nesse enorme processo de desintermediação na interação e comunicação do cidadão com os seus governos.

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Mesmo na interação e comunicação das pessoas com instituições privadas tem havido uma tendência clara na direção da desintermediação.

Em bancos, o próprio correntista faz, hoje, quase tudo, sem precisar recorrer a um intermediário: gerente, caixa ou atendente. Os caixas eletrônicos são amplamente usados e a Internet permite aos correntistas fazer boa parte de suas transações a partir de sua própria casa ou do seu trabalho, sem precisar se locomover. Isso é desintermediação.

Nos restaurantes, o self-service impera – pelo menos na hora do almoço. O garçom é quase totalmente desnecessário. Isso é desintermediação.

Nos postos de gasolina dos Estados Unidos, da Europa e de outros países desenvolvidos, o próprio freguês se serve e paga com cartão de crédito. Não há atendentes que operam como intermediários. Se for preciso checar a pressão dos pneus, é o próprio dono do carro que faz isso (aqui no Brasil, também). Isso é desintermediação.

Nos aeroportos, os passageiros fazem seu próprio check in, despacham suas malas, recebem seus cartões de embarque, e embarcam, dispensando uma série de intermediários. Isso é desintermediação.

Nos Estados Unidos, na Europa e em outros países desenvolvidos veem-se, nos supermercados, “caixas sem caixa”, isto é, terminais de caixa não operados por empregados do estabelecimento, nos quais os fregueses passam os produtos, pagam por eles com cartão de crédito, colocam-nos numa sacola e vão-se embora. Isso é desintermediação.

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Os exemplos podem ser acrescentados de forma quase que ilimitada. Em muitos deles, especialmente os mais recentes, a revolução da desintermediação tem acontecido e continua a acontecer em decorrência da evolução tecnológica.

Os de mais de 60 anos vão se lembrar da época em que, para fazer um telefonema interurbano, ou até mesmo local, era preciso recorrer a uma telefonista. Lembro-me de que, na Cia Swift do Brasil, em Utinga, onde trabalhei no fim da década de 1950 e início da década de 60, mesmo dentro do escritório era preciso recorrer à telefonista para falar com alguém em outra sala ou em outra mesa. Os telefones não tinham mecanismo de discagem (disco, teclado, etc.). A tecnologia mudou tudo isso. Hoje falamos com pessoas do outro lado do mundo, usando telefone fixo, celular, ou o próprio computador, sem precisar da intermediação de nenhuma telefonista.

(Li certa vez um artigo que mencionava o fato de que, no início do século XX, quando a telefonia – ainda manual – se popularizava nos Estados Unidos, um analista disse que, se a curva de crescimento se mantivesse, dentro de 50 anos, a contar daquela data, toda mulher americana teria de ser telefonista. Errou cheio – e feio. Não levou em conta a evolução da tecnologia. E, não sei por que cargas d’água, não imaginou que homens pudessem vir a exercer a função, como hoje exercem a função de comissários de bordo ou atendentes de voo, antes prerrogativa das aeromoças…).

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Agora, a grande questão, que justifica a inserção deste artigo aqui neste blog…

E o acesso à educação, à aprendizagem? Vai continuar a ser mediado por professores, dentro de uma instituição, a escola? Ou será que teremos a desintermediação também no acesso à educação e à aprendizagem?

Há gente que, tentando parecer atualizada, diz que o professor não ensina, apenas medeia… Irônico que se diga isso justamente numa época em que os intermediadores estão desaparecendo!

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É forçoso reconhecer que, em grande medida, o acesso à educação e à aprendizagem já está desintermediado. Pela internet, temos acesso direto não só a todo e qualquer tipo de informação, como também a uma ampla e variada gama de pessoas com quem podemos interagir e nos comunicar, para solucionar dúvidas, buscar orientação, discutir e debater as questões que nos são importantes, dispensando a intermediação do professor e da escola.

Facebook, a rede social de mais de 700 milhões de usuários – 10% da população do mundo, provavelmente, em seu conjunto, a parcela que detém mais informações, conhecimentos e competências – não vai deixar de afetar a educação e as nossas formas de aceder à informação e nos comunicar, vale dizer, de aprender.  Ali temos acesso a informações de todos os tipos, ali encontramos pessoas com enorme cabedal de informações, conhecimentos e competências, em áreas afins aos nossos interesses, ali podemos conversar diretamente com especialistas em quase qualquer assunto.

Na verdade, ali podemos descobrir propostas novas e ali podemos expressar e testar nossas ideias e reflexões, receber críticas, rebatê-las. Facebook é um micromundo no espaço virtual. Ali impera a desintermediação no acesso à informação, à comunicação, à educação, à aprendizagem. Ali podem ser criados, com extrema facilidade, inúmeros ambientes virtuais de aprendizagem colaborativa, com configurações que se adaptem aos interesses e aos estilos de aprendizagem de cada um. Temos, ali, todos nós, múltiplas possibilidades de acesso personalizado à educação e à aprendizagem. Uma alternativa à escola padronizada e massificada em que um só tamanho veste todo mundo.

Li, recentemente, um livro interessante, chamado The Church of Facebook: How the Hyperconnected Are Redefining Community (A Igreja de Facebook: Como os Hiperconectados Estão Redefinindo Comunidade), de Jesse Rice.

Eis o que diz a última capa do livro (em minha tradução):

O mundo está ficando menor, um perfil de cada vez.

Uma revolução está acontecendo diante de nossos olhos. Um movimento de amplitude mundial, ancorado em redes wi-fi, está mudando a forma como interagimos e nos relacionamos com os outros. É uma mudança sísmica que está redefinindo a ideia de comunidade. Todo dia milhões de pessoas se conectam umas às outras através de redes sociais online, sites que nos permitem acompanhar as andanças, atividades e pensamentos de nossos amigos e nos ajudam a definir as formas como eles nos veem.

Mas, por mais que perfis pessoais possam se tornar reveladores, eles apontam para além de si próprios, para realidades e verdades ainda mais amplas e profundas. Eles colocam a nu nosso desejo de identidade e de comunidade, nossa fome por sermos conhecidos, identificados e reconhecidos como parte de um grupo significativo.

Jesse Rice acredita queo  Facebook nos oferece a oportunidade de olhar, com profundidade, para nossas necessidades mais básicas e fundamentais. Acompanhe Jesse enquanto ele explora o enredamento social e seu impacto sobre a cultura – e sobre a igreja, que é parte da cultura. Cheio de perspectivas inovadoras e de questões provocadoras, A Igreja de Facebook nos encoraja a perseguir relacionamentos autênticos, com Deus e com aqueles que nos rodeiam.”

É isso. Muita gente considerava a igreja e as forças armadas as instituições mais conservadoras da sociedade. Mas aí está um “pastor de música e adoração” (evidentemente protestante, não católico) mostrando que alguns segmentos da igreja estão atentos a inovações. Afinal de contas, a igreja não quer que os fiéis vivam a religião apenas nos domingos (muito menos apenas na Páscoa e no Natal): quer que eles a vivam o tempo todo, 24 horas por dia, sete dias por semana. Quer que a religião os envolva enquanto trabalham e enquanto se divertem. Anytime, Anywhere Worship… (Culto a Qualquer Momento e em Qualquer Lugar…). Sem sacerdotes, sem pastores… Na verdade, em boa doutrina da Reforma, o sacerdote e o pastor estão onde está o crente… A desintermediação da Reforma em roupagem do século 20, agora viabilizada pela tecnologia.

Quando acontecer o que imagino que vá acontecer com o Facebook na área da educação, por que a gente vai precisar de escolas e de professores? Só para guardar e custodiar crianças pequenas? Será que as escolas vão se tornar grandes creches e os professores os seus atendentes?

Será que a escola vai ganhar da igreja como instituição mais conservadora da sociedade? (Os militares já são super high tech).

Alguém pode tentar responder argumentando que as escolas, além de responsáveis (através dos professores) por ensinar, são também responsáveis (através da direção e coordenação) por elaborar o currículo, isto é, fixar as expectativas de aprendizagem que elas (pretendendo falar pela sociedade) têm para os seus alunos. E perguntarão quem fará isso, se as escolas deixarem de existir, ou se as escolas se tornarem, não ambientes de aprendizagem, mas ambientes de mera custódia (e alimentação – a merenda parece ter se tornado uma ação pegagógica essencial…).

A resposta é relativamente fácil.

A maior parte do que a escola espera que seus alunos aprendam é totalmente inútil para a vida, o trabalho e o exercício da cidadania de seus alunos em uma sociedade aberta e democrática na qual a tecnologia é ubíqua. Para começar, a escola afirma preparar cidadãos para o exercício da democracia em um ambiente do qual a democracia e a liberdade passam longe. Os alunos não têm liberdade para escolher o que aprender, não participam da governança da escola, não decidem nada nem mesmo a respeito de suas próprias vidas na escola. Leiam o artigo “Pequena Escola de Liberdade”, escrito por Ricardo Semler, a pessoa que concebeu, criou e até hoje mantém as Escolas Lumiar. Depois, verifiquem se a escola democrática descrita ali se parece com as escolas que vocês frequentaram e com as outras escolas que vocês vieram a conhecer depois…

Por que isso acontece?

Todos sabemos que cada ser humano é único e irrepetível (com a possível exceção de gêmeos idênticos). Temos conjuntos de características cognitivas e não cognitivas únicos. Cada um de nós tem sua personalidade, seu temperamento, seus talentos naturais, seus interesses, seu jeito próprio de ser, de pensar, de fazer as coisas, de aprender. No devido momento, cada um de nós faz suas escolhas, com base em seus valores, e define seu projeto de vida. A ideia de que exista um amplo conjunto de coisas que todos precisamos saber ou saber fazer é um despropósito. Sim, existe um pequeno conjunto, mas esse conjunto é mínimo. Talvez ele se exaura em algo como a seguinte lista do que todos nós precisamos saber numa sociedade como a nossa:

  • Entender a língua materna e a falar bem, para poder ouvir e entender os outros e expressar o que pensamos, sentimos, desejamos, e escolhemos, de modo a poder interagir e nos comunicar com os nossos semelhantes;
  • Ler e escrever na língua materna, para poder fazer essas mesmas coisas por escrito, deixando-as registradas, para nós mesmos e para a posteridade;
  • Argumentar e criticar argumentos, para poder debater com os nossos semelhantes questões de interesse comum;
  • Entender raciocínios quantitativos elementares para poder transacionar em uma sociedade cuja economia depende do dinheiro;
  • Respeitar os direitos básicos de terceiros e seguir certas regras básicas de convivência sem as quais retroagimos à barbárie.

(Este é o básico. Há, nessa lista, embora curta demais para alguns, mais do que havia no Trivium Medieval. Menos, em muitos casos, é mais… ).

Tudo mais que precisamos aprender ou aprender a fazer depende dos talentos naturais, dos interesses, das escolhas, dos valores e dos projetos de vida de cada um. Não é básico, é específico. Um escritor de ficção não precisa conhecer quase nenhuma matemática. Um médico não precisa conhecer quase nenhuma literatura. Um advogado não precisa conhecer quase nenhuma física. Um pastor, um padre e um rabino não precisam conhecer quase nenhuma química. Um poeta não precisa conhecer quase nenhuma estatística.

De qualquer maneira, mesmo que minha proposta seja vista como exageradamente minimalista, acredito que não seria difícil chegar a um acordo sobre o mínimo básico que todos deveriam saber e saber fazer. E saberíamos determinar, melhor do que a escola, quando alguém chegou ao nível de proficiência desejável em cada um desses aprenderes. As empresas e as demais instituições da nossa sociedade selecionam bons empregados sem necessidade de um currículo oficial. Cada um sabe o perfil profissional de que precisa e que deseja ter em seu quadro de colaboradores.

A tecnologia hoje disponível nos permite um nível de desintermediação, e, portanto, de emancipação, enorme em relação a instituições que tentam nos tutelar, que tentam nos roubar a liberdade de aprender. É hora de nos libertarmos da tutela da escola e dos professores, como a população do século 16 se libertou da tutela dos padres e da igreja.

Por que tantos intermediários? Vamos desintermediar o acesso à educação e à aprendizagem! Vamos instituir a liberdade de e no aprender…

(E se, ao final, restarem algumas escolas, que elas sejam totalmente separadas, como as igrejas são hoje, do estado).

Desintermediar não é algo simples como tirar dinheiro de um caixa eletrônico poderia sugerir. O processo mexe com uma gama enorme de interesses. Haja vista as guerras (chamadas de religiosas) que se desenrolaram na Europa nos dois séculos posteriores à Reforma. Mas é algo cuja hora chegou, também na educação.

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Em São Paulo, 15 de Junho de 2011

Tecnologia, Inovação, e Transformação: A Arte de Quebrar Paradigmas

Meu décimo terceiro artigo no Blog das Editoras Ática e Scipione (http://blog.aticascipione.com.br).

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http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/tecnologia-inovacao-e-transformacao-a-arte-de-quebrar-paradigmas/

Tecnologia, Inovação, e Transformação: A Arte de Quebrar Paradigmas

Em meu artigo anterior (“A arte de maquiar defuntos e as pseudoinovações educacionais”), discuti a arte de mudar (mas sem quebrar) paradigmas. Neste, quero, de forma um pouco mais positiva e construtiva, discutir a arte de quebrar paradigmas. A discussão vai colocar o foco na relação entre tecnologia, inovação e transformação. Esses três conceitos capturam, a meu ver, a essência da arte de quebrar paradigmas.

No centro dessa tríade de conceitos está a inovação. Inovar é, naturalmente, introduzir o novo em determinado contexto. Mas, como sugeri no artigo anterior, é possível também inovar o contexto, ou seja, quebrar o paradigma que constitui aquele contexto e procurar criar um novo contexto que, oportunamente, se torne um novo paradigma.

Aplicando essa tese à educação escolar, poderíamos dizer que pode haver inovação na escola e pode haver inovação da escola. Aquela se localiza dentro do paradigma. Esta procura subvertê-lo, com o intuito de vir estabelecer, eventualmente, um novo paradigma. (Não há nada errado, em si, na busca e na adoção de um paradigma: o problema está em continuar usando um paradigma obsoleto, anacrônico, que já deu o que tinha de dar e que, agora, mais atrapalha do que ajuda).

Inspirando-me no que disse Jay Allard (ex-vice-presidente da Microsoft, em grande parte responsável pelo sucesso que é hoje a plataforma Xbox) à revista Business Week, mas adaptando a sua fala para a área da educação, temos o seguinte:

Para mudar o paradigma de educação hoje vigente, e, assim, radicalmente transformar a educação, criando condições para o surgimento de um novo paradigma, precisamos imaginar uma educação drasticamente diferente do que ela é hoje. Se, ao construir essa nova visão da educação, aproveitarmos muito do conhecimento e da experiência que nos trouxeram até aqui, provavelmente terminaremos exatamente onde começamos: com uma escola, e, o que é pior, muito parecida com a que hoje temos. Para ter um resultado verdadeiramente diferente, temos de olhar as coisas de uma perspectiva totalmente diferente. [A declaração foi feita em artigo de capa publicado da edição de 4/12/2006 da Business Week, com o título “Microsoft’s New Soul”, ou “A Nova Alma da Microsoft”].

Novamente me inspirando em alguém, agora em Stephanie Pace Marshall, em seu artigo intitulado “The Vision, Meaning, and Language of Educational Transformation” (“A Visão, o Significado e a Linguagem da Transformação da Educação”), de 1995, e adaptando o que ela disse à educação, temos:

Quando a raiz ou o fundamento de uma estrutura se racha (como a raiz de um dente ou o alicerce de um prédio, por exemplo), não há como reformá-los. É necessário começar do zero, criando uma nova estrutura. Em outra metáfora, se tomarmos uma lagarta e lhe acrescentarmos asas, não passaremos a ter uma borboleta. Teremos, isto sim, nesse caso, apenas uma lagarta alada, ou seja, uma lagarta muito esquisita, deformada e disfuncional. Para que uma borboleta surja há a necessidade não de reformar da lagarta, mas de um processo que envolve a sua transformação radical. Ao final, não sobra virtualmente nada da lagarta original: a borboleta é algo genuinamente novo.

Por que não ousamos realmente subverter o paradigma atual na área da educação e buscar um novo paradigma, de algo real e radicalmente novo? Algo que possamos contemplar e dizer: “É isso aí!”?

A despeito do fato de que quase todos educadores falam hoje da necessidade de mudar o modelo atual da educação, é inegável que, quando eles especificam quais são as mudanças que têm em mente, a gente constata que, se elas forem efetivadas, pouca coisa vai se alterar substantivamente na educação, porque o que se propõe não passa, na realidade, de pequenas mudanças (“fixes”, jeitinhos, ajeitadas) situadas dentro do paradigma (reforçando-o, portanto, em vez de subvertê-lo). Assim, o paradigma educacional vigente continua firme no lugar, apesar de todo o discurso sobre a necessidade de mudá-lo. Em um caso assim, quanto mais se muda, mais as coisas ficam como sempre foram. Trocam-se os anéis, mas os velhos dedos continuam lá…

Na verdade, muitos educadores vão além e não só afirmam a necessidade de mudanças na educação escolar, mas acrescentam (na linha do que vimos dizendo neste blog) que não bastam mudanças parciais, incrementais, graduais, evolutivas, reformadoras: as mudanças precisam ser sistêmicas e radicais – revolucionárias, mesmo, dizem. E, por cima, insistem que essas mudanças vão levar a educação escolar para além do paradigma da Sociedade Industrial, introduzindo um novo paradigma compatível com a Sociedade da Informação. Sublinham, muitas vezes, a urgência dessa mudança de paradigma… No entanto, quando eles explicitam quais as mudanças que têm em mente, percebemos que fica tudo como dantes no quartel de Abrantes, e que o paradigma vigente continua firme no lugar, a despeito de todo o discurso sobre a necessidade de substituí-lo.

Vejamos alguns exemplos de aparentes mudanças que, ao final, não mudam nada.

Virtualmente, todo mundo que diz que é preciso mudar o paradigma educacional vigente também diz (agora recebendo aplausos da audiência!) que nenhuma tecnologia substituirá o professor, e que o professor será sempre o “gateway” (porta de entrada) para a educação – inclusive e especialmente para a nova educação, que estará no centro de uma escola inovadora. E aproveitam o embalo para nos lembrar de que, para que possam continuar a ser esse “gateway”, os professores precisam de melhor formação inicial, mais programas de aperfeiçoamento profissional, mais tempo fora da sala de aula para prepará-las ou para corrigir trabalhos dos alunos, salários mais dignos, melhores condições de trabalho etc… E a escola precisa de uma arquitetura mais moderna… Em outras palavras, sem muito mais dinheiro, os professores não conseguirão transformar a escola atual em uma escola diferente.

O que há de novo paradigma em tudo isso? Apenas mais dinheiro? 

Quem garante que o ambiente educacional do futuro, radicalmente transformado em relação ao que é hoje, será uma escola cheia de professores, como os conhecemos, tanto à instituição, como aos seus profissionais?

Na verdade, estou plenamente convencido de que o ambiente educacional do futuro não terá escolas, como as conhecemos, ou as terá em número ínfimo. Esse novo ambiente educacional será a própria sociedade, interligada em rede. 

Como vimos em inúmeros outros artigos neste blog, Ivan Illich vinha, desde 1971 – há 40 anos, portanto –, insistindo na desescolarização da sociedade, na aprendizagem contextualizada no lazer e no trabalho, nos centros de permuta de habilidades, na aprendizagem através de redes de pessoas com interesses afins… E ele propôs essa agenda profundamente transformadora – aqui, sim, temos mudança de paradigma – muito antes de gigantescas redes sociais, viabilizadas pela tecnologia, estarem amplamente difundidas, antes de a tecnologia transformar a sociedade industrial em uma sociedade da informação, do conhecimento, da aprendizagem – isto é, em sociedade aprendente (learning society) — uma sociedade que aprende e em que se aprende.

Segundo exemplo de mudança na escola, não da escola.

Virtualmente, todo mundo que diz que é preciso mudar o paradigma educacional vigente também diz que é necessário desenvolver “conteúdo digital” para que os alunos do futuro tenham materiais com os quais trabalhar através de suas maquininhas. É aqui que entram os Web Quests, as Web Lessons, os objetos de aprendizagem, e outras coisas afins, mencionadas no artigo anterior. Supostamente, quando todo o conteúdo tradicional estiver digitalizado e puder ser acessado por meios eletrônicos, a qualquer hora e a partir de qualquer lugar, teremos chegado à terra prometida do novo paradigma educacional.

Na maior parte dos casos, entretanto, o que se rotula de conteúdo digital não passa do mesmíssimo conteúdo tradicional de nossos livros impressos atuais, só que agora em formato eletrônico (em muitos casos o livro impresso tradicional sendo apenas digitalizado, “pedeefizado”, sem qualquer outra mudança, nem mesmo de layout).

É apenas para isso que serve a tecnologia digital, para que a gente leia na tela o que antes lia em papel? Às vezes o texto é suplementado por imagens, animações e vídeos, mas o conteúdo a ser aprendido permanece a mesma coisa de sempre.

Como disse uma vez meu amigo Bruce Dixon, educador australiano e diretor da Anytime, Anywhere Learning Foundation (Fundação Aprendizagem a Qualquer Hora e em Qualquer Lugar), a pior tragédia que pode ocorrer na área da educação é digitalizar todo o conteúdo que hoje é usado na educação, melhorar a infraestrutura tecnológica da escola para que ela possa estar disponível para os alunos 24 horas por dia, sete dias por semana, 52 semanas por ano, prover cada aluno com seu computador pessoal, para que possa aprender a qualquer hora e a partir de qualquer lugar, e, no entanto, constatar que nada mudou, substancialmente, na educação.

Terceiro exemplo de maquiamento de defunto…

Os smartboards (lousas inteligentes) são anunciados como tecnologia da escola do futuro. A lousa verde substituiu o quadro negro, a lousa branca substituiu a lousa verde, e, agora, na grande apoteose, a lousa eletrônica, supostamente inteligente, substitui todas as anteriores. Escolas tradicionais destinadas às classes mais elevadas investem milhões de reais nessa tecnologia.

Mas será que alguém, em sã consciência, realmente acredita que uma lousa, ainda que digital, pode transformar radicalmente a educação, mudar o paradigma educacional vigente? Afinal de contas, ela ainda é uma lousa!

E para que serve uma lousa eletrônica dita inteligente numa sala de aula física de uma escola física quando cada aluno tem um computador sofisticado com acesso à Internet e está aprendendo a partir de algum outro lugar que não a sua sala de aula convencional e com o auxílio de outras pessoas que não os professores de sua escola física?

Em suma: mesmo os que propõem mudanças não são radicais o suficiente em sua imaginação da educação do futuro. Suas ideias continuam “dentro da caixa”.

Quando afirmamos que os alunos do futuro, munidos de equipamentos sofisticados conectados à Internet, irão aprender o tempo todo, a partir de qualquer lugar, infelizmente nos esquecemos de que a escola física e os professores que a habitam já ficaram necessariamente fora da equação…

Angus King (ex-governador de Maine, EUA, o primeiro governador a colocar um computador nas mãos de cada aluno do seu estado nos Estados Unidos) uma vez disse, em alto e bom tom, que a tecnologia não só está destruindo os limites de tempo e espaço que definem a escola atual, mas que ela também está substituindo o pessoal que tem papel significativo na aprendizagem dos alunos – e que essa mudança talvez seja muito mais importante do que a quebra dos relógios, das paredes e dos muros da escola… Quebrando os relógios, as paredes e os muros da escola, quebrando o horário rígido da atividade escolar, criando a possibilidade de “anytime, anywhere learning”, a tecnologia colocou – na realidade, recolocou – à disposição dos aprendentes uma multidão de pessoas competentes, interessantes, motivadas, dispostas a ajudar os outros a aprender, começando com os colegas, os pais e o restante da família imediata, passando pela comunidade mais próxima, e indo ao extremo de incluir os especialistas de qualquer parte do mundo.

Ou seja, a tecnologia ressuscitou e viabilizou as propostas radicais de Ivan Illich, apresentadas inicialmente 40 anos atrás. Mas mudanças radicais também propõe, hoje, Sugata Mitra, educador indiano. Falemos um pouco dele.

Sugata Mitra, hoje na Universidade de New Castle (Inglaterra), provou, quando ainda morava na Índia e trabalhava para uma empresa de informática, que crianças indianas pobres, de 6 a 12 anos, aprendiam a usar o computador sem nenhum ensino. Seu experimento original foi “The Hole in the Wall” (“Um Buraco na Parede”).

Em Nova Delhi, a empresa em que Sugata Mitra trabalhava ficava ao lado de uma favela. Na verdade, o prédio da empresa dava para a favela. Em 1999 ele colocou, em um buraco feito na parede da empresa, um monitor de vídeo ligado a um potente computador conectado à Internet e escondido atrás da parede. Ao lado do monitor, colocou algo parecido com o touch pad de notebooks para fazer as vezes de mouse. O computador estava equipado com software convencional, em inglês, sem nenhum software dito pedagógico. E, naturalmente, colocou uma câmera escondida, do outro lado da rua, filmando o que se passava com o computador cuja tela estava ali disponível no buraco.

Pouco tempo depois um menino, de uns dez anos, pobre, com cara de tímido, parou em frente ao computador. Examinou cuidadosamente o equipamento, olhou para os lados para ver se alguém estava monitorando o que ele fazia, e começou a mexer. Pura tentativa e erro, mas feita por alguém curioso, interessado, inteligente, e, portanto, com vontade de aprender. Logo descobriu que o toque no touch pad afetava o que se exibia na tela, e que apertando os botões do touch pad era possível produzir ações na tela… Logo outro menino se aproximou. O primeiro lhe mostrou sua descoberta. Conversaram, trocaram ideias. Em alguns momentos, percebia-se que discutiam possibilidades e alternativas.

Para encurtar a história, em pouquíssimo tempo, vários meninos estavam operando o equipamento com competência, sendo capazes até mesmo de acessar a web e enviar e-mails. Aprenderam a manejar tecnicamente o computador sem nenhum ensino, sem nenhum professor, sem nenhuma escola…

(A história de The Hole in the Wall pode ser encontrada em diversos vídeos no YouTube. Vide, em especial, este aqui).

o O o

Vou, agora, aparentemente mudar um pouco de assunto, para encaminhar a conclusão. Vou citar um exemplo de fora da área da educação, envolvendo o mercado livreiro. O exemplo de certa forma privilegia o fator tecnologia como agente de mudanças, mas a tecnologia depende da utilização que nos dispomos a fazer dela, podendo ser usada de forma conservadora, reformadora ou transformadora (como já vimos aqui neste blog).

Começo falando sobre a maneira como os livros eram e são produzidos:

  • Os livros manuscritos (usando papiro, pergaminho, velo e finalmente o papel) existiram por pelo menos 5 mil anos (ou 50 séculos), de, digamos, 3500 a.C. até 1500 d.C.;
  • Os livros impressos, como os conhecemos, existem há um pouco mais de 500 anos (ou seja, cinco séculos);
  • Os livros eletrônicos (e-books) existem, como presença significativa no mercado, há pouquíssimo tempo (digamos, para manter a simetria, há apenas cinco anos, ou 0,05 de um século);
  • Os livros manuscritos se constituíram num mercado extremamente estável que durou pelo menos cinco milênios, mas, quando os livros impressos apareceram, em menos de um século eles acabaram totalmente com o mercado dos livros manuscritos;
  • Os livros impressos também se constituíram num mercado extremamente estável, de cinco séculos. Quanto tempo vai levar para que eles acabem, agora que surgiram os livros eletrônicos?
  • Apesar do fato de que livros manuscritos hoje são apenas valiosíssimas relíquias de museus, muita gente importante se apressa em dizer (Chico Buarque, entre eles), que, no caso do livro impresso, isso não vai acontecer, que o livro impresso nunca vai deixar de existir, que ele nunca será totalmente substituído pelo livro eletrônico.

Pode ser. Mas acho difícil.

Vamos adiante e falemos agora sobre a maneira como os livros – primeiro os impressos, depois os eletrônicos – eram e são distribuídos (na verdade, vendidos).

  • As livrarias físicas eram (e, talvez, continuem sendo até hoje) a principal forma de distribuição de livros impressos para os usuários finais. Por muito tempo, elas funcionavam com pouca ou mesmo nenhuma tecnologia (usando cadernos e fichas para controle de estoque, cadernos ou simples máquinas de calcular ou caixas registradoras para registro de vendas e fluxo de caixa, folhas de cálculo para contabilidade e, se fosse o caso, folha de pagamento);
  • A chegada de tecnologia básica (computadores com planilhas eletrônicas ou programas comerciais integrados) permitiu que os livreiros continuassem a fazer a mesma coisa que já faziam, só que, agora, com pequenos ganhos de eficiência – esse é um uso conservador da tecnologia;
  • A chegada de tecnologia ainda básica, mas com acesso à internet, permitiu que os livreiros criassem sites para suas livrarias em que anunciavam os livros disponíveis em suas lojas, assim alcançando potenciais consumidores através de comunicação e publicidade relativamente barata – esse é um uso levemente reformador da tecnologia, que estende a comunicação e publicidade do livreiro;
  • A chegada de tecnologia um pouco mais avançada permitiu que os livreiros passassem a vender livros também online, acrescentando um hotsite de venda ao site de suas livrarias – uso bem mais reformador da tecnologia, que estende o escopo do negócio, posto que qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, pode agora comprar um livro no site;
  • Entra Jeff Bezos em cena e cria uma livraria online, a Amazon, que não tem estoque, só tem catálogo, e que, na realidade, faz a ponte para a venda de livros para o comprador-leitor. Registre-se que todo mundo conhecia a tecnologia que viabilizava essa solução, mas só Jeff Bezos, que não era livreiro, pensou nisso e agiu conforme a sua visão. As grandes livrarias, como Barnes & Noble, simplesmente bobearam. Estão, hoje, ameaçadas de quebrar – enquanto o empreendimento iniciado por Jeff Bezos caminha de vento em popa. Para quem não conhece Jeff Bezos, recomendo a leitura de sua minibiografia no site Academy of Achievement;
  • O desenvolvimento de tecnologia relativamente mais sofisticada permitiu que a Amazon passasse a criar perfis altamente sofisticados dos seus clientes, com base não só nos livros que de fato compravam, mas também nos livros que pesquisavam e cujas resenhas liam – uso criativo de tecnologia (banco de dados com ferramentas analíticas sofisticadas) que leva o uso reformador da tecnologia no ambiente livreiro ao seu limite. (Novamente, registre-se que a tecnologia que permite fazer isso não era desconhecida de outros empreendedores. Mas Jeff Bezos foi o primeiro a pensar em usá-la assim – e esse é um diferencial importante do seu negócio);
  • Tecnologias mais sofisticadas ainda permitiram a criação e comercialização de livros eletrônicos (e-books) e de leitores de livros eletrônicos (e-book readers) – um uso agora criativo, inovador e transformador da tecnologia, que radicalmente revoluciona o mercado livreiro e deixa editores e livreiros tradicionais, para não falar em fabricantes de computadores e até consumidores, em polvorosa. (Registre-se que, embora hoje todo mundo esteja correndo atrás disso, Jeff Bezos foi o primeiro a realmente investir nesse mercado, saindo na frente da concorrência);
  • Ao disponibilizar, para autores que antes não conseguiam publicar seus livros no restrito mercado livreiro tradicional, a tecnologia que viabiliza e facilita a produção de livros eletrônicos, como ele já está fazendo, Jeff Bezos vai revolucionar ainda mais o mundo editorial.

Jeff Bezos conseguiu fazer uma mudança de paradigma revolucionária na maneira como livros são distribuídos, lidos e publicados porque se aproveitou de uma mudança revolucionária na maneira em que livros eram produzidos.

Não contente em revolucionar a forma em que o mundo compra livros impressos, tirando-os, aos poucos, da livraria convencional da esquina e mesmo da megalivraria do shopping e disponibilizando-os pela internet; não contente com revolucionar a forma em que o mundo lê os livros, agora não mais em papel, mas na tela de um leitor de e-books, computador, tablet ou mesmo telefone, Jeff Bezos está agora disposto a revolucionar a forma em que o mundo publica livros, sem passar por uma editora e por um editor… (Na próxima semana vou falar sobre desintermediação).

o O o

A comunicação e o acesso à informação, ingredientes básicos da educação, já foram drasticamente transformados pela tecnologia digital. Houve uma mudança significativa de paradigma nessa área, em cerca de 30 a 35 anos, desde que os microcomputadores apareceram em cena e se tornaram populares.

A carta tradicional, manuscrita ou datilografada, virtualmente desapareceu de cena. O uso do telefone, restrito, porque fixo, e destinado apenas a transmitir a voz, sofreu uma transformação revolucionária. Hoje há mais telefones celulares no Brasil do que gente, e, em sua maior parte, esses telefones são usados não só para transmitir a voz mas para tirar fotografia, ouvir música (em mp3 ou mesmo em estações de rádio baseadas na web), ver televisão digital, trocar e-mails, aceder às informações da web, abrir portas com fechaduras digitais, passar por catracas em estações de metrô e estações ferroviárias e por portões de embarque em aeroportos… Logo, também em catracas de ônibus urbanos.

Caminhamos rapidamente para que cada pessoa tenha, além de seu telefone celular nas proporções convencionais, um notebook ou, possivelmente, um tablet, de dimensões mais avantajadas, para facilitar a digitação e visualização das informações.

Nossos livros, revistas e jornais estão, cada vez mais, disponíveis na internet. O acesso fácil e eficiente à internet, por meios fixos e móveis (especialmente estes), vai rapidamente se tornar universal, na sequência da universalização do uso do telefone celular “inteligente” (smart).

Redes digitais colocam em um mesmo ambiente mais de 10% da população do mundo, certamente os 10% mais bem informados e mais desejosos de compartilhar seus conhecimentos, suas experiências, suas competências.

Por que não conseguimos nos valer de tudo isso e fazer uma transformação na educação de ordem semelhante à que Jeff Bezos, quase sozinho, fez no mercado dos livros?

Por que não conseguimos reinventar a escola como Jeff Bezos reinventou a livraria? Será que a escola é uma instituição tão sui generis que desenvolvimentos que se aplicam a outras instituições de nossa sociedade não podem ter paralelo nela?

Sugiro que, para transformar a escola atual em um ambiente de aprendizagem digno do nome, é preciso repensar, de forma drástica e radical, o que entendemos por educação e aprendizagem e dar respostas verdadeiramente inovadoras a questões como “Por que educar?”, “Para que educar?”, “Por que aprender?”, “Para que aprender?”, “Como aprender?”.

Em outras palavras: a tecnologia é necessária para a transformação da educação, mas não é suficiente. Não teremos essa transformação sem também uma nova visão da educação e da aprendizagem que leve em conta, de forma séria e responsável, a realidade tecnológica em que vivemos e as transformações que essa realidade já efetuou em outros setores da nossa sociedade.

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Em São Paulo, 7 de Junho de 2011

A Arte de Maquiar Defuntos e as Pseudoinovações Educacionais

A seguir, meu artigo de hoje (deveria ter saído ontem, mas houve algo “time-bound” que acabou empurrando meu artigo para hoje) no Blog das Editoras Ática e Scipione.

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A Arte de Maquiar Defuntos e as Pseudoinovações Educacionais 

Diferentemente do que fiz em vezes anteriores, vou dividir este artigo em blocos numerados, para destacar bem o argumento. E vou fazer uso de algumas metáforas, a primeira delas, admitidamente, não de muito bom gosto. Ao final, receio, a metáfora de mau gosto será, talvez, o aspecto menos inaceitável deste artigo para a maioria dos leitores. Mas que assim seja.

1. A arte de maquiar defuntos

O defunto está lá na mesa do velório, mortinho da silva. Nós nos consolamos, e imaginamos consolar os outros, dizendo: “Mas ela está tão linda, não? Parece que está apenas dormindo…”.

Saber maquiar defuntos é arte valiosa em nossa sociedade, porque cada vez mais procurada. Ela faz com que mortos pareçam Belas Adormecidas, prontas para serem despertadas com o beijo casto de um príncipe.

O ofício do maquiador de defuntos faz uso de tecnologias e materiais sofisticados para disfarçar a impressão sempre ruim da morte e reduzir o seu impacto doloroso.

2. Investir ou trocar?

Mudando (felizmente) de assunto e metáfora, se a gente vê alguém colocando rodas de liga leve em seu carro, trocando pedais, instalando volante esportivo, substituindo bancos de tecido por bancos de couro, botando para-brisa ray ban ou insufilm, é legítimo concluir que a pessoa acredita  que o carro, no essencial, ou seja, naquilo que afeta a sua operação, está basicamente em ordem, e que vale a pena investir nos detalhes cosméticos, que afetam apenas a sua aparência. Em suma: a pessoa acredita que vale a pena conservar o carro, investindo nele.

Se a gente vê alguém colocando pneus novos no carro, trocando amortecedores, ajustando embreagem, regulando freios, retocando lataria, é legítimo concluir que a pessoa acredita, por qualquer razão, que é um bom negócio conservar o carro, desde que sejam feitas algumas reformas no essencial, no que afeta a operação do veículo, mesmo que os recursos investidos nessas reformas sejam relativamente significativos. Em suma: a pessoa acredita que, com as reformas, o carro ainda poderá durar bom tempo.

Quando, porém, a gente vê alguém trocando um carro usado por um carro novo, é legítimo concluir que a pessoa acredita que não compensa mais investir no carro velho e que vale a pena mudar para um zero quilômetro. (Numa eventual troca, investimentos significativos feitos no carro que se quer trocar raramente se traduzem em preço proporcionalmente maior, de modo a justificar o investimento).

3. A razão do exercício

Por que começo este artigo mencionando essas coisas?

Por uma razão simples, que ficará evidente na sequência. Mas posso dizer desde já que a razão tem que ver dois trinômios: “educação, tecnologia e mudanças” e “reforma, inovação e transformação”

4. Conservar, reformar ou transformar?

George Scharffenberger, que foi diretor da ONG global WorldLinks, ligada ao Banco Mundial, uma vez disse (numa reunião em Brasília, em 2004, da Comissão de Educação do World Economic Forum, de que tive o prazer de participar, representando o Instituto Ayrton Senna) que, encarando as coisas no nível mais básico e amplo, a tecnologia pode ser usada na educação (especialmente na educação escolar) fundamentalmente de três maneiras:

  • Para sustentar (apoiar) o que já se faz

  • Para suplementar (estender) o que se faz

  • Para subverter (transformar) o que se faz

Esses os “três esses”: sustentar, suplementar, subverter. Poderíamos dizer que eles representam o uso, respectivamente,conservador, reformador e transformador da tecnologia na educação (especialmente no caso da educação escolar).

O professor que usa o computador para projetar slides em PowerPoint em vez de escrever no quadro negro da classe, ou que indica para leitura textos disponíveis na internet em vez de textos impressos encontráveis na biblioteca ou adquiríveis em livraria, se enquadra na primeira categoria. A tecnologia, nesse caso, não altera substantivamente nada nos processos por ele utilizados: apenas os torna, talvez, um pouco mais eficientes e “charmants”.

O professor que usa a internet para estender (no espaço e no tempo) o alcance de sua sala de aula se enquadra na segunda categoria. Ele suplementa o que antes fazia com, digamos, um site de apoio, um blog, um grupo de discussão numa rede social, um chat. Educação a Distância, ou E-Learning, especialmente quando a metodologia se esgota em Ensino a Distância, com quase nenhuma discussão substantiva, se encaixa também aqui.

O que se enquadra na terceira categoria ficará mais claro no decorrer deste artigo. Mas são processos que vão além do que já se faz, e, em última instância, subvertem a prática pedagógica corrente, em favor de algo totalmente novo – ou seja, altamente inovador.

5. Inovação

O fator inovação no uso da tecnologia na educação é diretamente proporcional a essa sequência: uso conservador, uso reformador, uso transformador. Quanto mais transformador (vale dizer, subversivo do paradigma atual) for o uso da tecnologia na educação, mais inovador ele será; quando mais conservador, menos inovador ele será.

Essa não é uma conceituação arbitrária de inovação. Inovar tem que ver com introduzir o novo. É difícil imaginar como é possível inovar enquanto se procura conservar o velho. O próprio Mestre disse, dois mil anos atrás, que não se deve colocar vinho novo em odres velhos.

6. Quem se arrisca a inovar na educação?

Nesse espírito, mas levando a discussão um pouco adiante, Nicholas Negroponte, ex-diretor do Media Lab do MIT, celebridade da área de educação e tecnologia, e pai da ideia de que cada criança de hoje pode e deve ter seu próprio computador (One Laptop Per Child), disse – em palestra que tive o privilégio de assistir, no Consortium of School Networking (CoSN), em Washington (DC), também em 2004 – que se desejarmos encontrar práticas realmente inovadoras na educação, não devemos procurá-las nos países que têm bons resultados nas avaliações internacionais da educação escolar, como é o caso de Finlândia, Hong Kong e Coreia do Sul. Por estarem entre os mais bem avaliados em testes como PISA, esses países (compreensivelmente) têm receio de adotar práticas muito inovadoras em seu sistema educacional. Afinal, se essas práticas não derem certo, poderão colocar em risco a posição já conquistada. Faz sentido, portanto, que sejam conservadores no tocante a seus sistemas educacionais – ou que, no máximo, introduzam algumas pequenas reformas para corrigir pequenas falhas.

Propostas inovadoras na área da educação provavelmente virão de países que, atualmente, estão muito mal avaliados em testes internacionais – como, possivelmente, o Brasil, concluiu Negroponte. Esses países têm bem menos a perder se as propostas não derem muito certo.

(Será que temos em nós aquilo que é necessário para corresponder à expectativa de Negroponte e nos transformarmos em líderes mundiais na área de inovação educacional?).

7. O contrassenso

Tudo o que foi dito até aqui parece-me fazer muito sentido. Na verdade, creio que dispensa argumentação adicional.

O que não faz sentido – o contrassenso – é continuar a investir, especialmente através de reformas cosméticas, em veículo que já deu o que tinha de dar, cujo motor vai fundir a qualquer hora, cuja suspensão está torta em decorrência de inúmeras batidas, cuja lataria está amassada, arranhada e meio solta, cujos pneus estão gastos, cuja embreagem torna a mudança de marchas penosa – e cuja manutenção é extremamente cara!

Parece-me evidente que, em caso assim, vale mais a pena trocar de carro. Apliquemos agora o argumento à questão que nos propusemos a discutir neste artigo.

8. Educação, mudanças e inovação

Ricardo Semler, que “virou a própria mesa” em sua empresa, a SEMCO, se propôs, no início dos anos 2000, a virar a mesa na área da educação. Criou um ambiente de aprendizagem diferente e inovador, a Lumiar, que pudesse servir de base para uma troca de paradigma na educação.  Ele ainda a chamou de escola, porque, afinal de contas, a Lumiar se propunha a fazer aquilo que a escola deveria fazer, mas não fazia: ser o local em que crianças aprendem, com prazer, porque percebem o propósito e, portanto, o sentido das atividades em que se engajam, posto que podem escolher o que querem aprender. Assim, aprendem aquilo de que precisam para poder “sonhar seus próprios sonhos e transformá-los em realidade”.

Por que Ricardo Semler fez isso?

Porque, como ele costuma ressaltar (com base em estudos feitos, segundo alega, na Universidade de Chicago), a retenção média pelos alunos daquilo que o professor diz numa aula normal de uma escola convencional (em que o professor fala quase o tempo todo) é de cerca de 6%. Isto significa que na escola há uma perda de 94% daquilo que o professor diz. Nenhuma instituição com uma taxa de perda ou rejeição de 94% tem direito de sobreviver. Mantê-la é preservar o mais incompetente ambiente de aprendizagem que jamais se criou, e que é incompetente porque vai de encontro a tudo o que sabemos sobre como crianças, adolescentes e jovens aprendem – na verdade, sobre como qualquer um aprende.

Para quem pensa assim, não faz sentido tentar reformar o sistema educacional vigente, mantendo o paradigma: é preciso investir em um paradigma diferente. Nem a reforma básica dos essenciais se justifica, se se mantém o paradigma, porque o sistema não é capaz de fazer aquilo que se espera dele. Introduzir pequenas reformas cosméticas, que não afetam o essencial do sistema, então, é jogar dinheiro fora.

9. O sistema educacional brasileiro

Apliquemos agora o argumento ao caso da educação brasileira – falo principalmente da educação pública, mas não somente.

Dá para reformar um sistema educacional que consome uma quantidade enorme de recursos, que está entre os mais mal avaliados do planeta, e que permite que alunos cheguem à sexta, sétima e até oitava série basicamente analfabetos?

Ou será que é preciso substituí-lo por um sistema novo, basicamente diferente? É exatamente em casos assim que se justifica uma troca radical de paradigmas.

Se, no caso brasileiro, se justifica a busca de um novo paradigma, é contrassenso ficar exigindo do governo ainda mais recursos financeiros (10% do PIB, por exemplo), como o faz a professora potiguar que ficou famosa através do YouTube, para a manutenção de um sistema em condição tão precária. Dificilmente o investimento maior vai se traduzir em resultados proporcionalmente melhores.

Se o argumento está correto até aqui, certamente reformas cosméticas não se justificam. Mas sequer reformas que afetam os aspectos essenciais resolverão o problema.

10. Moral da história

Nós vivemos, todos sabem, no Brasil – um país que se via como gigante adormecido e que agora acha que nem emergente mais é, devendo ser contado entre os grandes. Mas todos sabemos que nosso sistema educacional não consegue competir com o da Finlândia, de Hong Kong e da Coreia do Sul, que operam em alto nível de qualidade, mas dentro de um quadro de educação tradicional. E igualmente sabemos que, na forma em que se encontra, o nosso sistema educacional também não tem conseguido se distinguir como realmente inovador.

Ou seja, não conseguimos reformar o carro, deixando-o “tinindo” (como se dizia antigamente), não conseguimos comprar um carro “novinho em folha” (como também se dizia antigamente). Na verdade, para conduzir o argumento a um novo patamar, muito menos conseguimos ser radicalmente inovadores e inventar novos meios de transporte!

Nesse quadro, causa-me pena ver os investimentos que são feitos com o equivalente de rodas de liga leve, volantes esportivos, pedais metálicos, alavancas de câmbio reluzentes, vidros ray ban ou insufilmna janela, sistemas de som sofisticados, isto é, com reformas cosméticas, quando o motor, a suspensão, a embreagem, os freios, etc. já deram tudo que podiam dar – e quando, talvez, nem mesmo um veículo novo, da mesma espécie, estaria à altura do desafio.

11. Quais são as reformas cosméticas na educação?

O que considero reformas cosméticas na educação são mudanças que se concentram no nível micro, que ficam muito próximas da prática atual, e que são incrementais (do tipo de tijolinho em cima de tijolinho).

Exemplos das micromudanças são propostas como WebQuests,WebLessons, WebClasses, Objetos de Aprendizagem, Planos de Aula Digitais, Sala de Aula Invertida, Ensino Híbrido, coisas assim facilmente encontráveis na internet. Tudo isso é parte de uma tendência atual na área de educação e tecnologia que integra a abordagem que chamo de “microentrega” (micro delivery) e “microgerenciamento” (micro management) do ensino. Nessa abordagem, embora se possa reconhecer que há problemas no paradigma educacional vigente, não se busca transformá-lo, ir além dele. Tenta-se fazer uso criativo e envolvente da tecnologia para atrair e engajar os alunos e assim conseguir uma sobrevida para o paradigma atual.

Maquia-se o defunto para dar a impressão de que ainda há vida nele. Em países como Finlândia, Hong Kong, Coreia do Sul, que têm bons sistemas educacionais dentro do paradigma vigente, essas microssoluções ainda fazem sentido. Aqui, não: desviam o foco do que precisa ser feito.

12. Inovação na escola ou inovação da escola

Enfim…

Nosso mundo tem sofrido mudanças consideráveis nos últimos 65 anos, desde o final da Segunda Guerra Mundial. Só essas mudanças no contexto em que a escola opera já seriam mais do que suficientes para que encarássemos seriamente o desafio de transformar a escola, reinventá-la, e não apenas introduzir pequenas inovações dentro dela. Mas elas vêm na sequência de uma série enorme de mudanças que ocorreram no século 19 e na primeira metade do século 20, ou seja, depois que o paradigma atual da educação escolar foi concebido, desenvolvido e implementado.

Falando de hoje, não basta introduzir o computador na sala de aula e no ensino do professor: é preciso criar novas formas de aprendizagem e novos ambientes de aprendizagem que, viabilizados pela tecnologia disponível (redes sociais etc.), prescindem da sala de aula e mesmo da escola, e permitem que as pessoas aprendam em qualquer lugar, a qualquer hora, de forma horizontal ou lateral, entre pares, e em contato com uma gama ampla e diversificada de pessoas que possam ajudá-las. Com isso, o ensino perde o seu sentido e os professores precisam reinventar o seu ofício.

O mindset (digamos, a organização mental) da maioria das pessoas é tão condicionado pelo paradigma de educação atual, centrado na escola, que elas não conseguem sequer imaginar uma educação que prescinda dessa instituição (até aqui, desde o século 18, o principal ambiente de aprendizagem), com seus currículos (que definem o que aprender: o conteúdo das disciplinas acadêmicas), metodologias (que especificam o como aprender: em decorrência do ensino), e agentes técnicos (representados por aqueles de quem se deve aprender: os ensinantes ou professores).

Se alguém não quer conceber uma educação sem escolas, sem ensino, sem professores (no papel concebido a eles até hoje), creio que seja um problema de conservadorismo. E todos têm direito de ser conservadores. Se, entretanto, não conseguem, o problema é outro: é de falta de imaginação.

Por mais absurdo que possa parecer a algumas pessoas, a educação não existe para dar emprego para burocratas, sindicalistas, autores, editores, livreiros, promotores de eventos, consultores – nem mesmo para professores e outros educadores. A educação existe para que cada bebê humano que nasce possa se desenvolver como um ser humano pleno: como pessoa que tem talentos, sonhos e desejos; como cidadão, que precisa viver em convivência com seus semelhantes; como profissional, que tem de encontrar um meio não só de ganhar a vida e se sustentar, mas de se realizar no processo; como “aprendente” permanente que tem de aprender, desaprender e reaprender o tempo todo, ao longo da vida inteira. Qualquer função, estrutura ou instituição que se pretenda educacional deve servir a esse propósito de contribuir para o desenvolvimento do ser humano – ou ir cantar em outra freguesia…

É da vida de cada um que se trata na educação. A opção de terceirizar para a escola e para o professor as ações voltadas para o desenvolvimento do ser humano, num processo do qual os maiores interessados não escolhem participar, mas são compelidos a fazê-lo, sem nenhum direito de se envolver na definição do que ali se passa, parece-me de longe a pior opção.

A educação é “prática de liberdade” (Paulo Freire), não sentença de 12 anos a ser cumprida em instituição que mais se assemelha a uma prisão (de país civilizado, há de se convir) do que a um verdadeiro ambiente de aprendizagem.

O que importa é a aprendizagem da criança, do adolescente, do jovem, do adulto, não o ensino do professor. Estamos cansados de saber que a maior parte das coisas realmente importantes que aprendemos na vida nós aprendemos (graças a Deus) fora da escola: aprender a ter iniciativa, aprender a se responsabilizar por nossas ações, aprender a assumir riscos, aprender a respeitar os direitos dos outros, aprender a dizer a verdade, aprender a ser honesto, aprender a se relacionar de forma mais íntima com outras pessoas, aprender a amar, aprender a apreciar o belo, aprender a imaginar o que não existe (mas é possível inventar…), aprender a agir moralmente, aprender a se posicionar de forma respeitosa perante a natureza e o universo.

E muito, muito mais.

Por mais vivo que ele possa parecer, e por mais que desejemos (por qualquer razão) que realmente estivesse, é preciso encarar a realidade e enterrar o defunto, antes que o processo de decomposição do cadáver comprometa a vida que ainda existe ao redor dele.

Em São Paulo, 31 de Maio de 2011

De Interpretatione – da Lei e Outros Textos (inclusive a Bíblia)

Excelente artigo de Conrado Hübner Mendes sobre hermenêutica jurídica na Folha de hoje. Espero achar tempo para discuti-lo, como merece, nos próximos dias. Os princípios enunciados não se aplicam, naturalmente, apenas à lei (muito menos apenas à Constituição): aplicam-se a qualquer texto, inclusive à Bíblia e a outros escritos sagrados.

No caso jurídico, o assunto tem sido objeto de acalorada controvérsia nos Estados Unidos, onde, a cada escolha de um novo membro da Suprema Corte. De um lado estão aqueles que acham que os textos, inclusive jurídicos e principalmente constitucionais, de certo modo falam por si mesmos e têm apenas um sentido que aparentemente literal e evidente: os juizes apenas o explicitam e aplicam. Do outro lado estão aqueles que acham que os textos – quaisquer que sejam – sempre admitem mais de uma interpretação, e que, além disso, há, na área jurídica (como em qualquer outra, inclusive na Bíblia), normas que estão em tensão umas com as outras, tensão essa que chega às raias da contradição aberta. O trabalho dos que interpretam a lei, portanto, não é um trabalho semi-mecânico de explicitar o sentido literal da lei e aplicar o que ela diz. Aquilo que a lei diz muitas vezes não é claro, outras vezes duas leis razoavelmente claras conflitam uma com a outra. A constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei ordinária raramente é assunto pacífico e incontroverso. Diante desses fatos, quem interpreta a lei muitas vezes participa de sua construção – em outras palavras, legisla no lugar do legislador…

É isso.

O assunto se tornou candente aqui no Brasil em relação à questão da decisão do Supremo de que é possível aplicar a homossexuais o estatuto da união estável – e que, portanto, é cabível (do ponto de vista constitucional) falar em uma família composta por duas pessoas do mesmo sexo e não apenas por um homem e uma mulher.

E, no entanto, a Constituição Federal afirma, no Art. 226, § 3º:

“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

Esse dispositivo claramente determina que um homem e uma mulher em união estável sejam considerados uma família, para efeito da proteção do Estado.

Mas preclui ou impede que dois homens ou duas mulheres que vivem juntos de forma continuada e estável sejam também sejam considerados uma família, para efeito da proteção do Estado?

Há gente que pensa que sim. Mas o Supremo disse que não.

De Interpretatione é, naturalmente, o título, em Latim, de um livro famoso de Aristóteles.

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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz3105201107.htm

Folha de S. Paulo
31 de Maio de 2011

TENDÊNCIAS/DEBATES

Entre heróis e demagogos?

CONRADO HÜBNER MENDES

Argumento jurídico não é um detalhe decorativo com o qual enfeitamos preferências políticas, mas raramente será mera repetição do texto legal

Há quase três meses, terminava um importante capítulo do caso da Lei da Ficha Limpa no Supremo Tribunal Federal: o tribunal, por seis votos a cinco, entendeu que a referida lei não se aplica às eleições de 2010. Nesta Folha, no dia 24/3, duas reações vieram à tona.

Eliane Cantanhêde entendeu que a decisão representava “a vitória da lei, da experiência e da técnica jurídica sobre o apelo fácil da demagogia”. Para ela, o grupo dos seis ministros não teria se curvado, tal como os outros cinco, ao “clamor popular e do aplauso fácil”. Teria tido a “coragem de enfrentar as câmeras e as críticas”.

Páginas adiante, o professor Joaquim Falcão nos oferecia leitura mais comedida. Explicava que a controvérsia diz respeito à escolha entre dois artigos constitucionais, que levaram, respectivamente, a duas posições opostas no caso.

Aplicar a Constituição, para ele, é “ato de vontade do ministro. (…) Há flexibilidade interpretativa”.

O contraste entre as duas reações não poderia ser mais ilustrativo. A primeira evoca um mito tão antigo e universal quanto persistente sobre o Estado de Direito.

Segundo esse mal-entendido, caberia ao juiz deixar suas inclinações de lado e respeitar a letra da lei, um ato certo e mecânico. Virtude e preparo técnico, assim, seriam suficientes para que a “verdadeira resposta” seja descoberta nas entrelinhas do texto legal, sem interferência da vontade.

Essa visão é conveniente para os dois lados: de um, o juiz deixa de ser inquirido pelas escolhas interpretativas que faz, pois as apresenta como resultados naturais da técnica jurídica que o público leigo não domina; de outro, o público leigo se vê dispensado da árdua tarefa de ler as decisões, pois, a não ser que o juiz seja desonesto, elas corresponderiam ao comando único da lei. Juízes virtuosos e bem treinados, portanto, bastariam para a saúde dessa engrenagem.

Há poucos dias, de forma unânime, o STF determinou a extensão da união estável para casais homossexuais. Celebramos o avanço, uma custosa e demorada vitória dos direitos individuais sobre a inércia crônica e mal fundamentada do Congresso. Sobretudo mal fundamentada.

O STF está dividido no primeiro caso e unido no segundo. Cabe agora refletir sobre o significado dessa diferença e acompanhar como o Congresso reagirá nos dois casos.

Não foi o bem que venceu o mal, nem a técnica jurídica que prevaleceu sobre o casuísmo medroso, populista ou intolerante. A “letra da lei”, em ambos os casos, não é tão óbvia. Ao contrário, ela acaba de ser (e continuará a ser) escrita pelo próprio tribunal, por mais curioso que isso possa parecer.

Não teremos um debate maduro sobre nossa jurisprudência constitucional enquanto não percebermos essa característica elementar.

Rejeitar aquele confortável mito do juiz que faz valer a “letra da lei” traz desafios importantes para a prática do jornalismo judicial, da pesquisa acadêmica e para o exercício da própria cidadania. Decisões do STF podem e devem ser elogiadas ou criticadas, mas há maneiras mais ricas de fazê-lo.

Argumento jurídico não é, por certo, um detalhe decorativo com o qual enfeitamos nossas preferências políticas, mas raramente será, por outro lado, mera repetição do texto legal. Somente avaliando os argumentos que os ministros apresentaram em cada caso, entre tantos outros casos da agenda do Supremo Tribunal Federal, poderemos avançar na discussão. E os “derrotados” merecem tanta consideração quanto os “vitoriosos”.

CONRADO HÜBNER MENDES, doutor em filosofia do direito pela Universidade de Edimburgo (Escócia) e doutor em ciência política pela USP, é professor licenciado da Direito GV.

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Em São Paulo, 31 de Maio de 2011

Ivan Illich e a Troca do Paradigma

Artigo que publiquei em 22/5/2011 no Blog da Editora Ática e Scipione, no URL:

http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/ivan-illich-e-a-troca-do-paradigma/ 

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Continuo a falar sobre Ivan Illich, dando prosseguimento a alguns temas levantados nos dois artigos anteriores (“Cutucando o paradigma…”, o nono, e “Cutucando ainda mais o paradigma…”, o décimo).  A ideia básica de Illich é que “educação para todos” é, necessariamente, “educação por todos”.

Do ponto de vista negativo, isto implica uma educação sem escolas, e, por conseguinte, sem currículos, sem professores, sem ensino… Illich endossa a tese de Paulo Freire, citada no artigo anterior. No aspecto negativo, essa tese afirma que “ninguém educa ninguém” e “ninguém se educa a si mesmo”. No aspecto positivo, ela afirma que “os homens se educam uns aos outros em comunhão, mediatizados pelo mundo”.

Como ressaltei no artigo anterior, essa afirmação de Freire está, a meu ver, entre as mais radicais do grande educador patrício. Para ele, a mediação da educação se faz pelo mundo, não pela escola ou pelos professores. Quanto a estes, que, com indisfarçado orgulho, se designam educadores, Paulo Freire diz, taxativamente, que ninguém educa ninguém. Mas ele diz, na sequência, que tampouco nos educamos sozinhos. A educação, para ele, acontece em interação, diálogo, discussão: nós nos educamos uns aos outros “em comunhão”. A expressão “mediatizados pelo mundo” indica que a educação não se dá em isolamento do mundo, mas exatamente dentro dele e com sua mediação, enquanto trabalhamos e nos divertimos (como dirá depois Illich).

Isso quer dizer que ninguém é educador – ou, o que dá na mesma, que todos somos. Em qualquer das hipóteses deixa de haver uma categoria profissional distinta composta daqueles que estão capacitados e credenciados para educar, os professores, que se contrapõem aos que estariam incumbidos de aprender, os alunos. Todos educamos e todos aprendemos.  A frase de Illich citada no início deste artigo capta bem a posição de Paulo Freire: “A educação para todos”, afirma ao chegar próximo do final do primeiro capítulo de Sociedade sem Escolas, “é, necessariamente, a educação por todos”.

Como vimos no artigo anterior, a escola, para Illich, especialmente quando obrigatória (com seus professores, currículos, seu ensino, suas metodologias de ensino e seus materiais didáticos), limita e restringe o direito de aprender das pessoas.

Em outras palavras: mais escola (na forma de mais anos de escolaridade obrigatória, mais dias letivos, presença na escola por mais tempo, menos tempo “desperdiçado” enquanto na escola) não implica, necessariamente, mais aprendizagem: pelo contrário.

Para Illich, ensino não redunda necessariamente em aprendizagem. “Aprender é adquirir uma nova habilidade ou uma nova forma de ver o mundo”. E aprendemos em interação (conversa, diálogo, troca de ideias e experiências, discussão), compartilhando o que sabemos fazer, o que sabemos, o que pensamos, o que imaginamos, o que sentimos, o que desejamos, e participando do compartilhamento que os outros fazem dessas mesmas coisas. Da mesma forma que a aprendizagem não decorre necessariamente do ensino, para Illich é um absurdo confundir aprendizagem e escolarização. “A maior parte das pessoas adquire a maior parte de suas habilidades e de seus conhecimentos fora da escola”. Oscar Wilde já havia dito isso no século 19.

O processo de aprendizagem precisa ser voluntário. Devemos escolher o que queremos aprender e o que queremos compartilhar, bem como com quem, quando e onde queremos fazer isso. É esse o significado da expressão “liberdade de aprender”, que, em Illich, tem seu sentido mais radical. Mas não nos esqueçamos de que Paulo Freire também caracteriza a educação como “Prática da Liberdade”. (Alguém conhece alguma escola, com a exceção notória de Summerhill, Sudbury, Lumiar, e algumas outras poucas, que podem ser contadas nos dedos da mão, da qual se possa dizer que a educação, ali, é realmente prática da liberdade?).

Segundo Illich, o processo de aprendizagem acontece de forma natural e espontânea, até mesmo casual, dispensando planejamento meticuloso.

O modelo de aprendizagem que Illich coloca diante de nós é o da aprendizagem da fala na língua materna por parte de uma criança pequena. Vou descrever o processo como eu o entendo e em minhas palavras. A criança nasce em um mundo de falantes daquela língua que denominamos materna, a da mãe. A mãe e outras pessoas falam com a criança muito antes de ela conseguir entender o que dizem. Os sons da língua materna, em especial o “infantilês” (baby talk) em que os membros da família ou habitantes da casa lhe dirigem a palavra, lhe soa gostoso, e ela cedo procura emitir sons que emulem os de seus interlocutores. Aos poucos ela descobre que certos sons servem de rótulo – “mamãe” é como se fosse o nome próprio daquela pessoa que cuida dela. Mais adiante descobre que determinados sons têm significado, expressam sentidos definidos. Descobre que, quando alguém lhe diz “Bate palminhas”, espera-se que ela bata palmas… A partir de certo momento ela consegue articular sons que se assemelham cada vez mais aos das palavras que são usadas por seus interlocutores. E, quando menos se espera, a criança está entendendo a fala e falando – cada vez melhor.

O processo é natural e espontâneo, casual, mesmo. Os parentes e amigos da criança evidentemente querem que ela aprenda a entender a fala e a falar. A própria criança, a partir de determinado momento, também parece querer, segundo tudo indica. Para ajuda-la, os parentes e amigos falam com ela, mesmo sabendo que, de início, ela não vai entender. E ela, sem saber que os outros não vão entende-la, se esforça por responder a eles. Aos poucos, sem obrigatoriedade, sem planejamento, sem didática, sem ensino, sem aulas, a criança aprende a entender a fala e a falar. Daí para a frente é só aperfeiçoar o processo.

Bill Hull uma vez disse a John Holt que “se a gente ensinasse as crianças a falar, elas nunca aprenderiam” (“If we taught children to speak, they’d never learn”). Vou transcrever a seguir a maior parte do artigo “Teaching Children How to Speak”, de John Holt, no qual ele discorre sobre as implicações do que Bill Hull lhe disse. Mas antes devo dizer que Bill Hull, John Holt, Everett Reimer, A. S. Neill, Paulo Freire, e, por que não dizer, Ricardo Semler, são todos pássaros da mesma plumagem.

Eis o que diz John Holt no artigo:

“Vamos supor que tomemos a decisão de ‘ensinar’ as crianças a falar. Como é que a gente faria? Primeiro, um comitê de especialistas analisaria a fala e a quebraria em um certo número de ‘habilidades requeridas para a fala’. Provavelmente os especialistas diriam que, visto que a fala é composta de sons, seria necessário, primeiro, ensinar a criança a emitir todos os sons requeridos por sua língua materna. Sem isso não seria possível ensiná-la a falar… Sem dúvida eles classificariam os diversos sons dos mais fáceis e frequentes para os mais difíceis e raros. E o professor então começaria a ensinar à criança, primeiro os sons mais fáceis e frequentes, depois os mais difíceis e raros, até passar por toda a lista. Talvez, para não ‘confundir’ a criança, a gente a colocasse em um ambiente segregado, isolado da vida normal, para que ela não ouvisse a fala regular dos já falantes, mas apenas repetidamente ouvisse, em cada estágio, os sons que o professor está tentando ensinar a ela. Ao lado de uma lista de sons, os especialistas comporiam uma lista de sílabas que combinassem os sons, e uma lista de palavras selecionadas que combinassem as sílabas pertencentes à lista de sílabas. Num segundo estágio, o professor ensinaria a criança a combinar sons em sílabas, num terceiro, a combinar sílabas em palavras. Em estágio subsequente, o professor ensinaria a criança a combinar palavras em frases e sentenças. Mas, antes disso, teria de ensinar a criança as regras gramaticais que regem a formação de frases e sentenças. Tudo seria completa e meticulosamente planejado, nada sendo deixado ao acaso. Em cada estágio haveria uma grande quantidade de exercícios práticos, revisões, testes, para garantir que nenhuma criança esquecesse o que já lhe havia sido ensinado. Suponhamos que fizéssemos isso. O que aconteceria? O que aconteceria seria que a maior parte das crianças, antes de ir muito longe, ficaria confusa, frustrada, desencorajada, humilhada, temerosa – e provavelmente desistiria de aprender a falar. Se, fora da sala de aula, elas vivessem vidas normais de crianças, poderiam, sem prejuízo, simplesmente ignorar o ‘ensino’ e aprender a falar do jeito normal. Se, entretanto, a escola tivesse controle integral e completo de sua vida desde os primeiros meses de vida (o sonho de demasiados educadores), elas buscariam refúgio no silêncio e no fracasso deliberado, como tantas fazem, quando tentamos ensina-las, não a falar, mas a ler e escrever…”.

Pesado, não?

Mas voltemos a Ivan Illich. No caso da aprendizagem de línguas estrangeiras, diz ele, a escola e os professores tentam, e tentam, ao longo de cerca de oito anos, ensiná-las aos alunos. Mas as crianças e adolescentes não aprendem. Ao final de cerca de oito anos, mal conseguem ler, não conseguem entender e conseguem falar menos ainda. Eles só conseguem aprender uma língua estrangeira bem quando vão morar com parentes que falam regularmente a língua (em geral os avós imigrantes), ou quando vão viver no exterior, ou, então, quando arrumam um(a) amigo(a) ou namorado(a) que fala bem a língua.

É possível reunir, desde já, algumas das teses de Illich sobre como a aprendizagem ocorre.

Em primeiro lugar, a aprendizagem ocorre, muitas vezes, como já foi assinalado, de forma casual, enquanto fazemos alguma outra coisa: “a aprendizagem em geral ocorre casualmente como subproduto de alguma atividade geralmente classificável como lazer ou trabalho”. Como eu assinalei atrás, entendo essa observação de Illich como a repetição, em outras palavras, da tese de Paulo Freire de que a educação, e, portanto, a aprendizagem, precisa ser “mediatizada pelo mundo” – não por uma instituição que procura isolar a criança do mundo. Aprendemos enquanto fazemos coisas que nos interessam no mundo em que vivemos:

    a) Coisas que nos dão prazer, como namorar, bater papo com os avós, viajar pelo exterior…  (lazer);
    b) Coisas que se encaixam no nosso projeto de vida, como fazer algo que junta nossos talentos e nossas paixões… (trabalho).

Notaram? Primeiro, a caixinha de brinquedos e a caixinha de ferramentas de Rubem Alves parecem ter sido antecipadas aqui… Afinal de contas, Rubem Alves conheceu Ivan Illich pessoalmente. Segundo, a noção de “elemento”, de Sir Ken Robinson, também se encaixa bem aqui…

(Sobre a caixinha de brinquedos e a caixinha de ferramentas de Rubem Alves, vide aqui mesmo neste blog o meu artigo “Ferramentas e Brinquedos”. Sobre a noção de “Elemento” e sua aplicabilidade na aprendizagem, vide, também aqui neste blog, dois artigos meus: “O Elemento e Como Aplicar O Elemento à Aprendizagem Escolar”).

Em segundo lugar, a aprendizagem ocorre o mais das vezes entre pares engajados em uma mesma atividade ou que “pelo menos tenham alguma coisa em comum” (como dizia o velho anúncio da TV – um belo anúncio, apesar de ser de cigarro). Diz Ivan Illich: “Aprendizagem criativa e exploratória requer que pares (peers) estejam naquele momento encafifados com algum problema ou alguma questão”.

Pares, neste caso, não quer dizer, necessariamente, pessoas da mesma idade. Quer dizer, isto sim, pessoas que estão no mesmo plano, sem que uma tenha sido capacitada e credenciada para ensinar (como o professor) e a outra esteja incumbida, obrigatoriamente, de aprender (como o aluno). A idade, aqui, é irrelevante. Avós e netos são pares, nessa visão.

Essa tese de Ivan Illich tem todo respaldo na literatura atual sobrePeer Coaching. Na realidade, meu amigo Les Foltos criou, há algum tempo, nos Estados Unidos, um dos mais difundidos programas de aprendizagem no contexto profissional de que tenho notícia, e o seu nome é, exatamente, Peer Coaching. Está esparramado pelo mundo todo, graças à Microsoft, que o disseminou. Em sua versão em português, usada amplamente no Brasil, onde Les Foltos já esteve várias vezes, o programa foi batizado de Aprender em Parceria. Ele se baseia no fato sobejamente conhecido de que, quando um novo empregado entra numa empresa, a melhor maneira de fazer sua iniciação à cultura da organização e de introduzi-lo aos métodos e procedimentos de trabalho específicos de sua área de atuação é através de outro empregado: um “par” que, primeiro, tem experiência na empresa, segundo, conhece a área de atuação do novo empregado, e, terceiro, possui competência básica nas áreas de comunicação, facilitação e colaboração. Esse conjunto de experiências, conhecimentos e competências o colocam em posição privilegiada para ajudar o novo empregado a aprender, vale dizer, a se tornar, oportunamente, ele próprio, um profissional competente no novo local de trabalho.

Essa tese da aprendizagem lateral ou horizontal, entre pares, já havia sido defendida, em embrião, por Ivan Illich.

Diante da posição radical de Illich, é cabível perguntar: mas então a gente não aprende nada em decorrência do ensino ou da instrução deliberada e formal?

Aprende, sim, responde Illich – mas apenas “quando se está altamente motivado para adquirir uma habilidade nova, específica e complexa”. Quando não estamos genuinamente interessados no assunto ou não temos algum tipo de motivação intrínseca para aprender o que nos é ensinado, a instrução deliberada e formal comprovadamente não funciona.

É verdade que Ivan Illich acredita que é possível criar, na sociedade, ambientes de aprendizagem eficazes, desde que estruturados de forma diversa da escola. Citarei dois desses ambientes que ele discute no Capítulo 6 de seu livro.

  • Centros de Permuta de Habilidades (Skill Exchange Centers)

A Escola da Ponte, em Vila das Aves, no distrito do Porto, em Portugal, usa, dentro da escola, algo parecido com o que propõe Illich. Nas paredes das diversas salas da escola há pares de listas, cujos títulos são parecidos com “Preciso de Ajuda” e “Posso Ajudar”. Através dessas listas a comunidade é informada acerca de quem precisa de ajuda para aprender alguma coisa, e de quem pode ajudar alguém a aprender alguma coisa. Por exemplo: “Preciso de ajuda para aprender a resolver equações de segundo grau”, ou “Preciso de ajuda para aprender Inglês”, ou “Preciso de ajuda para aprender contar uma história em MovieMaker”, ou “Preciso de ajuda para aprender a jogar tênis”; do outro lado, “Posso ajudar quem quer aprender Espanhol”, ou “Posso ajudar quem quer aprender a extrair raiz quadrada”, ou “Posso ajudar quem quer aprender a jogar xadrez”, ou “Posso ajudar quem quer aprender a bordar”.

O que Illich propõe é que a comunidade crie Centros de Permuta de Habilidades, em centros comunitários, igrejas, sindicatos, etc., nos quais as pessoas podem deixar seus nomes em listas muito parecidas com as da Escola da Ponte. Assim, uma pessoa que sabe bordar bem pode ajudar quem quer aprender, e alguém que quer aprender a jogar xadrez pode encontrar quem pode ajudá-la a aprender.

O procedimento é simples, e pode até parecer simplório. Mas Illich o constrói em cima do bom senso que já prevalece nas famílias e comunidades. Em qualquer festinha no salão social da igreja, em que cada pessoa precisa trazer algo, logo haverá pessoas perguntando quem fez aquele bolo ou aquela torta para descobrir qual é a receita, e haverá pessoas se oferecendo para ajudar quem quer aprender a fazer o molho usado nos sanduíches de pernil.

Os jovens de hoje usam muito esse mecanismo de troca de habilidades, mesmo quando não há nenhum centro designado para reunir quem precisa de ajuda e quem pode ajudar. Através da internet eles rapidamente encontram quem pode ajudá-los e quem precisa de sua ajuda em tarefas de aprendizagem.

  • Teias Educacionais (Educational Webs)

Sobre as Teias Educacionais (Educational Webs), já falei no artigo anterior, mas resumo aqui o assunto novamente, com alguma informação adicional.

A internet foi inventada apenas em 1969, pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, originalmente com o nome de ArpaNet. Era a primeira rede de computadores existente e interligava os computadores de grandes universidades americanas que faziam pesquisas extremamente estratégicas para o Departamento de Defesa. Por trinta e poucos anos a Internet foi uma rede exclusivamente acadêmico-militar. Só veio se tornar popular a partir de 1993, quando o vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore (o mesmo que atua em causas ambientais), propôs sua abertura ao mercado, para empresas e indivíduos, em troca da criação, com apoio do governo, de uma infraestrutura de comunicação realmente eficaz e eficiente, que na época foi chamada de Information Highway – “Rodovia (ou Autoestrada) da Informação”. O resto é história. A Web (termo que quer dizer “Teia”) só foi inventada (na Suíça, por incrível que pareça) em 1990. O primeiro navegador gráfico da Web foi inventado apenas em 1993, nos Estados Unidos, e se chamava Mosaico (Mosaic).

No entanto, em 1970, Ivan Illich já falava em Educational Webs e as teias que ele sugeria eram relacionadas com computadores. Embora, quando comparada com Facebook, a teia de Illich pareça primitiva, não é exagerado dizer que Illich pode ser considerado o pai das redes sociais… Diz ele (em passagem que já citei no artigo passado):

“As pessoas poderiam, a qualquer momento, e por um preço mínimo, se identificar em um computador, fornecendo seu endereço e número de telefone, e indicando quais as coisas (livros, artigos, filmes, gravações) para as quais gostariam de ter parceiros de discussão. Em poucos dias, receberiam pelo correio uma listagem com os nomes, endereços e telefones de pessoas com os mesmos interesses. Isso lhes permitiria contatar os possíveis parceiros, agendar uma reunião, conversar e discutir com elas. Não é preciso que essas pessoas se conheçam previamente. A única exigência é que estejam, todas, interessadas em discutir o mesmo assunto”.

Mas o que ele chamava de “Teias Educacionais” não exigia, necessariamente, a presença de computadores (raros, naquela época). Associações diversas, como partidos políticos, igrejas, sindicatos, clubes, centros comunitários e sociedades profissionais etc. também poderiam reunir pessoas com interesses afins desejosas de encontrar parceiros de discussão. Dessa forma a aprendizagem teria lugar num contexto libertário, democrático, não autoritário – e a sociedade iria se desescolarizando e se tornando mais educacional…

As comunidades eclesiais de base, de algum tempo atrás na Igreja Católica, e a igreja em células, ou em pequenos grupos, das comunidades protestantes de hoje, são exemplos dessas teias. Sua finalidade não é somente educacional, mas a aprendizagem está presente nelas.

Enfim, Ivan Illich, quarenta anos atrás, propunha uma sociedade em que o aprender fosse voluntário, espontâneo, natural – e não obrigatório, planejado, formal. Ele desejava que a sociedade se tornasse mais educacional e menos escolarizada.

Muitos o consideram um romântico. Mas há muito em suas críticas da escola e em suas propostas alternativas que merece nossa atenção ainda hoje. É interessante imaginar o que ele diria em um contexto em que a internet é ubíqua e uma só rede social – o Facebook – envolve um décimo da população do planeta.

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Em São Paulo, 29 de Maio de 2011

O conservadorismo brasileiro no Ensino Superior

Não posso deixar de transcrever aqui o artigo de Raul Juste Lores na Folha de hoje (22/5/11). Ele é Editor de Mercado do jornal.

O artigo é claro, corajoso e, acima de tudo, verdadeiro.

Os professores da USP (e os da UNICAMP também, e, em certa medida, até os da UNESP, em geral mais humildes) cantam louvores à sua universidade. Mas quando comparada com universidades estrangeiras, a USP não pega nem o 200o lugar no melhor ranking mundial.

Parte do problema está no buracratismo e nacionalismo xenofobista patrocinado pelo MEC. O portador de um diploma de doutorado de Harvard precisa que uma universidade pública nacional declare que o curso feito é equivalente ao seu para poder trabalhar na universidade brasileira. Com isso, continuamos com nossa melhor universidade fora das duzentas melhores do mundo.

No caso da USP, em especial, a Universidade dificilmente teria sido criada sem a colaboração de professores estrangeiros. Na época, eram principalmente franceses. Hoje isso não aconteceria.

As dificuldades que a CAPES e o CNPq impõem para que o estudante brasileiro possa receber uma bolsa para fazer um curso de pós-graduação no exterior quando há “similar nacional” (de qualquer qualidade) é parte da mesma mentalidade atrasada.

Assim, dificultamos a contratação, pelas universidades brasileiras, de professores estrangeiros ou de diplomados de universidades estrangeiras e dificultamos a ida de brasileiros para o exterior para fazer pós-graduação.

A outra parte do problema está no esquerdismo ultrapassado que rejeita soluções de mercado para o ensino superior. A educação aqui tem não só de ser pública mas também de ficar sobre controle de brasileiros.

Há “filiais” de grandes universidades americanas em muitos países do mundo. Os países mais evoluídos do Oriente Médio, como os Emirados Árabes e o Qatar têm filiais de universidades americanas. Na linda cidade de Fremantle, perto de Perth, no Oeste da Australia, visitei um lindo campus da Universidade de Notre Dame, americana (e católica). O artigo traz outros exemplos. Aqui no Brasil, filiais de universidades estrangeiras de qualidade são em geral bloqueadas. Nem mesmo os cursos a distância das grandes universidades americanas são aceitos.

Enquanto isso o governo transfere dinheiro público para faculdades particulares de qualidade dúbia através do ProUni.

A mentalidade de proibir o policiamento do campus por parte da Polícia Militar é parte da mesma mentalidade retrógrada.

Cada país tem a universidade que merece.

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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2205201106.htm

RAUL JUSTE LORES

Fortaleza USP

A USP quer mais segurança, mas sem a Polícia Militar. Até a próxima greve estourar, muitos ali vão exigir mais dos cofres públicos, mas sem admitir que a sociedade discuta como pagar a conta.

O Brasil mudou, mas a melhor universidade brasileira parece uma fortaleza conservadora antimudanças.

É tabu discutir cobrança de mensalidade, financiamento, participação da iniciativa privada e outras urgências – maior diálogo com o mundo, o acesso de mais estudantes vindos da escola pública e o fomento à inovação.

Enquanto o ProUni preenche a capacidade ociosa e enriquece várias universidades privadas, sem muito histórico de investimento em pesquisa ou formação de professores, as públicas estão carcomidas e sem fundos.

O gargalo de mão de obra é uma das mais sérias ameaças ao crescimento sustentado da economia brasileira. Mas governo e empresários reagem com pouca ação.

Nossos concorrentes no mundo emergente têm pressa para dar um salto acadêmico.

Na China, a Faculdade de Direito Transnacional em Shenzhen contratou um ex-presidente da Universidade Cornell como seu diretor. O governo quer graduandos “à altura dos melhores dos EUA”.

A Índia tem os seus MITs desde os anos 50, mas só agora consegue promover o retorno de engenheiros indianos que conquistaram os EUA.

Há 128 mil chineses estudando em faculdades americanas -para a elite chinesa, mesmo o mimado filho único precisa se sacrificar para estudar em Harvard ou Yale.

Brasileiros são apenas 8.000, pouco mais que os colombianos nos EUA. Índia, Turquia, Taiwan, Vietnã e México também superam o número de brasileiros.

Dos 10 países com maior número de universitários nos EUA, 8 são asiáticos. A Malásia está atraindo filiais das maiores universidades britânicas para um polo de educação, vizinho a Cingapura, para aproveitar a demanda.

A China abriga 265 mil estrangeiros em suas universidades, 18 mil deles com bolsas do governo, que quer internacionalizar seus campi.

No Vietnã, a Universidade de Hanói até dá cursos inteiramente em inglês. “Nossos alunos serão competitivos no mundo”, diz o reitor, sem aparentar trauma histórico.

Um professor estrangeiro que tente lecionar na USP, mesmo com diploma de Stanford, dificilmente vai resistir ao calvário burocrático.

Talentos uspianos parecem resignados ao imobilismo e aos recursos limitados.

A produção de patentes é pequena, a posição em rankings internacionais, decepcionante. Mas, no superprotegido ambiente universitário, passar por avaliação externa ainda soa a reprovação.

RAUL JUSTE LORES é editor de Mercado.

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Em São Paulo, 22 de Maio de 2011.

Uma família olhando múltiplas telas na mesma sala ao mesmo tempo…

Aqui em casa o que esse artigo descreve acontece com razoável frequência: quatro pessoas, cada um com (pelo menos) uma tela diferente, cada um fazendo o que lhe interessa… Em alguns momentos, em vez de falarem um com o outro, mandam um SMS, ou uma mensagem instantânea, um e-mail… Assim não interrompem sem necessidade o que o outro está fazendo.

Alguns podem achar isso uma coisa horrível. Eu não acho. É uma realização do princípio famoso da filosofia, “the one and the many”: uma sala, uma família, muitas pessoas, muitos interesses diferentes… É o triunfo da individualidade que, entretanto, preserva uma forma diluída do coletivo. É o fim da ditadura do “precisamos todos fazer a mesma coisa juntos”, que sabe ao coletivismo totalitarizante dos soviéticos.

Hoje se defende ardorosamente a educação personalizada, que respeita as diferenças individuais, que se alimenta dos interesses de cada um. Defende-se também a educação horizontal, entre pares, em que muitos se comunicam com muitos, em que não há professores nem alunos, mas todos aprendem, em que ninguém educa ninguém, mas ninguém se educa sozinho (Paulo Freire). No âmbito da família essa educação ubíquita, esse anytime, anywhere learning acontece no ambiente descrito no primeiro parágrafo.

O artigo que transcrevo de The New York Times, traduzido pela Folha, capta bem esse espírito. Ele foi publicado em:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/newyorktimes/ny1605201113.htm

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CIÊNCIA & TECNOLOGIA

A família adquire hábito de se reunir diante de muitas telas

Por ALEX WILLIAMS

Dianne Vavra, executiva do setor de cosméticos em Nova York, levantou os olhos do iPad onde via as novidades da moda no site Refinery29.com e notou que seu marido, Michael Combs, estava absorto com uma partida de basquete que passava no seu laptop.

O filho deles, Tom, 8, havia mergulhado no jogo Mario Kart, do Wii, na TV. A filha, Eve, 10, brincava com aplicativo chamado Love Calculator, num iPod Touch. “A família estava na mesma sala, mas não estava junta”, lembrou Vavra. Uma família. Uma sala. Quatro telas. Quatro realidades.

“A transformação da sala de estar americana em central de comunicações e entretenimento com múltiplas telas” promete “alterar nossa esfera doméstica”, disse Lutz Koepnick, professor de mídia da Universidade Washington, em St. Louis. “Os indivíduos da família podem se descobrir alegremente conectados a mundos paralelos quase o tempo todo.”

De fato, o consultor ambiental Brad Kahn, de Seattle, disse que, muitas vezes, se comunica com sua esposa, Erin, por e-mail, mesmo quando eles estão sentados a poucos metros de distância, com seus laptops.

Evan Gotlib, contato publicitário em Manhattan, lembra-se de estar recentemente na cama com sua esposa, Lindsey Pollak, cada um com seu iPad. Ele jogava palavras-cruzadas à distância contra sua irmã, Val, e, a certa altura, disse: “A Val acaba de conseguir uma palavra de 46 pontos!”.

“Puxa”, disse a esposa, “ela acaba de fazer uma de 32 pontos contra mim”. Nesse momento, Gotlib percebeu que sua esposa estava envolvida no seu próprio jogo contra a irmã dele.

Ben Schippers, que dirige uma empresa de criação de software no Brooklyn, descobriu algo curioso quando sua mulher se mudou para Iowa para estudar veterinária, e o casal ficou em contato por Skype: ele acha suas noites semelhantes ao que eram quando ela estava em Nova York. Em qualquer situação, “é ela no LCD dela, eu no meu LCD”, afirmou.

Sherry Turkle, autora de “Alone Together: Why We Expect More From Technology and Less From Each Other” (“separados juntos: por que esperamos mais da tecnologia e menos uns dos outros”), argumenta em seu livro que ao se tornarem mais dependentes da tecnologia no estabelecimento de intimidade emocional, as pessoas se sentem inundadas e vazias. Mas essa não é a primeira vez que o aparecimento de mídia doméstica causa revolta -talvez, vendo agora, desnecessariamente.

“Se você recuar 200 anos, houve reclamações similares sobre dispositivos tecnológicos, mas, naquela época, eram os livros”, disse Koepnick. “A sala familiar cheia de pessoas diferentes lendo livros criou muita preocupação e ansiedade, principalmente em relação às mulheres, porque, de repente, elas estavam sozinhas, suas mentes estavam vagando para áreas que não eram mais controladas.” Da mesma forma, a TV, durante décadas, trouxe o espectro de famílias americanas se transformado em zumbis viciados em sitcoms.

Mas Barry Wellman, professor de sociologia na Universidade de Toronto e estudioso dos efeitos da tecnologia sobre as comunidades sociais, disse que há pesquisas indicando que as pessoas consideram que a tecnologia está reunindo as famílias. O comportamento dentro de um casulo cibernético pode ser surpreendentemente interativo. “Tem muito ‘Ei, olha isso!” ou ‘Vamos planejar nossa viagem a Las Vegas!'”, disse ele.

Para Gotlib, as novas opções tecnológicas e midiáticas permitem que ele e sua esposa “experimentem novos níveis de intimidade”. “Três ou quatro anos atrás, eu estaria no andar de baixo assistindo à TV, e ela estaria no andar de cima lendo. Eu garanto que nós passamos 80% a mais de tempo juntos por causa do iPad.”

Ao invés de ser um sinal de relacionamento disfuncional, tal comportamento pode ser interpretado como indício de sanidade, disse Ronald Levant, professor de psicologia da Universidade de Akron, em Ohio. “As pessoas que pensam a cada minuto que ‘estamos juntos, precisamos nos conectar’ vão enlouquecer umas às outras, porque todos nós precisamos de um tempo sozinhos, não importa quão compatível um casal seja”, afirmou.

Essa foi a conclusão à qual chegou Vavra, a executiva do setor de cosméticos. Ela aprendeu a apreciar o intercâmbio resultante das noites em que cada membro da família está olhando a sua própria tela.

Possivelmente, disse ela, tal situação traga mais proximidade do que as noites passadas em volta de algum jogo de tabuleiro, como era na época analógica.

“‘Tempo juntos’, no passado, às vezes era um esforço, um momento forçado, em que programávamos: ‘Ok, após jantar, toda noite às 19h, vamos ver isso ou jogar aquilo’, e a garotada dizia: ‘Mas, mãe, eu quero fazer tal coisa'”, lembrou Vavra. “Agora, não é nada forçado. Acontece organicamente. Cada um consegue fazer suas próprias coisas, em vez de: ‘Temos de jogar Detetive de novo?’.”

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Em São Paulo, 16 de Maio de 2011

Cutucando ainda mais o paradigma…

Artigo de número dez que escrevo para o Blog das Editoras Ática e Scipione, no URL

http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/cutucando-ainda-mais-o-paradigma/

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No último artigo prometi falar sobre Ivan Illich. Cumpro aqui a promessa, mas não vou falar só dele. Vou colocá-lo no contexto de Cutucando o Paradigma…, artigo em que apresentei O Direito de Aprender, de Bruce Dixon e Susan Einhorn.

Nele, os autores reconhecem e defendem o direito de aprender da pessoa humana e expressam a preocupação de que a escola possa se tornar uma barreira para o pleno exercício desse direito, em vez de ser, como seria lícito esperar, uma via para a sua fruição. O artigo foi escrito recentemente – na verdade, neste ano de 2011.

Quarenta anos antes, em 1971, Ivan Illich, um sacerdote católico nascido em 1926 na Áustria, mas radicado em Cuernavaca, no México – onde dirigia o Centro Intercultural de Documentación(CIDOC), criado por ele próprio em 1961 –, publicou seu livro mais conhecido: Deschooling Society, traduzido como Sociedade Sem Escolas (a tradução literal  seria, naturalmente,Desescolarização da Sociedade).

No prefácio da obra ele expressa sua convicção de que “para a maioria das pessoas o direito de aprender é limitado e restringido pelo dever de frequentar a escola”. Ou seja: a escolarização obrigatória é, para a maioria das pessoas, um impedimento para o pleno exercício de seu direito de aprender (não uma forma de viabilizá-lo). Ou, ainda em outras palavras: mais escola não implica em mais aprendizagem, pelo contrário.

Illich morreu em 2002, na Alemanha – leia aqui uma breve biografia. (Estou usando o texto em inglês de Deschooling Society, e as traduções para o português são minhas).

Ainda no prefácio do livro, Illich admite que, por muito tempo, acreditou, como a maioria das pessoas, que obrigar todos a frequentarem a escola era algo bom. Quem o convenceu do contrário foi Everett Reimer, um autor que alcançou certa notoriedade nos anos 70 com seu livro School is Dead (A Escola Está Morta), publicado também em 1971. Reimer faleceu em 1998.

Illich toma o cuidado de dizer que a escolaridade obrigatória conspira contra o direito de aprender “para a maioria das pessoas”. Essa ressalva deixa a porta aberta para o reconhecimento do fato de que algumas pessoas têm uma experiência positiva na escola e de fato aprendem coisas importantes nela. Mas isso, para ele, é a exceção, não a regra.

A minha opinião é a de que as pessoas que tiveram uma experiência positiva de aprendizagem na escola a tiveram porque foram afortunadas de encontrar neste ambiente professores que, além de professores, eram pessoas excepcionais, que acabaram por fazer uma diferença na vida de seus alunos. O fato de que essas pessoas foram encontradas na escola é, em grande medida, fruto do acaso, e representa a exceção, não a regra. O mais comum é que esses contatos significativos aconteçam fora da escola: um pai, um avô, um tio, um pastor, um amigo… A revista Seleções do Reader’s Digestcostumava ter uma seção chamada “Meu Tipo Inesquecível” destinada a permitir que as pessoas registrassem experiências com essas pessoas especiais – que raramente eram professores.

Na breve passagem a seguir, John Steinbeck, grande escritor americano, Prêmio Nobel da Literatura de 1962, aborda a questão:

“É comum que adultos se esqueçam de quão difícil, chata e interminável é a escola. (…) A escola não é coisa fácil e, a maior parte do tempo, não é nada divertida. Contudo, se você tem sorte, pode ser que encontre ali um grande professor. Professores verdadeiros, com a melhor das sortes, você vai encontrar no máximo uns três durante a vida. Acredito que um grande professor é como um grande artista: há poucos deles, como há poucos grandes artistas. . . . Os meus três tinham estas coisas em comum: (a) todos eles amavam o que estavam fazendo; (b) eles não nos diziam o que saber, mas catalisavam em nós um desejo fervente de aprender; (c) e, sob sua influência, os horizontes de repente se abriam, o medo ia embora e o desconhecido se tornava conquistável. Resumindo, por sua influência a verdade, essa coisa perigosa, se tornava bela e muito preciosa”.

(Ênfase acrescentada: infelizmente, não consegui traçar a referência dessa citação, que me foi passada pela Profa. Maria Eugênia Castanho da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP. Nem mesmo ela dispõe, atualmente, da referência. Não excluo de todo a possibilidade de que o texto não seja dele.)

Esses professores especiais – e eu tive minha cota deles – em regra não fizeram diferença em nossa vida pelo que falaram (ensinaram) ou fizeram em sala de aula, mas, sim, por serem as pessoas que eram.

Michael Hammer, em seu livro Beyond Reengineering (1996), caracterizou a educação como “aquilo que permanece conosco depois que nos esquecemos do que nos foi ensinado”. Se não formos afortunados de encontrar na escola nenhum dos professores especiais de que fala Steinbeck, podemos muito bem passar pela escola sem nela obter educação alguma… Educar, como disse alguém, é algo semelhante a acender uma vela, não algo como encher um balde…

Mas voltemos a Illich.

Se desescolarizarmos a sociedade, se acabarmos com a escola (pelo menos com a escola obrigatória), não teremos nem mesmo a oportunidade de aprender por encontros com as pessoas especiais que às vezes encontramos na escola. Neste caso, como aprenderemos?

A resposta de Illich é surpreendente, em especial diante do fato de que foi dada em 1971, cerca de apenas um ano após a internet ter sido criada em universidades americanas, com recursos fornecidos pelas Forças Armadas daquele país – e mais de trinta anos antes de a Internet haver saído do gueto acadêmico-universitário e ter se tornado popular (algo que se deu nos Estados Unidos por volta de 1993 e no Brasil cerca de dois anos depois). Illich diz que devemos aprender através de redes – “teias educacionais” (educational webs), ele as chama – que proporcionariam, a cada um de nós, a oportunidade “de transformar cada momento de nossa vida em um momento de compartilhamento, de preocupação e cuidado com o outro, de aprendizagem, enfim” (prefácio).

É interessante que, ao fazer referência a pessoas que o influenciaram, Illich inclua Paulo Freire, que havia publicadoPedagogia do Oprimido (disponível na íntegra, em PDF, aqui) no ano anterior (1970) àquele em que Illich publicou o seu livro. Paulo Freire diz, nessa sua obra maior: “Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Essa é uma das passagens mais radicais de nosso grande educador, cujo retorno definitivo ao Brasil, em junho de 1980, para trabalhar na Faculdade de Educação da UNICAMP, eu tive a satisfação de ajudar a viabilizar, quando era Diretor da Faculdade de Educação daquela universidade (cargo que exerci de Abril de 1980 a Abril de 1984). Nessa passagem Freire enfatiza que nossa educação é “mediatizada pelo mundo” – não pela escola – e se dá num processo de “comunhão”, em que nos educamos uns aos outros – sem qualquer referência a professores. (O Projeto Memória traz um breve relato do retorno definitivo de Freire ao Brasil, em junho de 1986).

O primeiro capítulo de Deschooling Society começa com a seguinte passagem lapidar:

“Muitos alunos, especialmente aqueles que são pobres, intuitivamente têm conhecimento daquilo que a escola faz a eles: a escola os leva a confundir processo com substância (…), ensino com aprendizagem, progressão de uma série para a outra com desenvolvimento na educação, diploma com competência e fluência com a habilidade de dizer algo novo. Sua imaginação, uma vez ‘escolarizada’, é levada a aceitar serviço em vez de valor.”

Mais adiante, no mesmo capítulo, Illich observa:

“A mera existência da escola desencoraja os pobres  de assumir controle de seu próprio aprendizado. No mundo inteiro a escola tem um efeito sobre a sociedade que contraria os interesses da educação. A escola é reconhecida como instituição que se especializa em prover educação para as pessoas. Quando ela não faz isso, esse fato é percebido, pela maioria das pessoas, não como fracasso da escola, mas como prova de que a educação é um processo muito oneroso, muito complexo, sempre arcano, e, frequentemente, uma tarefa quase impossível”.

Acrescento: que requer mais investimento, salários mais altos para os professores, melhores condições de trabalho… Por mais que invistam na educação, os governos são acusados de ter descaso com a educação, de estar sucateando a escola…

Diz Illich, mais adiante:

“O  paradoxo  das escolas  é  evidente:  quanto  mais  se  investe nelas, mais destrutivas elas se tornam. (…) A escalada das escolas é tão destrutiva quanto a escalada das armas, mas é menos visível. A equalização de oportunidades educacionais é um objetivo desejável e alcançável, mas é absurdo considerar esse objetivo equivalente à meta de escolarização obrigatória universal. Confundir esses dois é a mesma coisa que confundir a salvação com a igreja”.

Na sequência, Illich nos dá o seu entendimento da aprendizagem:

“Aprender é adquirir uma nova habilidade ou uma nova forma de ver o mundo”.

Ele continua dizendo que é inadmissível considerar aprendizagem e escolarização como equivalentes, e que o importante é desenvolver competências, não passar pelo currículo prescrito pela escola. Ele sugere que deveria haver leis proibindo discriminação das pessoas com base em sua escolaridade, da mesma forma que há leis proibindo discriminação das pessoas com base em suas convicções políticas e religiosas, ou em sua linhagem, ou em seus hábitos sexuais, ou em sua raça ou etnia.

“É uma ilusão – e essa ilusão está na base do sistema escolar – que a maior parte da aprendizagem seja o resultado do ensino. (…) A maior parte das pessoas adquire a maior parte de suas habilidades e de seus conhecimentos fora da escola e, quando alguma aprendizagem tem lugar na escola, isso se dá apenas porque, em alguns países ricos, a escola se tornou um local de confinamento obrigatório dos alunos por períodos cada vez maiores de suas vidas. A maior parte do aprendizado ocorre casualmente, e mesmo a maior parte da aprendizagem intencional não é decorrente de instrução planejada. Crianças normais aprendem sua primeira língua casualmente, embora o façam mais rapidamente se seus pais lhe dão a atenção devida. A maior parte das pessoas que aprendem bem uma segunda língua o faz em decorrência de uma série de circunstâncias às vezes insólita, não através de ensino sequencial: elas vão viver com seus avós, que falam a língua, ou se apaixonam por um estrangeiro, por exemplo. Fluência em leitura também é, a maior parte do tempo, o resultado de atividades extracurriculares. As pessoas que leem bastante, e bem, e com prazer, apenas acreditam que adquiriram o hábito e a competência na escola, mas, se interrogadas, a maior parte acaba admitindo influências extraescolares. A aprendizagem em geral ocorre casualmente como subproduto de alguma atividade geralmente classificável como lazer ou trabalho.  (…) Só se aprende em decorrência de instrução quando se está altamente motivado para adquirir uma habilidade nova, específica e complexa. Às vezes o desenvolvimento de uma habilidade depende do domínio prévio de outra habilidade, mas não requer que ela tenha sido desenvolvida por um processo especificado”.

Aos poucos Illich fornece mais detalhes sobre seu ponto de vista, ainda no primeiro capítulo:

“Aprendizagem  criativa  e  exploratória  requer que pares  (peers)  estejam naquele momento encafifados com algum problema ou alguma questão. [Para que isso se concretize, é preciso reunir pessoas com interesses afins.] As pessoas poderiam, a qualquer momento, e por um preço mínimo, se identificar em um computador, fornecendo seu endereço e número de telefone, e indicando quais as coisas (livros, artigos, filmes, gravações) para as quais gostariam de ter parceiros de discussão. Em poucos dias, receberiam pelo correio uma listagem com os nomes, endereços e telefones de pessoas com os mesmos interesses. Isso lhes permitiria contatar os possíveis parceiros, agendar uma reunião, conversar e discutir com elas. Não é preciso que essas pessoas se conheçam previamente. A única exigência é que estejam, todas, interessadas em discutir o mesmo assunto”.

Essa é a rede, a “teia educacional”, que Illich imaginava em 1971. O que ele não diria acerca do potencial para a aprendizagem de nossas redes sociais de hoje? De Facebook, por exemplo.

Partidos políticos, igrejas, sindicatos, clubes, centros comunitários e sociedades profissionais, continua Illich, também poderiam reunir pessoas com interesses afins desejosas de encontrar parceiros de discussão. Dessa forma a aprendizagem teria lugar num contexto libertário, democrático, não autoritário – e a sociedade iria se desescolarizando e se tornando mais educacional…

A educação para todos”, afirma Illich ao chegar próximo do final do primeiro capítulo, “é, necessariamente, a educação por todos”.

Continuarei a apresentar e comentar as ideias propostas por Illich no próximo capítulo.

Mas minha apresentação e meus comentários não são discussão… Se você acha essas ideias dignas de discussão, vamos discuti-las aqui neste blog. Não hesite em deixar uma resposta, concordando com elas ou delas discordando. Vamos criticar as propostas de Illich, que em 2011 completam quarenta anos, não simplesmente ignorá-las, como se apenas uma mente desvairada ou mal-intencionada pudesse tê-las gerado. A escola que temos é uma instituição humana, criada por nós para determinados fins. Não é uma instituição sacrossanta. Não é heresia discutir se ela é ou não necessária, especialmente na era da comunicação intensiva propiciada pelas redes sociais. Não é porque somos professores e trabalhamos em escolas que a discussão crítica do ofício do mestre e da função da escola como ambiente de aprendizagem estará vedada. De nada adianta rotular como crítica a nossa postura ou abordagem se nos negamos a discutir o que fazemos, como, onde e por que o fazemos.

Prometo comentar o que você disser, elogio ou crítica. Vamos fazer deste espaço virtual uma verdadeira “teia educacional”, como a imaginou Illich, para discutir questões básicas acerca da educação e da aprendizagem – e do papel da escola e do professor nelas. Vamos usar as redes sociais de hoje para aprender. Para, quem sabe, criarmos coragem para desafiarmos o paradigma…

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Em São Paulo, 16 de Maio de 2011

Cutucando o paradigma…

Publiquei no início da semana meu nono artigo no Blog das Editoras Ática e Scipione, no URL http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/cutucando-o-paradigma/. Ele terá continuidade no início da semana que vem com um artigo sobre Ivan Illich.

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Neste meu nono artigo no blog vou dialogar, de forma talvez um pouco provocadora, com três artigos que me vieram parar nas mãos nos últimos dias. Há, a meu ver, um tema comum a perpassar os três. E esse tema me faz lembrar de Ivan Illich e A Sociedade Sem Escolas (1971 – a tradução literal do título do livro de Ivan Illich seria A Desescolarização da Sociedade)… E me sugere algo do tipo: “The school is dead! Long live learning”.

(O artigo é longo. Deixo-o assim porque o assunto merece. Mas se você é daqueles que acha a escola uma instituição “imexível”, tome uma maracujina antes de continuar.)

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O primeiro dos três artigos é um instigante texto de Rosa María Torres, educadora equatoriana, diretora do Instituto Fronesis. O artigo tem o título de (traduzindo do correspondente em Inglês) “Aprendizagem ao Longo da Vida: indo além de Educação para Todos” e foi apresentado primeiro como conferência principal no Fórum Internacional sobre Aprendizagem ao Longo da Vida que se realizou em Shanghai, na China, entre 19 e 21 de maio de 2010. (O texto do artigo de Rosa María Torres e as demais contribuições ao Fórum podem ser encontrados aqui).

O texto discute sutis diferenças de ênfase entre dois movimentos iniciados pela UNESCO nos últimos anos, Educação para Todos e Aprendizagem ao Longo da Vida.

Educação para Todos foi (na verdade, ainda é) um movimento iniciado pela UNESCO em 1990, na Conferência Mundial da Educação de Jomtien, na Tailândia. Nessa Conferência, participantes de 155 países e 150 organizações aprovaram a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, em que se comprometiam a buscar a meta de, nos dez anos seguintes (até no ano 2000, portanto), oferecer educação básica para todas as crianças, jovens e adultos do planeta – e ter a oferta aceita (vide os sites da UNESCO sobre o movimento e sobre a declaração).

O movimento Educação para Todos alcançou sua culminância no Fórum Mundial da Educação que teve lugar em Dakar, no Senegal, dez anos depois, em 2000. Esse fórum também aprovou um documento, a Estrutura para Ação de Dakar: Como Implementar o Nosso Compromisso Coletivo com a Educação para Todos (vide os sites da UNESCO sobre o fórum e sobre o documento).

(É bom registrar, em parênteses, que, quando esses documentos falam em educação, eles têm em vista a educação básica formal, isto é, a educação básica oferecida em escolas. A Constituição Federal Brasileira de 1988 define educação básica de modo a incluir a educação infantil, a educação fundamental e a educação de nível médio. Ela cobre, portanto, cerca de 14 anos da vida da pessoa: digamos que dos quatro aos 17 anos, se atribuirmos apenas dois anos à educação infantil. Aqui entre nós, 14 anos é duração de pena para crime razoavelmente sério… É mais do que o dobro da pena mínima para homicídio simples, que tem pena de reclusão de seis a 20 anos, por exemplo. Fim do parêntese).

O documento de Dakar, de 2000, constata que houve progresso na década anterior em direção ao objetivo maior de propiciar educação básica para todos, mas que o objetivo ainda estava longe de ser alcançado. Metas bem mais modestas, mas mais realistas, foram então propostas – o prazo também sendo estendido para o ano 2015, porque o prazo anterior estava esgotado.

Entre essas metas estavam:

  1. Expandir e aprimorar o cuidado e a educação de crianças pequenas, “em especial as mais vulneráveis”;
  2. Garantir que todas as crianças, “especialmente as meninas, as crianças em circunstâncias difíceis e as crianças pertencentes a minorias étnicas”, tenham acesso a “educação primária” de boa qualidade, gratuita e compulsória;
  3. Garantir que as necessidades de aprendizagem de jovens e adultos sejam atendidas através de programas apropriados, voltados para o desenvolvimento das habilidades requeridas para a aprendizagem e para a vida;
  4. Alcançar melhoria de 50% nos níveis de alfabetização de adultos, “especialmente para as mulheres”;
  5. Reduzir disparidades entre a educação primária e secundária oferecida a pessoas de um sexo e de outro (neste caso, até 2005) e totalmente eliminar essas disparidades até 2015;
  6. Disponibilizar programas de educação básica e educação continuada para todos os adultos.

Novamente entre parênteses, no Brasil a campanha Todos pela Educação (vide http://www.todospelaeducacao.org.br/) propõe que lutemos para alcançar as seguintes metas (relativamente modestas) até o ano 2022:

  1. Toda criança e jovem de quatro a 17 anos na escola;
  2. Toda criança plenamente alfabetizada até os oito anos (i.e., ao começar o seu quarto ano na Educação Fundamental);
  3. Todo aluno tendo aprendizado adequado à sua série;
  4. Todo jovem concluindo a Educação de Nível Médio até os 19 anos;
  5. O investimento em educação sendo ampliado e bem gerido.

Voltando ao artigo de Rosa María Torres, mais recentemente a UNESCO propôs a discussão do tema Aprendizagem ao Longo da Vida, que, segundo a autora, introduz sutis diferenças nas questões propostas até então.

Em primeiro lugar, fala-se agora em aprendizagem, não em educação. Com isso parece que a importância da distinção entre aprendizagem formal (escolar) e aprendizagem não-formal (não-escolar) é reduzida, pois se trata, em ambos os casos, igualmente de aprendizagem. Assim, a escola deixa de ser o foco exclusivo de atenção, pois se reconhece o papel, na aprendizagem, também da família, da comunidade, dos meios de comunicação e acesso à informação, da vida profissional, e das atividades culturais e de lazer, viabilizadas ou não pela tecnologia – como bem já o colocava Jacques Delors, no prefácio de 1996 ao relatório publicado no Brasil como Educação: Um Tesouro a Descobrir.

(Mais algumas observações entre parênteses. É curioso que, em sua edição original em inglês, o relatório da Comissão de Jacques Delors tem o título de Learning: The Treasure Within. Por que os tradutores brasileiros substituíram “Learning”, que deve ser traduzido como “Aprendizagem”, por “Educação” é algo sobre que só se pode especular – especialmente porque “Aprendizagem” é uma palavra acima de qualquer suspeita. Outra mudança sutil é a tradução de “Within”, “Dentro”, por “A Descobrir”. Um tesouro a descobrir sugere algo que está fora da pessoa e que ela pode encontrar, como numa caça ao tesouro. Um tesouro dentro sugere que o tesouro está dentro da pessoa e precisa ser buscado ali… Por fim, os tradutores traduziram “The Treasure”, “O Tesouro”, por “Um Tesouro”… Durma-se com um barulho desses.)

Em segundo lugar, na argumentação de Rosa María Torres, enfatiza-se agora o fato de que a aprendizagem tem lugar ao longo da vida toda, desde o nascimento da pessoa até a sua morte. Com isso parece que a importância da aprendizagem que acontece na educação básica escolar é relativizada, passando a receber ênfase comparável à que é dada à educação de jovens e adultos, à educação técnica, tecnológica e profissional, ao que se chamava anteriormente de educação de adultos, às diversas formas de aprendizagem decorrentes de programas de educação continuada (mesmo os que têm lugar no contexto do trabalho), ao e-learning corporativo, e, por que não, até mesmo ao ensino superior (graduação e pós-graduação). Tudo isso está incluído em Aprendizagem ao Longo da Vida – e tudo isso está fora da educação básica oferecida pela escola.

Pessoalmente, considero essas mudanças sutis destacadas por Rosa María Torres um grande e bem-vindo avanço – mas esse avanço só torna as metas que a UNESCO se propõe alcançar ainda mais difíceis. (Tudo aquilo que, não sendo natural, como o ar que respiramos, é para todos, não resta dúvida que é difícil – em especial aprendizagem de qualidade para todos ao longo de toda a sua vida).

Isso quer dizer que, no Dia Mundial da Educação celebrado em 28 de abril passado, o grande desafio continuou sendo conseguir envolver a todos na luta pela educação para todos e na busca de uma aprendizagem que possa ser cultivada por cada e um e por todos ao longo de toda a sua vida.

E, naturalmente, conseguir que a qualidade da educação e das experiências de aprendizagem melhore em relação ao nível de qualidade alcançado hoje – que, convenhamos, é baixo.

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O segundo artigo com o qual quero sucintamente dialogar é um white paper escrito por meu amigo Bruce Dixon, presidente daAnytime Anywhere Learning Foundation, com a cooperação de Susan Einhorn. O título do artigo é: O Direito de Aprender: Identificando Precedentes para Mudanças Sustentáveis. (O texto completo do artigo está disponível aqui).

Bruce Dixon resume a discussão realizada e as sugestões feitas na Reunião de Cúpula Global sobre Grandes Ideias 2010, que foi dedicada ao tema de Um Computador por Criança (não por Aluno). A reunião foi realizada em Portland, Maine, em Junho do ano passado, perto da residência de Seymour Papert, que foi o convidado de honra. Tive o privilégio de participar do evento e de revê-lo. (Maine foi escolhido para sediar a cúpula por ser o primeiro estado americano a colocar um computador nas mãos de cada aluno. O governador que tomou essa ousada decisão foi Angus Watkins, que, agora ex-governador, participou da reunião. Foi um prazer conhecê-lo.)

As principais sugestões feitas pelos participantes às autoridades responsáveis por políticas educacionais, ou a quem de direito, foram:

  1. Reconhecer o direito de aprender da pessoa humana, pois é aprendendo que ela se desenvolve;
  2. Permitir que as pessoas foquem sua aprendizagem em seus talentos e paixões;
  3. Garantir que os ambientes de aprendizagem orientem  e apoiem os desejosos de aprender, expandindo suas oportunidades e não lhes criando barreiras artificiais;
  4. Usar a avaliação como parte natural do processo de desenvolvimento da pessoa, não como barreira;
  5. No caso da escola, focar a preparação de professores no seu papel de protetores e promotores desse direito essencial do ser humano.

Aqui, novamente, é preciso estar atento às ênfases, porque elas são sutis.

Primeiro, o direito que se proclama é o direito de aprender – não o direito à educação, vale dizer, o direito de frequentar a escola (que, na nossa legislação, é um direito que também é um dever – mais sobre isso, adiante).

Segundo, indica-se, no espírito das observações de Sir Ken Robinson sobre O Elemento, já discutidas por mim em dois artigos anteriores (aqui e aqui), que a aprendizagem que vale a pena é a que une os talentos e as paixões das pessoas.

Terceiro, sugere-se que a escola (o principal ambiente de aprendizagem reconhecido), longe de proteger e promover esse direito, concebido na forma indicada, tem construído barreiras artificiais ao seu exercício – como os currículos padronizados, “de tamanho único”, o foco nos conteúdos em vez de nas competências, o foco exclusivo no cognitivo em detrimento do não-cognitivo, as avaliações na forma de testes padronizados, os professores especialistas em conteúdo que raramente conhecem bem os fatos necessários acerca do desenvolvimento humano e da aprendizagem e raramente possuem as competências pessoais e interpessoais necessárias para atuar como protetores e promotores do direito de aprender das alunos e facilitadores do seu exercício.

Como se pode ver, o que aqui se propõe não é incompatível com as sutilezas que Rosa María Torres detecta na evolução das iniciativas da UNESCO. Pelo contrário: leva a discussão um passo adiante.

*

Finalmente, o terceiro artigo, uma matéria de Rosely Sayão na Folha de S. Paulo no último 3 de maio, com o título de “Infância roubada”. (Disponível na íntegra para assinantes da Folha ou do portal UOL).

Destaco algumas passagens do texto da conhecida psicóloga:

“A criança deve ter o direito de ser criança enquanto pode. Deveríamos, todos, defender essa causa.”

“Temos nos ocupado tanto com o futuro das crianças que esquecemos que elas têm um presente que precisa ser vivenciado, explorado, vivido até as últimas consequências. Aliás, antes de tudo, vamos lembrar que a maneira como vivemos o presente ajuda a desenhar o traçado do futuro.”

“Será que, porque o destino da criança é crescer, precisamos fazer com que isso aconteça o mais rapidamente possível? Não faz o menor sentido pensar e agir assim. Seria a mesma coisa pensar que, já que vamos mesmo morrer, não faz o menor sentido viver, não é verdade?”

“Já não lembramos mais que a maioria dos adultos chegou onde chegou tendo vivido calmamente a sua infância, sem grandes preparações para o futuro. E isso faz com que a gente tente atropelar a infância de quem hoje é criança.”

Neil Postman já havia apontado alguns desses problemas, e ainda outros, em seu livro O Desaparecimento da Infância, de 1982. As crianças estão se tornando adultos precoces, porque as tratamos como se o fossem. Nós, os pais, damos-lhes demasiadas responsabilidades antes que elas estejam preparadas para assumi-las, discutimos com elas assuntos e problemas que elas não entendem direito e para os quais elas pouco podem contribuir – e o fazemos para lhes dar a impressão de que somos todos democraticamente iguais… Enchemos seu horário de compromissos (escola, curso de Inglês, de judô, de dança, de tênis de mesa, acampamentos, passeios programados…) de tal modo que elas precisam de uma agenda para coordená-los – e, quem sabe, um motorista, para atendê-los todos. Deixamos – ou mesmo incentivamos – que as meninas se vistam, se calcem, se pintem e se comportem como mulheres adultas… Resultado: nossas crianças passam pela vida como Dom Fulgêncio, o homem que não teve infância. O pior é que a infância suprimida às vezes aponta a sua cara quando elas já são adultas, o adulto infantil sendo, talvez, a contrapartida necessária, mas ridícula, da criança adulta.

*

Concluindo…

Preocupa-me a superescolarização da nossa sociedade. Preocupa-me a tendência de colocar a criança na escola o mais cedo possível (dois anos está se tornando padrão nas classes A-C), de aumentar o número de dias letivos no ano, de estender as horas em que as crianças são obrigadas a ficar na escola (até o dia todo, o famigerado, mas tão louvado, “período integral”), de reduzir o tempo do recreio e as “janelas vagas” no horário das turmas, de pressionar o professor a não “desperdiçar” o tempo em sala de aula com conversa miúda com os alunos e tarefas burocráticas, de estender os anos ou as idades de escolaridade obrigatória (eram quatro, passaram a ser oito, depois nove, logo serão doze…).

A menos que a escola proporcione excepcionais experiências de aprendizagem (que a maioria das escolas hoje certamente não proporciona), precisamos reduzir a presença da escola na vida das crianças, precisamos reduzir o tempo em que as crianças ficam institucionalizadas (a sua “sentença”), permitindo que elas brinquem mais, desfrutem mais as alegrias da infância, vivam mais, aprendam mais, em contextos não-formais, como conseguir que seus talentos e suas paixões convirjam…

O que é que diz o poema “Instantes”, atribuído a Jorge Luís Borges? O autor está no fim da vida, com mais de 80 anos, e reflete:

“Si pudiera vivir nuevamente mi vida,
en la próxima trataría de cometer más errores.
No intentaría ser tan perfecto, me relajaría más.
Sería más tonto de lo que he sido,
de hecho tomaría muy pocas cosas con seriedad.

(…)

Si pudiera volver a vivir,
comenzaría a andar descalzo a principios de la primavera
y seguiría descalzo hasta concluir el otoño;
daría más vueltas en calesita,
contemplaría más amaneceres, y jugaría con más niños…
si tuviera otra vez vida por delante.”

O poema “Epitáfio”, cantado pelos Titans, vai na mesma linha:

“Devia ter amado mais, ter chorado mais,
Ter visto o sol nascer…
Devia ter arriscado mais e até errado mais,
Ter feito o que eu queria fazer…

(…)

Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr…
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor…”

(O texto completo dos dois poemas estão publicados em meu blog).

Mas a tônica dos dois poemas pode ser resumida na frase de Horácio: carpe diem, quam minimum credula postero – aproveite o dia de hoje, porque no futuro não se pode confiar…

Quando vamos aprender?

A inteligência, como disse um colega meu, professor de filosofia da PUC-SP, requer uma certa dose de ociosidade – vagabundagem, mesmo – para prosperar. A criatividade, como disse um jornalista famoso que trata de educação, requer liberdade e uma certa dose de indisciplina – anarquia e bagunça, mesmo – para prosperar.

O senador Cristovam Buarque, com quem tive o privilégio de compartilhar uma mesa redonda no último dia 3 de maio, no IPEA, em Brasília, em encontro promovido pela UNESCO sobre Educação e Desenvolvimento: Integrando Políticas, sugeriu que devemos parar de pensar em crescimento econômico e pensar em decrescimento econômico, vida mais simples e frugal, redução de consumo, redução de produção… Menos, neste caso, pode ser mais: menor crescimento econômico, maior qualidade de vida, no sentido que realmente importa. Mas, para o Senador, precisa haver mais escola e mais tempo na escola :-( .

Será que, nesse espírito, seria uma heresia muito grande se eu propuser menos escola? Menos escola, e mais qualidade de vida, mais brincadeira, mais ociosidade, e mais aprendizagem, no sentido que realmente importa, que envolve mais inteligência e mais criatividade?

Ou será que o senador e eu somos, cada um a seu modo, sonhadores incorrigíveis?

Nossa Constituição diz que a educação (escolar, no caso – tente educar seus filhos em casa para ver como o Ministério Público vem atrás de você) é um direito de todos (Art. 6º). Diz também que a liberdade é um direito individual nosso. No entanto, obriga as crianças a frequentar a escola dos 7 (agora 6) aos 14 anos, e obriga os pais a colocarem os filhos na escola. O que era para ser um direito passou a ser um dever – para as crianças, uma sentença, a menos que ir para a escola se torne algo que lhes traga prazer, por permitir que, lá, elas encontrem o seu “elemento”.

Onde está Ivan Ilyich quando a gente mais precisa dele? Este ano faz 40 anos que ele escreveu A Sociedade sem Escolas (A Desescolarização da Sociedade). Ele morreu em 2002 – mas o seu livro, publicado no auge da contracultura e do movimento hippie, apesar de ter influenciado importantes pessoas, como John Holt, morreu antes. Na verdade, porém, e surpreendentemente, o livro é mais radical hoje do que quando foi publicado. A sociedade, em vez de se desescolarizar, como ele propunha e queria, está cada vez mais escolarizada. E o estabelecimento educacional acredita que criticar a escola é mais inadmissível do que profanar o nome da Santíssima Trindade. Illich, nas palavras de um resenhador, “vê na escola moderna um falso mito da salvação”. (Vide o texto completo do livro de Ivan Illich e a resenha mencionada, escrita por Justin Wyllie).

Semana que vem, Illich e as redes sociais. O artigo de hoje foi apenas um preâmbulo.

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Em São Paulo, 14 de Maio de 2011

A febre legisferante que assola o país

Sempre achei, secundado pelo bom senso, que para que haja um crime é preciso que haja uma vítima – ainda que seja uma vítima difusa, como a “economia popular”.

No entanto, quando estudava nos Estados Unidos, no fim dos anos 60 e início dos anos 70, encontrei um livro que tratava de uma categoria de crimes diferentes, chamada de “crimes sem vítimas”. Os crimes, no caso, eram crimes perante a legislação americana. Achei a coisa fascinante, como evidência da idiotice dos legisladores americanos.

O livro contém uma variedade de ilustrações dessas leis, retiradas dos livros de leis dos estados americanos, como, por exemplo, as leis de alguns estados que proibem relações sexuais consensuais entre homossexuais e ou entre pessoas de sexo diferente mas não oficialmente casadas, ou que proibem casais heterossexuais devidamente casados, com papel passado e tudo, de manterem relações sexuais heterodoxas (orais e anais) ou até mesmo as relações convencionais, mas em posições diferentes da sacramentada “papai e mamãe”, também conhecida como “missionária” (porque era a única sancionada pelos missionários propagadores da fé cristã). 

Uma vez, quando viajava de Nova York a San Francisco, pela finada PanAmerican World Airways, pedi um drink à aeromoça num determinado momento do voo. Ela me informou que, lastimavelmente, não poderia me servir, porque estávamos voando por sobre o Estado de Kansas, que é um estado “dry”, até mesmo em seu espaço aéreo.

Sempre me intrigou por que é que os legisladores dos estados que aprovaram essas leis inventaram esses crimes que não têm vítima. Se um casal não oficialmente casado, hétero ou homo, quer, consensualmente, manter relações sexuais, por que seria isso um crime? Não há vítima alguma das ações dos dois envolvidos. De igual forma a relação sexual heterodoxa ou em posição diferente da mais convencional. Por que seria isso um crime? Não há nenhuma vítima! A menos que a vítima seja, em todos esses casos, a religião cristã, em suas variantes mais fundamentalistas.

O mesmo se pode dizer quanto à bebida. A lei do nobre mas conservadoríssimo estado de Kansas pode proibir o consumo de bebidas alcoólicas em locais públicos – mas no chão… No espaço aéreo, dentro de um avião que apenas passa por cima do estado e nem vai parar no seu planíssimo território,  não faz nenhum sentido. Quem seria a vítima? Quem seria prejudicado?

Resta perguntar como é que os legisladores esperavam que essas leis fossem aplicadas e suas violações descobertas. Uma polícia sexual iria visitar sem prévio aviso os quartos das casas, apartamentos, quartos de hotel e motel, bancos de trás de carros, para conferir a identidade e o estado civil de quem está fazendo sexo, e para aferir o sexo de cada um dos envolvidos e a posição que adotavam para o ato…  Iria Kansas colocar um policial em cada avião para verificar se os (na época penas as) atendentes de bordo estavam cumprindo a lei? Nonsense.

Pensei que essa doença só acometesse os broncos legisladores americanos. Ouvi hoje cedo no rádio, porém, que a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que pune fabricantes, distribuidores, comerciantes E usuários de sutiãs, calcinhas e cuecas que estiverem de posse de peças que não contenham uma etiqueta advertindo os que manuseiem as peças para fazer exames preventivos de câncer de mama e colo de útero, ou, no caso de homens, de próstata. 

Se as leis americanas visam proteger algo difuso como a fé cristã fundamentalista contra supostos desvios morais, a brasileira visa proteger as pessoas contra si mesmas. A lei nos considera um bando de idiotas, que se não tivermos em nossas peças íntimas um lembrete, não cuidaremos de nossa saúde.

Mesmo negligenciando o fato de que cada um de nós tem direito de terminar sua vida subitamente, pelo suicídio, e, portanto, também o teria de não prevenir doenças não contagiosas, resta perguntar como nossos ilustres legisladores esperam que a referida lei, uma vez aprovada e sancionada, será aplicada. Os policiais pararão cada um na rua para pedir para dar uma olhadinha no sutiã e na calcinha da pessoa, ou em sua cueca?

Façam-me o favor. O Festival de Besteira que Assola o País ataca novamente.

Em São Paulo, 14 de Maio de 2011 (véspera do aniversário da Paloma…)