Elizabeth Cady Stanton: “The Making of a Feminist”

(Mais um post dedicado à minha filha Priscilla Epprecht Machado França.)

Este post é, em certo sentido, uma continuação do anterior, embora ele lide com a vida de Cady Stanton antes de ela se tornar importante e famosa — antes de ela ser considerada a “Mãe do Feminismo Americano”.

Ela nasceu em 1815 em uma família razoavelmente abastada, que morava no Estado de New York, a noroeste da capital, Albany, uns 65 km. Seu pai era advogado e se tornou juiz. Os pais dela tiveram onze filhos — mas cinco morreram novinhos. Sobreviveram a infância seis deles: um menino e cinco meninas. Cady foi a oitava dos filhos. O irmão era mais velho, assim como duas das irmãs. Outras duas eram, naturalmente, mais nova do que ela.

Quando Cady tinha onze anos (em 1826) o único homem dos filhos morreu, aos vinte anos. Foi um tsunami emocional para a família — especialmente para o pai, que esperava que Eleazar, o filho que morreu, o substituísse na prática da advocacia e, quem sabe, também se tornasse um juiz.

Não passou despercebido a Cady que aos pais não ocorria que uma das cinco meninas poderia vir a substituir o pai no lugar do irmão morto. Ela começou a pensar por quê.

Lembrou-se de que, quando tinha quatro anos, sua irmã Margareth nasceu — e a reação de todo mundo na casa, mesmo ainda estando vivo o irmão, foi: “Ah que pena que é mais uma menina!”

Inteligente e precoce, Cady achou que mulheres normalmente exerciam funções dentro de casa, e não fora, na rua, no escritório, na fábrica, porque, para trabalhar fora, você precisa estudar bastante e ser ambicioso, ousado, corajoso. Ao alcançar essa conclusão ela resolveu que ela iria estudar bastante, ser uma excelente aluna, e iria exibir aquelas características que faziam os homens ser bem sucedidos fora de casa, no mundo do trabalho.

Ela se tornou uma excelente aluna, a única mulher na academia de Johnstown, que ela frequentou, optou por praticar esportes, entre os quais cavalaria, e se tornou ativa na vida da escola.

Um dia ela ganhou um prêmio pelo seu desempenho em Grego. Chegando em casa, foi correndo contar para seu pai, na certeza de que ele, agora, iria considera-la igual ao filho perdido, permitindo que ela seguisse a mesma carreira e o sucedesse…  O pai ouviu a história e lhe disse, meio desapontado: “Ah… você deveria ter nascido menino!”

Ela ficou desapontada, mas não esmoreceu. Resolveu estudar a fundo, por conta própria, o que era que impedia as mulheres de seguirem carreiras como a do pai. O escritório do pai era anexo à casa e ela começou passar seu tempo livre por lá, ouvindo histórias dos clientes, lendo, refletindo…

Logo descobriu que, na sociedade em que ela vivia, uma mulher casada se tornava basicamente uma mulher morta, depois de casada, aos olhos da lei. Descobriu que, se ela tivesse alguma propriedade antes de casar, ao se casar a propriedade passava a ser do marido, que podia dispor dela sem autorização da mulher. Descobriu que, se ela viesse a trabalhar fora de casa, recebendo salário, ao se casar o seu salário pertenceria ao marido, que, basicamente sendo dono dela, era dono de tudo que lhe pertencia.

Até dos filhos. A mulher casada não tinha a guarda dos próprios filhos. Se o marido perdesse sua confiança de que a mulher era capaz de criar bem os filhos, podia, contra a vontade dela, ou mesmo sem informa-la de sua decisão, optar por dar seus filhos para adoção por parte de terceiros — e estes poderiam optar por nunca mais deixa-los ver sua mãe biológica.

Cady começou a se enveredar pelo Direito, para entender como essas coisas absurdas podiam acontecer. Os estagiários de seu pai, todos estudantes de Direito, faziam brincadeiras com ela por causa das leis que negavam à mulher direitos básicos que os homens possuíam e assumiam com naturalidade. Um dia ela mostrou a um deles um colar e um bracelete de coral que havia ganho no Natal. O colega lhe disse que, se ela se casasse com ele, o colar e o bracelete passariam a ser dele e ela só poderia usa-los com sua permissão… E acrescentou que, se ele desejasse, poderia trocar o colar e o bracelete por uma caixa de charutos e Cady então assistiria a transformação em fumaça do presente que tanto a orgulhava…

“The making of a feminist” estava em pleno andamento…

Quando terminou de cursar a academia de Johnstown, pensou em fazer a faculdade na mesma escola em que seu irmão estava estudando quando morreu, o Union College de Schenectady, NY. Logo descobriu que não poderia: a escola não aceitava mulheres!

“Novamente”, disse ela, “eu senti mais agudamente do que em qualquer momento anterior, a injustiça e a humilhação de não poder fazer algo que eu queria fazer, não por incapacidade, mas por causa do meu sexo”.

A construção de uma feminista ganhou mais um punhado de tijolos…

Ela teve de se contentar em ir estudar em uma escola para moças — com o nome esquisito de Troy Female Seminary — que oferecia, para mulheres, uma educação parecida com aquela que era oferecida para os homens.

Na escola, teve experiência direta do que era um Reavivamento Espiritual — daqueles promovidos por Charles Grandison Finney. Ela havia sido criada na Igreja Presbiteriana, uma igreja que ela considerava meio triste, tétrica até, porque ali se pregava que Deus, em sua soberania, já havia decidido quem iria para o céu e quem iria para o inferno… Independentemente de como as pessoas vivessem, do que fizessem… Tudo que uma pessoa podia fazer era ter esperança de estar entre os eleitos que seriam salvos do inferno!

A pregação de Finney mexia com as emoções das pessoas — e mexeu com as de Cady. Ela ficou muito impressionada: achou que ele era um terrorista da alma, a manipular as emoções das pessoas. Quando voltou para casa, ao final do ano letivo, conversou seriamente com seu pai e com seu cunhado, marido de sua irmã mais velha, que era um indivíduo interessante, cético, racionalista, bom argumentador, culto, com quem Cady gostava de conversar. Seu pai resolveu fazer uma viagem com ela e convidou sua irmã e o cunhado para irem juntos.

A viagem foi um marco para ela, que, ao longo da viagem, começou a abandonar aquilo que ela chamou de suas superstições religiosas e a aceitar uma visão mais racionalista e científica da vida. Aos poucos o medo foi dando lugar a um sentimento mais positivo, de confiança no futuro e em sua capacidade de enfrenta-lo. Sentiu-se feliz. Parece que a vida poderia ter perspectivas interessantes, afinal das contas…

A frustração de ver tantas portas fechadas para as mulheres e o medo de enfrentar um futuro que já estaria decidido de antemão foram, aos poucos, sendo substituídos pela confiança de que ela poderia ter um papel importante em mudar esse estado de coisas.

Estava formada, no plano mais básico, uma feminista.

(Dados retirados do livro Elizabeth Cady Stanton and Susan B. Anthony: A Friendship that Changed the World, de Penny Colman, e da autobiografia de Elizabeth Cady Stanton, com o título Eighty Years and More; Reminiscences 1815-1897. Ambos os livros disponíveis como e-books em formato Kindle na Amazon.)

Em Salto, 23 de Fevereiro de 2016.

Elizabeth Cady Stanton: “Mãe do Feminismo Americano”

(Post dedicado à minha filha, Priscilla Epprecht Machado França.)

Elizabeth Cady Stanton (12 de Novembro de 1815/26 de Outubro de 1902) foi chamada por algumas pessoas bem situadas para fazer essa atribuição, em especial por sua amiga e colega de lutas Susan Brownell Anthony (20 de Fevereiro de 1820/13 de Março de 1906), de “Mãe do Feminismo Americano” [1].

Não vou destacar aqui as muitas realizações de Cady Stanton (como geralmente era chamada) – ou de sua amiga e companheira de lutas em favor da mulher, Susan Anthony. A Wikipedia tem vários artigos sobre elas [2].

Vou chamar a atenção apenas para um livro, em dois volumes, escrito por Cady Stanton, que é considerado, por muitos, a primeira tentativa séria de lidar com a questão da visão bíblica da mulher, e, portanto, um importante precursor do que hoje se chama de “Teologia Feminista”: The Woman’s Bible (A Bíblia da Mulher) [3]. Não se trata de um livro que cristãos conservadores provavelmente venham a apreciar – apesar de a hermenêutica utilizada por Cady Stanton em sua interpretação da Bíblia desagradar também a maioria dos cristãos liberais. Mais sobre isso adiante.

O primeiro volume de TWB foi publicado em 1895 e o segundo em 1898 [4]. Ambos os volumes analisavam passagens bíblicas, tanto do Velho quanto do Novo Testamento, que se referiam a mulheres ou que tratavam de temas que tinham implicações acerca da questão da opressão da mulher.

Eis como Cady Stanton descreve o projeto: “Analisar e comentar apenas aquelas passagens que se referem diretamente às mulheres e aquelas em que menção deveria ter sido feito às mulheres mas não foi feita, deixando-as de fora. Ao todo, isso corresponde a cerca de 10% do texto bíblico” (Prefácio).

Note-se, porém, que a ideia original de Cady Stanton, lançada quase dez anos antes (em 1886) era editar um Comentário Feminista à Bíblia na sua totalidade escrito exclusivamente por mulheres, dentro dos cânones acadêmicos, envolvendo análise crítica (literária e histórica) dos textos bíblicos. Mas ela não conseguiu reunir colaboradoras em número suficiente. Não havia, naquela época, muitas mulheres que dominassem as línguas originais da Bíblia e se dispusessem a se engajar na causa feminista (ou mesmo apenas sufragista [5]). Diante disso, Cady Stanton se dispôs, quase uma década mais tarde, a escrever, ela própria, um comentário sobre passagens selecionadas da Bíblia sem recorrer ao aparato técnico geralmente utilizado por scholars bíblicos e utilizando a interpretação literal como método hermenêutico – método esse geralmente privilegiado pelos teólogos conservadores.

Embora os teólogos conservadores adotassem, preferencialmente, o método de interpretação literal do texto bíblico (exceto onde ele produzisse resultados claramente indesejáveis), os teólogos liberais preferiam, diante de textos que colocavam dificuldades para sua visão de mundo, partir diretamente para uma interpretação simbólica, mística ou alegórica (“descobrindo” no texto um “sentido espiritual” mais profundo – o sensus plenior da teologia católica – que substituísse o sentido literal inaceitável).

Assim, Cady Stanton acabou desagradando a gregos e troianos.

Desagradou os teólogos conservadores, porque, interpretando literalmente várias afirmações bíblicas acerca da mulher, ela visava mostrar que a Bíblia é a principal fonte, na cultura Ocidental, para uma visão negativa da mulher.

Desagradou os teólogos liberais, porque se recusou a atribuir um sentido espiritual supostamente mais profundo a textos que, interpretados literalmente, serviam de evidência para a condenação da cultura Judaico-Cristã pela condição de opressão da mulher vigente no Ocidente (e quiçá no mundo inteiro).

Faço referência aqui a algumas passagens bíblicas que Cady Stanton critica – mas antes começo com uma que ela não critica, pelo contrário. Vou depender, para esse resumo, basicamente da estrutura do relato de Dorrien, já mencionado no rodapé, inserindo algumas citações que retirei diretamente do texto de TWB para ilustrar melhor o ponto de vista da autora.

É fato sabido que há, no Velho Testamento, especificamente no livro de Gênesis, dois relatos da criação (inclusive da criação dos seres humanos): um no capítulo primeiro, o outro no capítulo segundo (começando com o versículo 4b e indo até o versículo 25).

No capítulo primeiro, começando com o versículo 26, Deus teria dito: “(26) Façamos o homem [ser humano, homem no sentido genérico] à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio . . . sobre toda a terra.  . . . (27) Criou Deus, pois, o homem [ser humano] à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (28) E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a. . . (30) E assim se fez. (31) Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. . . .” [Almeida-RA].

Segundo Cady Stanton, esse relato da criação, especialmente no versículo 27, atribui, por implicação, um elemento feminino à divindade, pois Deus se propõe a criar o ser humano à sua imagem e semelhança e o cria, segundo parece em um mesmo momento, “homem e mulher”. Isso indicaria, segundo ela, que a divindade possui um elemento masculino e um elemento feminino, os dois elementos em perfeita igualdade de condição [6].

O que afirma Cady Stanton sobre esse relato do primeiro capítulo de Gênesis? Para ela, no momento de criar o ser humano, o texto bíblico desse primeiro capítulo, ao observar que Deus disse “Façamos o ser humano à nossa imagem, conforme à nossa semelhança”, deixa claro que houve uma interação ou “consultação” — não entre as três pessoas (todas masculinas!) da Trindade como muitos teólogos pretendem, vislumbrando aí uma “prova” da natureza triúna (e masculina) de Deus — mas entre o elemento masculino e o elemento feminino inerentes e igualmente representados na Divindade. Segundo ela, deveríamos nos referir a Deus como “Nosso Pai e Nossa Mãe Celestial”. Como o homem, a mulher é igualmente superior ao restante da criação, não havendo, no primeiro capítulo de Gênesis, qualquer indicação de que um dos dois seja superior ao outro e mereça do outro a sujeição. (TWB, Capítulo I, Gênesis).

Mas a Bíblia contém também o relato do segundo capítulo de Gênesis. Nesse relato, Deus cria primeiro o homem, a partir do “pó da terra”, soprando-lhe “o fôlego de vida” nas narinas, de modo a torna-lo “alma vivente” (versículo 7). O homem (não mais no sentido genérico, mas agora no sentido masculino do termo) foi colocado no Jardim do Éden “para o cultivar e o guardar” (versículos 8 e 15). Apesar da lindeza do jardim, o homem aparentemente não estava feliz, de modo que Deus concluiu que “não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea” (versículo 18). A partir dessa conclusão, Deus, fazendo Adão dormir, retirou dele uma de suas costelas, e “fechou o lugar com carne” (versículo 18), e, em seguida, “transformou [a costela do homem] em uma mulher” e a entregou ao homem (versículo 22).

Não resta dúvida de que esse segundo relato, longe de preconizar igualdade de condição entre o homem e a mulher, criados ambos à imagem e semelhança de Deus, rebaixa a condição da mulher. Quem foi criado primeiro foi o homem. Foi a ele que foi dado o encargo de “cultivar e guardar” o jardim e dominar a terra. A mulher, aparentemente, só foi criada porque o trabalho era muito e, por isso, não era bom que o homem fosse o único a realiza-lo. Por isso, Deus lhe deu a mulher como auxiliar – fazendo questão de ressaltar que ela era “idônea”. O processo de criação da mulher não foi o mesmo envolvido na criação do homem. Ela não foi criada do “pó da terra”, nem Deus soprou-lhe “o fôlego da vida” nas narinas, para que se tornasse “alma vivente”. Ela foi confeccionada a partir de uma costela do homem – aparentemente já como “alma vivente”. Deus a chamou “varoa, porquanto do varão foi tomada” (versículo 23).

O que comentou Cady Stanton acerca desse segundo relato?  Segundo ela, “na minha opinião, essa segunda história foi inventada por algum judeu, que manipulou a primeira história de modo a emprestar autoridade divina à tese de que a mulher deve obedecer ao homem com quem casa. . . . É evidente que algum escritor esperto, diante da perfeita igualdade entre o homem e a mulher descrita no primeiro capítulo, achou que era importante preservar a importância do homem e seu domínio sobre a mulher, deixando claro que esta era de alguma forma subordinada àquele” [7].

Cady Stanton resume a visão da mulher apresentada neste segundo relato bíblico da criação com as seguintes palavras: “Nele fica claro que a mulher foi criada depois do homem (como um “afterthought“), do homem, e para o homem, um ser inferior, criado para servi-lo e a ele sujeito” (TWB, Introdução).

Eis como Cady Stanton resume como a Bíblia enxerga a mulher:

“A Bíblia ensina que a mulher trouxe o pecado e a morte ao mundo, que ela precipitou a queda da raça, que ela foi trazida diante do tribunal dos céus, julgada, condenada e sentenciada. O casamento seria para ela uma condição de servidão, e a maternidade um período de dor e sofrimento. Em silêncio e sujeição ela deveria desempenhar o papel de um ser dependente da generosidade do homem para satisfazer as suas necessidades materiais. Se desejasse alguma informação para satisfazer a uma necessidade do momento, deveria perguntar ao homem, na intimidade do lar. Esta é a posição da Bíblia sobre a mulher, em poucas palavras” (TWB, Introdução).

É evidente, como o tratamento do segundo relato da criação deixa claro, que Cady Stanton acreditava que a Bíblia havia sido escrita por homens, claramente não inspirados por Deus, que introduziram nela todos os seus preconceitos contra a mulher, preconceitos esses hostis à tese da igualdade de condição e de direitos entre o homem e a mulher. Ela reconhecia que na Bíblia, como nos escritos sagrados de outras religiões, há passagens em que se prega o amor, a caridade, a justiça, a liberdade, e a igualdade de toda a família humana. Mas também há nela, e neles, mesmo quando o teor do discurso é positivo, os elementos básicos que levaram à opressão e à escravização da mulher. Ela cita, por exemplo, Deuteronômio 2:34 e 3:6, que descreve, no seu entender, o “código militar” das tribos judaicas a ser aplicado em suas guerras contra as tribos vizinhas, código esse que lhes permite destruir todos os seres vivos, fazendo questão de acrescentar que até mesmo “mulheres e crianças”. Esse código “demonstra total desprezo para com todas as decências da vida e para com os direitos naturais das mulheres como pessoas. . . . Esse código contido no Pentateuco só pode ter emanado das mentes mais obscenas que uma época bárbara pode produzir” [8].

A forma que Cady Stanton encontrou para combater a cultura ocidental, criada em cima de princípios judaico-cristãos, que denigria e oprimia a mulher, foi atacar a autoridade da Bíblia. Ela frequentemente ligava a condição oprimida da mulher no presente à continuada influência e autoridade da Bíblia. “Há vários exemplos no Velho Testamento em que mulheres foram jogadas à multidão, como se joga um osso aos cachorros, para pacificar suas paixões; e as mulheres continuam a sofrer hoje essas lições de desprezo ensinadas por um livro tão reverenciado pelo povo” [9].

O Novo Testamento não se sai melhor do que o Velho, na opinião de Cady Stanton. É verdade que ela ressalva a posição pessoal de Jesus. Mas, fora ele, o Novo Testamento mantém a mesma visão acerca da mulher que é apresentada no Velho. Nas Epístolas Pastorais, por exemplo, a subordinação da mulher ao homem é ensinada com requintes de especificidade. Mesmo a história de Maria e José ela considera degradante. A tese do nascimento virginal de Jesus ela considera totalmente sem sentido. Se Jesus precisava ter um pai divino, por que não também uma mãe divina? [10]

Como disse, ela ressalva a posição pessoal de Jesus, “que nunca ensinou que a mulher fosse sujeita ao seu marido, nem que devesse ficar calada na igreja”. Jesus não ensinou que o homem devesse dominar a mulher – e nem que a mulher devesse dominar o homem. Para ele, o sexo da pessoa não significa nada para sua condição espiritual, nem circunscreve ou delimita a sua esfera de ação [11].

Cady Stevens chegou a propor que se produzisse uma versão da Bíblia, Velho e Novo Testamento, da qual fossem expurgadas as passagens que denegriam a mulher ou que pudessem servir para justificar sua opressão e a tese de sua obediência e subserviência ao homem [12].

Pode parecer, a julgar pelos trechos aqui citados e mencionados, que Cady Stanton não passava de mais uma herege ou ateia, como tantos que havia no século 19. Mas não, ela era, ainda que no plano não acadêmico e não profissional, uma defensora de várias teses da teologia liberal – se bem que combinadas como uma hermenêutica conservadora, calcada na interpretação literal das Escrituras. Mas mesmo sua hermenêutica conservadora serve, de certo modo, a um propósito liberal.

A essência da teologia liberal do século 19 está na tese de que é preciso acomodar, adaptar ou compatibilizar a herança cristã tradicional aos tempos modernos. A maioria dos liberais propunha que isso fosse feito reinterpretando a tradição, mesmo a herança bíblica, e isto significava deixar de lado a interpretação literal das Escrituras. Para Cady Stanton, porém, era importante manter a interpretação literal das Escrituras para mostrar que a tradição judaico-cristã foi responsável pela opressão da mulher, porque foi uma tradição cultivada e mantida por homens que não viam as mulheres como suas iguais, e que conseguiram anular o impacto positivo do primeiro relato da criação e do ensino não opressivo de Jesus. O que era preciso fazer, segundo ela, era, reconhecendo a responsabilidade dessa tradição para com a atual condição da mulher (oprimida, sem voz, sem participação), reeditar a Bíblia, reescrever a tradição numa linha igualitária, deixando de lado as passagens que refletissem uma linha diferente.

Thomas Jefferson, um século antes, já havia proposto algo semelhante. Ele produziu e editou o que hoje é chamado de A Bíblia de Jefferson (Jefferson’s Bible), uma versão bastante reduzida da Bíblia que apenas incluía os ensinamentos morais que ele julgava aceitáveis — quase todos no Novo Testamento e oriundos dos lábios de Jesus de Nazaré.

Um pouco depois de Cady Stanton ter escrito sua TWB, Adolf von Harnack, um dos mais conhecidos teólogos liberais, publicou, em 1899/1900, A Essência do Cristianismo (Das Wesen des Christentums), em que ele defendeu tese semelhante: a essência do Cristianismo estava nos ensinamentos morais atribuídos a Jesus. O resto era invenção da igreja, que pode ser dispensada (junto com a tradição judaica) pelo cristão de hoje.

É interessante constatar que questões éticas, discutidas em contextos religiosos e teológicos, estivessem tão envolvidas nas origens do feminismo moderno. Como Cady Stanton bem salientou, a questão do voto era importante, mas estava longe de ser a única, ou mesmo a mais importante.

NOTAS

[1] Compare-se Gary Dorrien, The Making of American Liberal Theology, vol. 1, “Imagining Progressive Religion (1805-1900)” (Westminster John Knox Press, Louisville, 2001), p.260.

[2] Vide, por exemplo, https://en.wikipedia.org/wiki/Elizabeth_Cady_Stanton e https://en.wikipedia.org/wiki/Susan_B._Anthony. A Amazon distribui gratuitamente, no formato e-book para os leitores Kindle, uma autobiografia de Cady Stanton, que tem o título de Eighty Years and More; Reminiscences 1815-1897 (http://www.amazon.com/Eighty-Years-More-Reminiscences-1815-1897-ebook/dp/B0082SJZH6/ref=sr_1_3?ie=UTF8&qid=1456216000&sr=8-3&keywords=Elizabeth+Cady+Stanton).

[3] Vide, e.g., https://en.wikipedia.org/wiki/The_Woman’s_Bible. A Amazon distribui esse livro gratuitamente no formato e-book para os leitores Kindle (http://www.amazon.com/Womans-Bible-Elizabeth-Cady-Stanton/dp/1453780971/). Daqui para frente vou me referir a esse livro como TWB.

[4] Dorrien, op.cit., pp.257-258.

[5] A causa feminista era entendida por Cady Stanton como sendo bem mais ampla do que a causa sufragista. Esta era a causa voltada para obter o direito de voto para as mulheres. A causa feminista visava comprovar a condição de opressão em que a mulher viveu durante toda a história e organizar a luta pela sua liberação.

[6] Confira-se Dorrien, op.cit., p.258.

[7] Confira-se também Dorrien, loc.cit..

[8] Dorrien, op.cit., pp.258-259.

[9] Confira-se Dorrien, op.cit., p.259.

[10] Dorrien, loc.cit..

[11] Dorrien, op.cit., pp.259-260.

[12] Dorrien, op.cit., p.260.

Em Salto, 23 de Fevereiro de 2016.

O “Aquém” e o “Além” da Comissão da Verdade: A Propósito do Livro de Eliézer Rizzo de Oliveira

Eliézer Rizzo de Oliveira, meu querido amigo e colega faz 53 anos, fez a gentileza de me enviar uma cópia de seu mais recente livro: Além da Anistia, Aquém da Verdade: O Percurso da Comissão Nacional da Verdade  (Editora Prismas, Curitiba, 2015, 347pp.). Não terminei de lê-lo ainda, mas li toda a parte inicial, a conclusão, e vários pedaços no meio, passando os olhos sobre tudo. Não posso deixar de fazer uma resenha, ainda que breve.

O título, para os leitores atentos, já descreve a principal tese do livro. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) cometeu dois pecados graves. De um lado, foi além de seu mandado, tentando constranger a nação a rever a Lei da Anistia e punir os culpados de crimes cometidos especialmente durante a Ditadura Militar. De outro lado, ficou aquém de seu mandado, só investigando os crimes de um dos dois lados em conflito durante a ditadura (os militares), optando por não investigar os crimes do outro lado (aqueles que pegaram em armas e recorreram ao terrorismo para supostamente combater a ditadura, ou seja, a esquerda mais radical).

Fazendo isso, e (erroneamente) atribuindo a essa esquerda mais radical o principal mérito pelo término da ditadura, a CNV omitiu o importante papel daqueles que realmente a combateram, mas sem recorrer à violência: os amantes da liberdade que reconhecem que ela, a liberdade, é fruto de um estado que respeita os direitos dos indivíduos. Foram esses, hoje raramente cultuados, que criaram as condições para o fim da ditadura. Não aqueles que hoje reivindicam esse mérito e que só desejavam substituir um tipo de ditadura, a “de direita”, alinhada com os Estados Unidos, por outro, quiçá pior, a “de esquerda”, comunista, alinhada com a União Soviética.

A CNV foi criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, pela Lei Nº 12.528, de 18 de Novembro de 2011. Seu artigo primeiro lhe fixa o escopo:

“Art. 1o. É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.” [Ênfase acrescentada].

(Vide www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12528.htm)

O art. 8o  do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que está no final da Constituição Federal afirma :

Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos”. [Ênfase acrescentada].

(Vide www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm – adctart8 e
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm).

A Constituição Federal foi promulgada em 5 de Outubro de 1988. Assim o período coberto pelo mandado da CNV foi de 18 de Setembro de 1946 até 5 de Outubro de 1988 – um período de um pouco mais de 42 anos. A CNV basicamente ignorou os primeiros dezoito anos desse período.

A finalidade e o escopo da CNV, portanto, foi definido como “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período” de 18 de Setembro de 1946 até 5 de Outubro de 1988.

Indicados os membros da CNV, mas antes mesmo de ser instalada a comissão, vários dos seus membros já manifestavam a opinião de que, contrário ao que especificava o seu mandado, ela deveria “examinar e esclarecer” apenas as violações de direitos humanos praticados por agentes do Governo – vale dizer, pelos militares. Como essa orientação foi seguida, uma vez instalada a comissão, por representar o ponto de vista da maioria de seus membros, está aqui o sentido em que o trabalho da CNV ficou “aquém” do seu mandado: não procurou “examinar e esclarecer” as violações de direitos humanos praticadas pelos que resistiram a mão armada a Ditadura de 1964 (como assinalei, crimes e violências anteriores a 1964 foram basicamente ignorados, independentemente de quem os tivesse cometido).

Ao longo dos trabalhos da CNV ficou evidente que vários dos seus membros desejavam ir além do mandado de “examinar e esclarecer”, pois propunham que fosse suspensa ou revista a Lei da Anistia para que os investigados pudessem ser indiciados e, em última instância, punidos. Essa orientação foi seguida, uma vez instalada a comissão, por representar o ponto de vista da maioria de seus membros. Está aqui, portanto, o sentido em que o trabalho da CNV foi “além” do seu mandado: ela buscou a suspensão ou revisão da Lei da Anistia e o indiciamento e eventual punição dos culpados de violações de direitos humanos.

São principalmente esses dois fatos que o livro de Eliézer Rizzo corajosamente denuncia. Como diz Manoel Domingues Neto na Apresentação, este é “um livro escrito por um homem desassombrado e preparado”, “que assume posição com todas as letras, sem tremelicar” (p.23).

Na verdade, Eliézer deixa sua posição cristalinamente clara já no Prefácio. Ali se esclarece que, em seu percurso, de 2012 a 2014, a CNV conscientemente optou por dividir em dois o enfoque da violência política, “como se a investigação das ações repressivas do regime militar implicasse deixar de lado a pesquisa da luta armada das organizações de esquerda” (p.13 – ênfases acrescentadas; infelizmente as páginas 1 a 22 do livro não estão numeradas).

Eliézer esclarece seus compromissos morais que operam como pressupostos do livro que escreve (p.13):

  1. Compromisso com a democracia, o respeito aos direitos humanos e a realização da política com meios pacíficos;
  2. O repúdio à tortura e aos assassinatos políticos, independentemente das motivações e filiações ideológicas de torturadores e assassinos.

Como se diz, curto e grosso.

Com base nesses compromissos e pressupostos, Eliézer lamenta que “figuras magnas da resistência democrática ao regime militar sejam hoje pouco celebradas pela sociedade de consumo e pelo sistema político, enquanto ícones da luta armada figuram equivocadamente como construtores da democracia” (pp.13-14).

A CNV foi denominada “Comissão da Verdade”. A maior parte das vezes, especialmente em se tratando de assuntos complexos e controvertidos, a verdade não é evidente e manifesta, não vem com rótulo afixado (como bem disse Karl Popper em vários de seus livros e artigos, permito-me acrescentar a referência). A verdade precisa ser buscada, pesquisada, construída de forma cuidadosa, metódica e rigorosa. Em se tratando de questões políticas, especialmente, é forçoso reconhecer que (nas palavras agora novamente de Eliézer) “os sujeitos inserem-se de maneira diferente na sociedade, seus interesses e perspectivas não são os mesmos” (p.14). Por isso, na busca da verdade, se essa busca é sincera e honesta, não é admissível optar por não investigar um lado da questão. Só se chegará à verdade (se é que se vai chegar lá) através de um cotejo aberto, franco, e honesto das diferentes narrativas, dos diferentes pontos de vista, dos diversos e conflitantes interesses. Caso contrário só chegará a uma “meia verdade”, uma “verdade parcial”, não à verdade que se procurava.

Como diz Eliézer, “diante de um processo de magnitude societária, quanto mais restrito o âmbito de investigação da verdade, menos verdade se encontrará” (p.14). Quem tem o poder de decidir o que vai ser investigado acaba optando por privilegiar e realçar o seu ponto de vista, vale dizer, a vista do seu ponto, a sua perspectiva, os seus interesses. Os que não têm o poder de decidir o que vai ser investigado têm a sua voz, os seus pontos de vista, a vista do seu ponto, a sua perspectiva, os seus interesses, silenciados.

Diz Eliézer:

“Resulta que, ao escolher as vítimas ‘de um lado’ a CNV decretou ao esquecimento as vítimas ‘do outro lado’, como fossem um nada. Ou seja, mais de cem vítimas das organizações revolucionárias comunistas não mereceram a atenção da CNV, suas verdades não foram reveladas.” (p.15)

O objetivo real da CNV tinha quatro focos – todos eles nocivos ao regime democrático:

  1. Investigar apenas a “violência estatal”, omitindo a investigação da “violência revolucionária de orientação marxista” (p.15);
  2. Refundar o Estado de Direito”, no pressuposto de que a “refundação” da década de 80, que beneficiou terroristas e militares, não punindo nem uns nem outros, foi inválida, porque os “agentes do governo” deveriam ter sido punidos (p.15);
  3. Decretar o Fim da Anistia (p.15);
  4. Implantar uma Justiça de Transição para punir aqueles que fossem considerados culpados (p.15).

Foi isso que aconteceu com a CNV: “A CNV serviu ao poder que a criou” (p.14). Ela se sobrepôs à lei que a criou, “de modo a substituir a investigação ampla pela investigação restrita” (p.15). Recorreu a argumentos pífios para fazer isso, alegando que não haveria tempo suficiente para investigar os dois lados, ou invocando precedentes de outros países em que comissões semelhantes só investigaram as ações do governo e de seus agentes – ou, então, pretendendo que “quem pegou em armas contra a ditadura [já] foi punido” (p.15) – como se não tivéssemos hoje vários desses nos mais altos escalões do atual governo, embora outros atualmente na cadeia, mas não pelos crimes supostamente políticos de então, mas, sim, por crimes muito menos nobres, como roubar o povo para se perpetuar no poder. (Na última frase, depois do travessão, falo por mim).

Note-se bem: “A CNV serviu ao poder que a criou” (p.14). Alinharam-se com ela, dando-lhe suporte político, “diversos atores sociais e organismos públicos com o propósito de construir uma Frente Popular em torno do projeto de poder e de plataformas sociais e políticas do Partido dos Trabalhadores. O Fim da Anistia (ou a mudança de sua aplicação) e o aprofundamento da Justiça de Transição (punição dos repressores) são as colunas de sustentação de tal frente política” (pp.17-18). [Ênfase acrescentada].

Contra isso, Eliézer propõe essencialmente o seguinte (a proposta sendo detalhada na Conclusão):

  • A manutenção da Anistia sem nenhum titubeio, “em reconhecimento à sua importância para a construção do nosso regime democrático” (pp.18;311-315);
  • A construção de toda a verdade histórica e a abertura de todos os arquivos públicos e privados, o que exigirá uma [nova] comissão para trazer à luz os delitos políticos que a CNV deixou de lado” (pp.18,311-315);
  • Um sério esforço político de promoção da “reconciliação nacional”, objetivo que estava entre as finalidades da CNV, mas que esta lastimavelmente negligenciou, ao tomar partido de um dos lados da questão, contra o outro (pp.311-315).

Gostaria de publicamente dar meus parabéns ao Eliézer por seu livro. Já era tempo de que alguém, bem informado e destemido (“dessassombrado”, nas palavras do Apresentador), colocasse os pingos nos i’s acerca da CNV. O Eliézer os colocou: nos i’s e nos j’s. O Brasil lhe fica devedor pelo que você corajosamente fez.

Trata-se de um livro que merece ser lido – mas é mais do que isso: que precisa ser lido por tantos quantos estão a combater o bom combate de não permitir que o Brasil volte a ser uma ditadura – só que, desta vez, uma ditadura vermelha, comunista, bolivariana – conduzida, além do mais, por ladrões e incompetentes. Deus permita que ela não venha, porque, se vier, será bem pior do que a de 1964.

Em Salto, 18 de Fevereiro de 2016

Brasil, Israel e Clóvis Rossi

Acho um absurdo a posição de Clóvis Rossi (e, mais ainda, a do governo brasileiro) acerca da indicação de Dani Dayan para ser embaixador de Israel no Brasil.

Rossi comenta a notícia que teria se espalhado pela mídia israelense de que Israel teria resolvido retirar a indicação, feita em Agosto do ano passado, porque o Brasil não a acolheu e não a recusou: simplesmente não se manifestou sobre ela: engavetou-a, por assim dizer.

Acho, em primeiro lugar, uma total deselegância a atitude da diplomacia brasileira, liderada por essa incompetente chamada Dilma Rousseff, de fingir-se de morta, nem aceitando nem recusando a indicação — supostamente porque o nome do indicado não teria sido submetido ao governo brasileiro antes de Israel torna-lo público. A razão, o fato é sabido, não é essa. Ela está no fato de que Dayan não é favorável à posição brasileira em relação ao conflito Israel – Palestina.

Como se pode constatar no artigo transcrito abaixo, Clóvis Rossi, além de manifestar concordância com a grosseira posição brasileira, aduz outras supostas razões para a recusa de Dayan, a saber:

a) Dayan teria ocupado a presidência do chamado Conselho Yesha, responsável pelos assentamentos israelenses na Cisjordânia de 2007 a 2013, assentamentos que, segundo Rossi, são “considerados ilegais pela comunidade internacional”;

b) Não só isso, Dayan vive em um desses assentamentos;

c) Embora Israel possa contestar a ilegalidade desses assentamentos [na verdade, não só pode, como o faz], “O Brasil é, felizmente, obrigado a seguir as regras estabelecidas pelas Nações Unidas”;

d) Dayan é problemático até para o próprio Estado de Israel, porque é contrário à criação de dois Estados (Israel e Palestina), “outra determinação das Nações Unidas” – e que seria, segundo Rossi, “a posição oficialmente adotada por Israel”.

Ora, Clóvis Rossi tergiversa.

No item “a” ele afirma que os assentamentos são considerados ilegais “pela comunidade internacional”; no item “c” ele diz que o Brasil “é … obrigado a seguir as regras estabelecidas pelas Nações Unidas”, dando a entender que a ilegalidade na opinião da “comunidade internacional” teria também sido inequivocamente aprovada, como tal e na forma de regra, mandatória para todos os países membros, pelas Nações Unidas.

Ora, ainda que fosse assim, ao aceitar Dayan como embaixador de Israel, o Brasil não estaria violando nenhum tratado internacional ou nenhuma regra da ONU. Quando muito Israel poderia estar – e Israel, evidentemente, nega que esteja. O embaixador de um país no outro precisa representar as normas e as posições do país que o indicou, não as do país em que vai exercer seu posto. Imaginaram se o resto do mundo civilizado e democrático resolver se recusar a aceitar indicação de embaixadores brasileiros porque eles são petistas e o PT apoia ditaduras descaradas mundo afora, a começar com a cubana?

Se Israel oficialmente adota a posição dos “dois Estados”, mas convive bem com um embaixador seu que defende só um Estado, o problema é de Israel, não do Brasil, muito menos do Clóvis Rossi, que, a despeito de toda sua experiência, de vez em quando derrapa feio na defesa (ainda que indireta) de uma ideologia da qual comunga.

Espero que Israel não deixe barato e não retire a indicação de Dayan. O Brasil tem muito mais a perder do que Israel se faltar um embaixador israelense aqui no Brasil. Espero mais: que Israel chame o embaixador do Brasil em Israel para que explique a posição brasileira, e, se não concordar com ela, que expulse o embaixador brasileiro de Tel Aviv. Olho por olho, dente por dente. É a lei do Velho Testamento.

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Folha de S. Paulo
10 de Janeiro de 2016

Um Embaixador Inconveniente

Clóvis Rossi

Sábia decisão a do governo de Israel de retirar a indicação de Dani Dayan para ser o novo embaixador no Brasil, conforme noticia a mídia local.

Não é, em todo o caso, uma decisão determinada pela convicção de que Dayan não era o nome ideal. Foi consequência da recusa do governo brasileiro de dar o sinal verde (“agrément”, no jargão diplomático) ao indicado.

Até o fim do mês passado, Israel ainda confiava na aprovação de Dayan, apesar do silêncio mantido pelo Itamaraty pelos longos quatro meses decorridos desde a indicação, em agosto.

O governo brasileiro não recusou a indicação, porque seria grosseiro demais. Simplesmente silenciou, e manteria o silêncio por tempo indeterminado.

Israel lançou mão de intermediários para avaliar a situação e de um deles recebeu como resposta a frase “o sinal está dado”. Ou seja, o silêncio por tão longo tempo indicava claramente que Dayan não seria aprovado.

O Itamaraty nunca deu informação oficial sobre o andamento do caso, mas uma carta divulgada na quinta-feira (7) por 40 embaixadores aposentados, todos eles pesos-pesados quando na ativa e ainda influentes na casa, explicitava os argumentos que estão na base da rejeição pelo Brasil do nome de Dayan, conforme a Folha já mostrou: primeiro, o fato de Israel “ter anunciado publicamente o nome de quem pretendia indicar como novo embaixador de seu país no Brasil antes de submetê-lo, como é norma, a nosso governo”.

A esse problema de forma soma-se o de conteúdo, representado pelo fato de que Dayan “ocupou entre 2007 e 2013 a presidência do Conselho Yesha, responsável pelos assentamentos na Cisjordânia considerados ilegais pela comunidade internacional”.

Dayan, na prática, é uma ilegalidade ambulante: não apenas foi representante dos assentamentos que a comunidade internacional considera ilegais como vive em um deles.

Israel pode contestar a ilegalidade de suas colônias em território palestino, mas o Brasil é, felizmente, obrigado a seguir as regras estabelecidas pelas Nações Unidas.

Ou é a legalidade internacional ou é a lei do mais forte. Os judeus já sofreram demais com a imposição dos fortes de uma dada época para agora aceitarem –ou, pior, adotarem sobre os palestinos– idêntico procedimento.

Dayan, na verdade, é problemático até para o próprio Estado de Israel: ele é contrário à criação de dois Estados (Israel e Palestina), outra determinação das Nações Unidas.

Quer que as duas comunidades convivam, lado a lado, no mesmo território, sem barreiras e sem discriminação. A tese é absolutamente impraticável, por uma pilha de motivos que não caberiam neste espaço.

Mas esse nem é o principal argumento contra Dayan: a tese dos dois Estados é a posição oficialmente adotada por Israel.

Como um embaixador pode ser eficiente na defesa dos interesses de seu país, o que é o cerne de sua missão, se discorda de um ponto-chave da posição oficial?

A retirada do nome de Dayan, se e quando confirmada, elimina um ruído desnecessário na relação bilateral.

http://www1/folha.uol.com.br/colunas/clovisrossi/2016/01/1727867-um-embaixador-inconveniente.shtml

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Em Salto, 10 de Janeiro de 2016.

Whatsapp, VPN e Desobediência Civil

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….

O Brasil é um país bizarro. Acabei de ler um post no Facebook de alguém (que é sensato e meu amigo) dizendo que aqueles que recorreram ao uso de VPN (Virtual Private Networks) para usar o Whatsapp durante as horas em que o aplicativo estava fora do ar por determinação judicial estavam desobedecendo a uma ordem judicial e, por isso, praticando desobediência civil. Dizia ainda o autor que essas pessoas perdiam a autoridade moral para criticar os corruptos no governo porque estariam praticando algo equivalente numa escala menor.

Acredito que haja um total mal-entendido nessa observação.

A ordem judicial, certa ou errada, para tirar o Whatapp do ar foi dada às operadoras de telefonia brasileiras como forma de punição (absurda) ao Whatsapp que teria desobedecido a uma determinação judicial.

As operadoras, objeto da ordem judicial, a obedeceram integralmente, tanto que eu saiba. Ponto final. Ordem dada, ordem cumprida pelos destinatários da ordem – até que a ordem foi suspensa por autoridade superior.

O povo brasileiro não recebeu ordem nenhuma judicial proibindo-o de usar o Whatsapp se, por exemplo, tivesse acesso a um endereço IP fora do Brasil. Eu sempre tive esse acesso (meus domínios são hospedados todos fora do Brasil, tenho VPN [embutido no meu antivírus}, etc.) e a ordem não me disse respeito — até porque não fiz absolutamente nada de errado, não soneguei informações para nenhum processo que corre em segredo, etc. Por que devo farisaicamente ir além do que a ordem judicial determinou e me privar do Whatsapp?

Vamos botar a cabeça no lugar, gente! Se algum usuário do Metrô (mal comparando) fizer alguma coisa errada e, em consequência, algum juiz doido o proibir de circular por dois dias, serei eu obrigado a ficar em casa por causa disso, impedido de usar outros meios para me locomover? A ordem judicial terá sido para o Metrô, não para a população.

A coisa é tão óbvia e evidente que tenho até vergonha de assinalar o fato. Não se trata de desobediência civil num caso assim. Desobediência civil é você receber uma ordem e intencional e conscientemente descumpri-la com base no que você considera um dever moral ou um imperativo de consciência. Há leis e há ordens judiciais que são imorais, apesar de perfeitamente legais. E, nesse caso, se justifica a desobediência civil. Defendo esse direito, que tem uma nobilíssima tradição, desde Thoreau, pelo menos, no caso de ordens que violam minha consciência. E me disponho a sofrer as consequências. Gandhi fez isso. Esse é um debate centenário. Mas aqui, no caso do Whatsapp, não é disso que se trata.

A bizarrice do país é que há corruptos e há aqueles que pretendem ser mais santos do que os santos. O que falta é bom senso.

Em São Paulo, 18 de Dezembro de 2015.

Uma Cidadezinha Típica dos EUA

Minha filha mais velha mora, há muito tempo, numa cidadezinha pequena nos Estados Unidos. Nasceu nos EUA e, exceto por um breve período, sempre morou lá.

A cidade em que mora tem, segundo o censo de 2010, 7.104 habitantes. A estimativa para 2012 era de 7.041, segundo a Wikipedia – população decrescente, portanto. Em 1874, quando se tornou uma cidadezinha (village), que recebeu uma estação de trem, tinha 660 habitantes. Transformou-se em município (city) em 1980, quando sua população ultrapassou a casa dos 5.000 habitantes. A área do município é de 11 km2 – e inclui um belo lago.

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Como município, tem seu prefeito, sua Câmara Municipal, seu Distrito Escolar, sua Força Policial Municipal, seu Corpo de Bombeiros Voluntário, etc.

O município não tem escolas particulares. As escolas, ali, são todas públicas. O Distrito Escolar tem três escolas: uma escola elementar (mais ou menos o nosso Fundamental I), uma escola intermediária (mais ou menos o nosso Fundamental II), e uma escola “elevada” (High School) mais ou menos equivalente à nossa escola média. Cada uma com seu próprio prédio, no seu próprio terreno, dentro do município, mas razoavelmente distante uma da outra. Do jeitinho que o Alckmin quer aqui no Estado de São Paulo. O serviço de Transporte Escolar funciona como em toda cidade americana, com os ônibus amarelos mais ou menos padronizados. Ninguém precisa pagar perua ou micro-ônibus para que seus filhos possam chegar à escola. Ficam nela das 7h30 da manhã até perto das 15h30 ou 16h.

Os alunos comem na escola – levam lanche de casa ou compram almoço no refeitório da escola (preço acessível). Alegar que não tem como trazer o lanche de casa ou compra-lo na escola é motivo de vergonha para os alunos.

As casas, nessa cidadezinha, não têm muro ou cerca – mas todo mundo sabe onde termina seu terreno e começa o do vizinho. Raramente há disputas territoriais. O pessoal sai de casa e deixa a porta só encostada. O serviço dos correios ou de “couriers” chega com pacotes e os deixa na varanda da porta da frente, à vista de qualquer um que passa na rua. Ninguém mexe.

Na verdade, a cidade é extremamente tranquila: crimes, em geral, quase nunca acontecem. Todo mundo conhece seus vizinhos e, portanto, identifica facilmente um estranho andando pelas ruas da cidade. Se ele tem cara suspeita, avisa-se a Polícia que vem quase imediatamente e faz uma checagem no elemento estranho, perguntando se mora na cidade, se está visitando alguém da cidade, ou, então, o que é que está fazendo por ali.

Todo habitante da cidade conhece os policiais – a maior parte deles pelo nome – e sabe onde moram, com quem são casados, quais os seus filhos. Se são chamados a intervir em alguma ocorrência (uma festa meio barulhenta que adentrou a hora do silêncio, agem com delicadeza e são tratados com o respeito que merecem.

Na realidade, todo mundo conhece o prefeito e os vereadores. Reclamações contra os serviços públicos muitas vezes são feitas informalmente, parando o prefeito ou os vereadores na rua e batendo um papo rápido e objetivo com eles.

A população é conservadora e liberal (no sentido clássico), vota no partido Republicano, e detesta Obama e os Clintons. É favorável ao combate sério ao terrorismo. A população é predominantemente anglo-saxã (97,5%), isto é, branca. Os 2,5% restantes se dividem mais ou menos equivalentemente entre africanos, asiáticos e os que chamam de latinos (ou, por vezes, erroneamente, hispânicos). Brasileiros, nativos ou descendentes (como a minha filha e as minhas netas), são, para eles, latinos, não são brancos – ainda que tenham cabelos loiros e olhos azuis. Isso inicialmente causa alguma espécie para os brasileiros que, como eu, se acham latinos e brancos, mas. . .  A referência a essas categorias geralmente é hifenizada com “americanos” (africanos-americanos, asiáticos-americanos, latinos-americanos), porque a maioria dos integrantes de cada uma dessas categorias já é imigrante de segunda geração, nascido, portanto, em solo americano. As categorias, hoje em dia, são mais geográficas (indicando de onde seus antepassados vieram) do que propriamente raciais. Os brancos geralmente dispensam a hifenização, até porque não são exclusivamente anglo-saxões, sendo mais europeus ocidentais. Assim, um espanhol da Espanha, da mesma forma que um francês e um italiano, provavelmente passe por branco e não por latino. Conflitos propriamente raciais praticamente inexistem hoje em dia nessas pequenas cidades.

Cabem quase quinze cidadezinhas dessas dentro de Salto – que, para nós, aqui no Brasil, é uma cidadezinha.

Talvez parte da diferença na qualidade de vida da maior parte de nossas cidades  e da maior parte das cidades deles está aqui no que eu disse. Cabem cerca de 1.600 cidadezinhas dessas dentro do município de São Paulo.

Em Salto, 10 de Dezembro de 2015

Mini-Proposta de Reforma Política

Com toda a discussão acerca da corrupção que grassa no país, do mar de lama (o literal e o simbólico), e do impeachment da assim chamada Presidente, a discussão da Reforma Política ficou sem espaço.

A propósito de um artigo de Washington Novaes no Estadão de hoje de 27/11/2015, com o título de “Polêmicas Não Bastam, Soluções São Urgentes” (http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,polemicas-nao-bastam–solucoes-sao-urgentes,10000003110), fiz a seguinte “Mini-Proposta” de Reforma Política para o Legislativo em dois comentários no Facebook:

I) Redução no número de Deputados Federais e Senadores a menos da metade dos atuais, não ultrapassando nunca o número total de UM Deputado Federal por cada um milhão de habitantes do país.

II) A proporção dos Deputados pelos Estados atuais seria feita da seguinte maneira:

A) Os Estados atuais seriam divididos em “distritos internos” de basicamente um milhão de habitantes;

B) Cada Estado teria uma cota proporcional de um Deputado Federal para cada umm milhão de habitantes do estado, eleito distritalmente, sem os atuais “pisos” e “tetos” (vide adiante).

C) Cada Estado teria dois Senadores.

III) Quanto à duração do mandato, ele seria de 4 anos, cada cidadão podendo exercer no máximo dois mandatos legislativos durante sua vida, sucessivos ou não, tanto no caso dos Deputados Federais como no dos Senadores.

É isso. JUSTIFICO.

Essa proposta faria com que tivéssemos, hoje, cerca de 200 DEPUTADOS FEDERAIS, em lugar dos atuais 513 – uma redução sensível, para menos da metade. Uma economia fantástica. Aumentaria um pouquinho a taxa de desemprego, mas…

Além disso, os Deputados Federais estariam distribuídos de forma muito mais justa do que a atual pelos Estados — sem os “pisos” e os “tetos” atuais que hoje limitam artificialmente o número de Deputados Federais do Estado de São Paulo (e aumentam artificialmente os do Estado de Roraima.

No tocante ao sistema de proporcionalidade atual na Câmara Federal, cito o artigo “Câmara dos Deputados do Brasil”, na Wikipedia em Português (https://pt.wikipedia.org/wiki/Câmara_dos_Deputados_do_Brasil):

“Na Câmara Federal o número de cadeiras por estado é distribuído conforme o número de habitantes por Estado, de acordo com a medição oficial feita pelo IBGE, através do Censo. Entretanto, essa proporcionalidade é limitada a um mínimo de oito deputados e a um máximo de setenta deputados por estado. Essa semi-proporcionalidade faz com que Roraima seja representado por um deputado para cada 51 mil habitantes e, no outro extremo, São Paulo, seja representado por um deputado para cada 585 mil habitantes.”

No caso do Senado, teríamos 54 Senadores, em lugar dos 81 atuais (graças à inovação de Geisel em 1977). É o Senado Federal, não a Câmara, que, segundo a tradição, deve ter participação igualitária dos Estados, irrespectivamente de sua população. São Paulo e Roraima teriam o mesmo número de Senadores. E teriam  a mesma proporção, em relação à sua população, no número de Deputados Federais.

No total: teríamos um pouco mais de 255 congressistas (número que, comparado com cerca de 600, hoje, significa uma redução sensível. Além do mais, com a tendência à redução da população do país, o número de congressistas tenderia a ser reduzido ao longo do tempo — havendo ajustes periódicos, a cada censo decenal.

Acho desnecessário justificar a redução na duração do mandato dos Senadores e a proibição de mais de uma reeleição.

Eduardo Chaves, em Salto, em 28 de Novembro de 2015

Meu Credo Liberal

[Como pouca gente visita as páginas fixas do blog (links debaixo do título), resolvi republicar a página que contém “Meu Credo Liberal”. EC]

Sou defensor radical da liberdade, e, portanto, inimigo declarado de todas as formas de liberticídio.

I. Convicções Básicas:

01. Defendo o direito de cada um pensar livremente, de escolher suas opiniões e seus pontos de vista, suas crenças e seus valores, e de os abandonar, sempre que achar que deve, e espero que os abandone, quando neles achar falhas ou quando encontrar alternativas mais adequadas à sua maneira de ver o mundo e a vida.

02. Defendo o direito de cada um agir livremente, de buscar a felicidade, como ele a enxerga, e, portanto, o direito de viver sua vida como bem entende, desde que não cause dano à pessoa e aos bens dos outros e respeite, nos outros, igual direito.

03. Por isso, condeno não só os que tentam abertamente impedir as pessoas de pensar e de agir dentro dos seus direitos, e, portanto, de decidir, escolher e buscar, livremente, por si próprias, a vida que querem e pretendem viver, como também, e especialmente, os que tentam, com sutilezas e dissimulações, manipular a mente alheia, em especial a das crianças, alegando agir no interesse dos manipulados.

04. Assim, condeno especialmente, e sem reservas, a doutrinação e o condicionamento, em todas as suas formas.

05. Defendo, enfaticamente, uma educação aberta, liberal (até mesmo libertária) e democrática, mesmo em casa, em que as crianças têm pleno direito de pensar por si próprias e, assim que forem capazes de assumir responsabilidade por suas ações, de agir como houverem por bem.

II. Filosofia de Vida  

01. Não me parece que a vida humana tenha um sentido independente de nossos sonhos, objetivos, e desejos.

02. Estou convicto de que a “programação” genético-biológica do ser humano é razoavelmente aberta, permitindo que construamos a nossa vida em função de nossos sonhos, objetivos, e desejos.

03. Assim, damos sentido à nossa vida quando definimos uma visão coerente daquilo que queremos nos tornar ao longo do tempo que nos é dado viver e lutamos para transformar nossos sonhos em realidade, para tanto tendo permanente motivação e buscando desenvolver as competências necessárias para alcançar sucesso nesse projeto de vida.

04. Felizmente, vivemos, em média, o suficiente para rever nosso projeto de vida mais de uma vez, fazer correções de rumo, e, assim, nos reinventar (algo ao qual devemos estar sempre abertos).

05. A pré-condição individual para essa filosofia de vida é a autonomia e a pré-condição política é a liberdade: por isso, sou radicalmente liberal, no velho sentido do termo (liberdade negativa, laissez faire, estado mínimo construído em cima do reconhecimento de direitos individuais invioláveis).

III. Interesses 

01. Gosto muito do que faço, mas gostaria de poder fazer várias outras coisas também – que não faço porque o tempo é limitado: o tempo de uma dia e o tempo de uma vida.

02. Primariamente, o que faço é refletir sobre a vida e o mundo, compartilhar o que pensei através de artigos, crônicas, ensaios, e outros trabalhos escritos, e discutir com os outros as críticas que fazem ao que escrevi.

03. Secundariamente, compartilho minhas reflexões através de aulas, palestras, conferências, seminários, oficinas, etc.

04. Não creio que tenha talento para a ficção e a poesia, embora nunca tivesse tentado seriamente fazer essas coisas.

05. Se pudesse optar por fazer alguma outra coisa, minhas três primeiras escolhas seriam na área artística: a) ser diretor de cinema; b) ser regente de orquestra; c) ser músico (piano, ou violão, ou violino).

IV. Estilo de Vida      

01. Gosto de sossego e tranqüilidade, não gosto de grandes ajuntamentos nem de locais onde muita gente fala ao mesmo tempo e muito alto.

02. Gosto de ler, ouvir música, ver filmes, e conversar com pessoas inteligentes e interessantes.

03. Gosto de andar sem destino pré-determinado, explorando o local em que me encontro, cidade ou campo, e de viajar, sem planos, agendas e cronogramas muito rígidos – e sem malas muito grandes e pesadas.

04. Embora nunca tenha feito diários de viagens (ou de qualquer outra coisa) até o surgimento dos blogs, hoje sou fã incondicional de blogs e, portanto, registro regularmente o que penso e faço em diversos blogs, que eu levo extremamente a sério.

05. Embora precise dormir, como todo mundo, acho as horas dormidas um enorme desperdício de tempo, e adoraria se alguém inventasse uma pílula que restaurasse as energias de nosso corpo e de nossa mente, sem que precisássemos dormir.

V. Hábitos     

01. Minha comida salgada favorita é arroz, feijão e carne moída, tudo misturado um com o outro e com farinha de mandioca, e meu doce favorito é goiabada cascão com queijo de Minas meia-cura.

02. Em casa, sempre ando descalço, com um shorts e uma camiseta confortáveis e, de preferência, bem surrados.

03. Tenho dificuldade em dar ou até mesmo emprestar as minhas coisas, mesmo quando não as uso mais ou estou razoavelmente certo de que nunca mais precisarei delas.

04. Das coisas materiais que possuo, meus livros, meus discos (CDs ou discos de vinil), e meus filmes (Blu-rays, DVDs ou vídeos-cassete) são as mais importantes, roupas e sapatos sendo, talvez, as menos importantes (embora nem deles goste de me desfazer).

05. Sou, na superfície, bastante desorganizado com minhas coisas, mas, num segundo plano, tenho princípios de organização que funcionam bastante bem para mim.

VI. Valores    

01. Sou caseiro: não gosto de sair de casa meramente por sair, em geral me sentindo extremamente bem nos lugares em que vivo.

02. Vivo relativamente bem em solidão e, quando não estou sozinho, com o conviver silencioso: no sou um falante compulsivo.

03. Apesar disso, gosto muito de estar junto das pessoas a quem amo ou particularmente admiro e derivo prazer e satisfação de minha interação com elas.

04. Mas não suporto gente que, usando a alegação de amizade, não se manca e acha que tem o direito de ficar se metendo na vida dos amigos…

05. Sou bastante tolerante, lidando bem com diferenças em idéias e estilos de vida, mas detesto a intolerância, o fanatismo, e, naturalmente, a burrice… 

VII. Como eu vejo o que eu faço hoje       

Concordo com Herbert Spencer (1820-1903), que disse:

“O grande objetivo da educação não é conhecimento, mas ação”

O que eu faço, em termos gerais, é:

No presente, repensar a educação, no curto prazo reinventar a escola para que seja verdadeiramente inovadora, no médio e longo prazo, construir uma sociedade em que se aprende anywhat, anywhy, anyfor, anywhen, anywhere, anyhow…

Isso é necessário por causa das mudanças fundamentais que ocorreram, nos últimos 65 anos, no contexto em que vivemos e nos educamos.

1. Repensar a educação envolve principalmente:

  • Listar e integrar as mudanças no contexto de nossa vida
  • Mostrar por que essas mudanças nos forçam a repensar a educação e a reinventar a escola
  • Indicar a direção em que a educação e a aprendizagem devem ser reconceitualizadas

2. Reinventar a escola para que seja verdadeiramente inovadora envolve:

  • Propor nova visão de currículo, metodologia, e avaliação, e formas de implementa-los
  • Redefinir o papel e a forma de preparação dos profissionais que vão implementar essa visão
  • Identificar / criar materiais, recursos e ferramentas

3. Construir uma sociedade em que se aprende anywhat, anywhy, anyfor, anywhen, anywhere, anyhow… envolve:

  • Abandonar totalmente os paradigmas educacionais que nos trouxeram até aqui;
  • Caracterizar a educação como desenvolvimento humano centrado na criança e sua aprendizagem;
  • Enfatizar a necessidade de respeitar as diferenças e os interesses individuais e de uma educação personalizada;
  • Privilegiar todas as interações sociais como ambientes potenciais e naturais de aprendizagem;
  • Estender ao máximo as interações sociais através da tecnologia, focando o seu potencial para a aprendizagem ativa, interativa, comunicativa, colaborativa, significativa.

Revisto e republicado em Salto, 12 de Outubro de 2015

Rubem Alves: “Confissões de um Protestante Obstinado”

[Uma consequência boa de ser um relicário e arquivista compulsivo é encontrar coisas que a gente nem se lembrava de que tinha. Procurando alguns escritos meus hoje cedo encontrei um depoimento do Rubem Alves, com o título acima, transcrito na revista Tempo e Presença, Publicação Mensal do CEDI, número 169, de Julho de 1981. Vai fazer 35 anos, daqui alguns meses. “CEDI” queria dizer Centro Ecumênico de Documentação e Informação. Era dirigido, à época, pelo Rev. Domício Pereira de Matos, ex-colega de turma de meu pai no Seminário, e meu amigo, e, até certo ponto, defensor e protetor. Faziam parte do Conselho Editorial várias pessoas valorosas: Carlos Rodrigues Brandão (colega meu e do Rubem na UNICAMP), Jether Pereira Ramalho, Zwinglio Mota Dias. Não creio que nenhum desses, nem seus eventuais sucedâneos, irá protestar por eu republicar esse depoimento abaixo. Dei uma busca na Internet e não encontrei nenhuma referência a ele. É uma pena – que me disponho a reparar, gastando alguns preciosos minutos de minha vida, que já se encaminha para as voltas finais, para digita-lo. Faço-o em memória do Rubem e porque, em última instância, sou um protestante assim mais ou menos como ele diz que era. “Sou porque fui”, diz ele. Gosto dessa frase. Já a citei muitas vezes. Dedico esta transcrição do depoimento do Rubem ao meu amigo e irmão Elizeu Rodrigues Cremm. Quando até eu duvidava que eu fosse ainda um protestante, o Elizeu (usando as palavras do Rubem) “me confirmou, ouviu-me, deu-me as mãos, o pão e o vinho…” Sou-lhe muito grato, Elizeu. (Eduardo Chaves).]

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“. . .  o vento sopra onde quer  . . .” (Jo 3.8)

Memórias não podem ser esquecidas. O passado, uma vez vivido, entra em nosso sangue, molda o nosso corpo, escolhe nossas palavras. É inútil renega-lo. As cicatrizes e os sorrisos permanecem. Os olhos dos que sofreram e amaram serão, para sempre, diferentes de todos os outros. Resta-nos fazer as pazes com aquilo que já fomos, reconhecendo que, de um jeito ou de outro, aquilo que já fomos continua vivo em nós, seja sob a forma de demônios que queremos exorcizar e esquecer, sem sucesso, seja sob a forma de memórias que preservamos com saudade e nos fazem sorrir com esperança.

Digo isto como prelúdio a uma confissão: sou protestante. Sou porque fui. Mesmo quando me rebelo e denuncio. Minha estória não me deixa outra alternativa. Sou o que sou em meio às marcas de um passado. Mesmo que eu não quisesse, este passado continuaria a dormir comigo, assombrando-me, às vezes, com pesadelos e fúria, às vezes, fazendo-me sonhar com coisas ternas e verdadeiras.

Sou protestante. Hoje, muito diferente do que fui. Não há retornos. Tão diferente que muitos me contestarão, recusando-me cidadania no mundo da Reforma. Alguns me denunciarão como espião ou traidor. Outros permitirão minha presença, mas exigirão o meu silêncio. O que me faz duvidar de mim mesmo e suspeitar, quem sabe, que eu seja de fato um apóstata. Mas aí protestantes de outros lugares me confirmam, ouvindo-me, dando-me as mãos, o pão e o vinho…

Sou protestante. Perderão o seu tempo aqueles que tentarem descobrir as raízes de minha fé em catecismos ou teólogos. O amor e a dor vêm primeiro. É só muito mais tarde que a gente pensa a fim de entender o sofrido e o desejado. Tudo começa com canções de alegria e tristeza, muito antes de podermos chamar nossas ideias pelo nome. E é por isto que a gente não pode deixar de ser o que foi. Mudar de ideia é muito fácil. Mas ninguém pode fazer de conta que alegrias e tristezas nunca existiram. É assim na religião. Salmos e poemas vêm primeiro. Eles pertencem às origens, preservam aquele espanto primordial frente ao sagrado. Já os tratados de teologia e as explicações doutrinárias são construções tardias, depois que passou o amor e a dor se foi, depois que o espanto acabou e ficou o vazio…

Não foi no cérebro que me tornei protestante. Ao contrário, minha fé é companheira de imagens, memórias, perfumes, músicas, solidões, retiros, caminhadas por montanhas e beira-mar; rostos, sorrisos, acampamentos de trabalho em favelas; funerais, injustiças, esperanças enterradas, algumas ressuscitadas; certezas de lealdade a toda prova… E aqui eu teria de ir colocando nomes: presenças ausentes com quem compartilho a minha vida. É isto. O decisivo não é a ideia. O decisivo é a pessoa que a gente invoca, não importa que já esteja morta…

Dizendo de outra forma: não sou protestante em virtude das ideias que tenho. Não somos o que somos por termos as ideias que temos. Temos as ideias que temos por sermos o que somos. Primeiro vem a vida, depois vem o pensar…

É muito importante entender isto. Não é curioso que tanto os inquisidores quanto São Francisco tenham se chamado “católicos”? Não é curioso que tanto as pessoas que caçaram e mataram bruxas em Salém, quanto Schweitzer e Martin Luther King, tenham se denominado “protestantes”? Afinal de contas, que magia estranha é esta que faz com que uma mesma religião seja coisas tão opostas?

Religiões são como mesas de banquetes: tudo está preparado e há desde os pratos rigorosamente destinados às dietas vegetarianas até as gorduras chamuscadas nas brasas para aqueles que gostam de carne… E os fiéis se aproximam, cada qual com o seu pratinho, e escolhem… Veja, observe: Já vão saindo com seus pratos cheios. Os lobos, os inquisidores, os caçadores de bruxas trazem nos seus pratos coisas que não se encontram nos pratos dos cordeiros e das vítimas… Escolheram as ideias que mais apeteciam aos seus paladares e menos ofendiam aos seus estômagos.

Claro que se trata de uma parábola. Estou querendo simplesmente dizer que, assim como as pessoas constroem as suas dietas a partir das exigências dos seus corpos, também elas constroem as suas teologias a partir do que elas são… E é por isto que há tantos catolicismos diferentes, dos lobos e das ovelhas… É por isto que há tantos protestantismos diferentes, dos lobos e das ovelhas… É claro que os lobos se dão  bem, não importa a cor de suas peles. E as ovelhas são sempre ovelhas, e se entendem… Seria bom tentar começar a entender o ecumenismo a partir deste ponto, deixando os debates sobre ideias para depois. Há muitas formas de organizar as experiências que o protestantismo guarda. Os inquisidores colocarão fogo nos olhos do seu deus e com o fogo consumirão aqueles que se atrevem a ser diferentes. Os pacificadores colocarão o fogo nas lanternas e nos fogões, para iluminar, aquecer, cozer…

Minha primeira experiência / memória protestante tem a ver com um hino. Meu pai tinha ido à falência. Tudo se perdeu. Morávamos numa casa velha, emprestada, daquelas fazendas antigas do sul de Minas, sem água encanada, sem privada, sem luz elétrica. Era o cheiro de querosene das lamparinas, do estrume das vacas, do capim-gordura, do milho fermentado, o barulho do monjolo, da água que caía do rego, os camundongos e os cães que ladravam pelas noites a dentro… Mas, como disse a Cecília Meireles, “quando a desgraça é profunda, que amigo se compadece?” De um homem falido fogem os amigos. E foi então que apareceu lá naquela solidão um evangelista, o senhor Firmino. Do que ele dizia nada me restou: eu só tinha três anos. Mas guardei a música que me pareceu a estória de um homem de nome esquisito, João Totrono… Depois descobri que era “Junto ao trono de Deus, preparado, tens cristão um lugar para ti…” Iniciam-se minhas memórias com uma canção que ficou sendo sacramento de uma presença gratuita e estranha, quando os rostos familiares ficaram raros.

Chamei a memória da música não porque minha biografia tenha qualquer importância, mas porque, puxando um pouco mais os fios, a gente acaba por agarrar a história. Esbarramos com a Reforma Protestante e vemos todo mundo cantando. A Reforma aconteceu através da música. Pode ser que Lutero e outros líderes intelectuais do movimento tivessem pensado com rigor os seus pensamentos, mas pessoas comuns cantaram a Reforma antes de entende-la. Quem canta é mais perigoso do que quem só pensa. O canto põe asas nos pés. Haverá outra razão para as marchas militares que põem uma mesma cadência nos passos? O canto mobiliza o corpo, imobiliza o medo, e transforma gestos solitários em caminhadas solidárias. E Lutero colocou sua fé em hinos que eram repetidos e decorados, mesmo por aqueles que – crianças, talvez – não entendiam bem as ideias. A confiança se cristalizou em imagens. Qualquer um podia entender o que significava cantar “Castelo forte é nosso Deus, espada e bom escudo…”

O espírito protestante é um espírito cantante. Símbolo disto é um homem simples, João Sebastião Bach, que juntou em suas cantatas a palavras evangélica com a grandiosidade estrutural da música. Tanto ou mais que os documentos da Reforma, a música de Bach é minha amiga. Eu a invoco sempre nos momentos de confusão. Fé cantada é melhor que fé falada. E descubro que o meu protestantismo tem muito a ver com o fato de que a música desse homem é como uma encantação mágica que desperta em mim coisas boas, adormecidas, das quais frequentemente me esqueço. E fico melhor do que sou.

Compreendo que alguém poderá dizer que gosto por Bach é coisa refinada, de gente que pode se educar, o que está proibido à maioria… É possível. Mas Bach foi apenas um dos muitos que cantaram e continuam a cantar. E esta é a razão porque não me envergonho de pular de Bach para uma casinha de pau-a-pique, lá perto de Miguel Pereira, ao fim de uma trilha pelo meio do pasto, no buraco da noite, em que irmãos pentecostais de cabo de enxada e palavra reta cantavam sua fé singela e descomplicada, ao som das cordas, dos pandeiros, dos bumbos. E de lá voo para o último domingo de Páscoa, numa missa católica para crianças, em que, para o meu espanto, repentinamente a Igreja explodiu num “Glória, Glória, Aleluia”, sacudido por dezenas ou centenas de chocalhos, triângulos, pandeiros e tambores infantis, do jeitinho que manda o Salmo 150, tão lido e tão desacreditado…  Que coisa mais ecumênica pode existir que a música? Para além de tudo o que nos divide, ela dá testemunho de que nós queremos cantar, cantar juntos, cantar que é bom viver… Se a teologia tivesse sido cantada, é certo que menos fogueiras teriam sido acesas… E descobri assim o Protestantismo como esse espírito cantante, que vive desde a cantata de Bach até a cantoria dos que não sabem distinguir bemol de sustenido. Pode ser que ninguém acredite, mas é fato: foi um padre que me fez sentir protestante pela primeira vez.

Eu não pedi para ser protestante. Eram os meus pais que me levavam, meio à força, para a Escola Dominical. Aí aconteceu um acidente. Num grupo escolar, primeiro ano, lá no sul de Minas. Num belo dia, sem aviso prévio, a professora entrou em classe acompanhada de um padre com batina preta. “Quem é que vai para a confissão e a comunhão?”, perguntou ele com voz taquaral clerical. A meninada toda levantou a mão. Menos eu e o Estelino, que era espírita. Todo mundo olhou espantado para a gente, enquanto o sangue subia ao rosto e os nossos olhos se enterravam no chão. Miseravelmente diferente, sem saber por quê, enquanto os outros cochichavam risos contra a minha singularidade. E o padre e a sua batina foram crescendo, crescendo, sem parar, e o menino indefeso foi sentindo a dor do estigma. Eu era diferente. Nunca me esqueci.

Mas aí aconteceu uma coisa gozada, que a psicanálise deve explicar. A vergonha de ser diferente virou o orgulho de ser diferente. Foi então que eu, sem saber, me senti protestante pela primeira vez. De fato, o protestantismo tem muito a ver com a coragem para assumir a própria individualidade. Como aconteceu com um monge teimoso, que não dobrava o pescoço por medo da espada, mas fazia o corpo todo andar e falar ao som suave da voz da consciência. Este teimoso individualismo teve um gosto doce à minha boca, e nunca mais o abandonei.

De tão longe não é fácil entender o que significam os gestos do monge teimoso. Com eles Lutero não estava criando algo novo, mas simplesmente “des-cobrindo” um espírito protestante já em gestação.

Foi necessária muita coragem para contrapor a voz da consciência individual à voz das autoridades constituídas. Fazendo isto, ele declarava que, se existe um referencial sagrado para o comportamento, se existe um lugar de verdade para o pensamento, tais lugares não se confundem com os lugares do poder, não importa que o poder tenha sido legitimamente constituído. O segredo e a verdade não habitam as instituições, mas invadem o nosso mundo através da consciência.

Isso é subversão. Lutero colocou o mundo de cabeça para baixo. Se o Espírito de Deus não é monopólio de instituições, não é gerenciado por organizações, não é distribuído por burocracias, todas elas perdem a sua aura sagrada. Não podem mais pretender ser eternas.

O Espírito é algo diferente, livre. Como o vento, imprevisível, assopra onde quer, não se sabe donde vem, nem para onde vai. Só podemos ficar à espera, quais meninos com suas pipas na mão…

Ter consciência é isto: ficar à espera, aguardando o movimento do vento… Tudo é imprevisível. Nada é comparável à imponente mobilidade da catedral gótica, cuja beleza se encontra exatamente no fato de haver ela congelado o espírito de um certo momento da história. Mas ficar à espera do vento é esperar por um movimento, não se sabendo nem onde e nem quando ele se dará…

Duas coisas ficavam assim ligadas.

De um lado, a liberdade de Deus. Pode parecer coisa abstrata mas não é. Dizer que Deus é livre significa que ele se ri de nossas tentativas de conhece-lo pela nossa teologia, aprisiona-lo em instituições, administra-lo pela burocracia. Ele sempre anda por lugares não previstos, na companhia de gente estranha, fazendo coisas meio esquisitas, tal e qual Jesus Cristo. Traz do cativeiro um povo sem eira nem beira, faz uma mulher estéril dar à luz, dá vida a um vale de ossos secos, faz uma virgem engravidar, dá tombos nos fortes, põe os fracos nos lugares altos, confunde os sábios, joga mau cheiro sobre a piedade dos que confiam muito em si mesmos, transforma heróis em vilões e vilões em heróis… E os protestantes, conhecedores deste prazer divino nas inversões súbitas, poderiam prever que ele acabaria por subverter a própria Igreja Católica, derrubando blocos de pedra com o seu sopro suave e fazendo nascer flores entre as fendas das lápides, assombrando os bem-nascidos e fazendo rir as crianças… E se o Espírito de Deus anda por lá, quem somos nós para dizer não?

E, do outro lado, a consciência da pessoa, esta estranha capacidade que nos distingue dos bichos, e nos permite perceber as coisas novas e diferentes que o Espírito está fazendo, e mesmo ouvir a sua voz – sinais da gravidez universal da criação, o que faz a gente ficar feliz (Rm 8.22). Era por causa da consciência que Lutero falava que todos os fieis são sacerdotes. Acabou-se o monopólio do divino. Cada cristão, mesmo uma criança amedrontada, pode ficar de pé e dizer: “Aqui fico. Não posso ir contra a voz da minha consciência.”

Se os protestantes tivessem sido espertos e sensíveis à sua própria teologia, eles, há muito, teriam assumido a dianteira, e espalhado por este mundo a fora um sem número de Comunidades Eclesiais de Base. Por que é que bem-nascidos cardeais, bispos conservadores e padres dantanho ficam arrepiados com esta coisa? Isto é coisa de protestante, percebem eles muito bem. Dizia o falecido Gustavo Corção, com toda razão, que a Igreja Católica estava se protestantizando. E parece que nunca disse coisa tão verdadeira.

As comunidades protestantes primitivas eram de base, no sentido de que nasciam do povo comum – cada crente era um sacerdote. Eu não tenho medo de dizer que a Igreja Católica está passando hoje pela Reforma – mais uma façanha do vento suave… Com uma diferença. No século XVI a Igreja recuou, e deu aquilo que todos conhecemos. Depois, os protestantes tentaram converter os católicos no varejo, um a um. Mas o Espírito ficou meio impaciente, e tratou de fazer a conversão por atacado. Pela Igreja toda sopra a liberdade de Deus e a voz da consciência: os fieis estão à escuta, tentando ler os sinais dos tempos…

Quantas coisas nos conta a ideia protestante de que todos os homens são sacerdotes!

A primeira coisa que ela faz é colocar um enorme ponto de interrogação sobre as cabeças das pessoas que se dizem autoridades religiosas, políticas, militares, não importa. De saída é necessário dizer que a autoridade é algo estranho ao espírito do Novo Testamento. Quem quiser ser o maior, que seja o servo. Substituir a espada pelo lava-pés. Deus, poder e verdade, abre mão de tudo, esvazia-se… Leia-se o Novo Testamento e veja-se o papel que as autoridades desempenham ali, a partir de Herodes, mandando matar as crianças, até as autoridades romanas e autoridades judias, mandando matar Jesus. Parece que as pessoas em posição de autoridade são mais suscetíveis à idolatria e à crueldade. É isto que nos conta a história. É claro que a ordem é necessária para tornar possível a nossa convivência. E destas coisas, surge, aos poucos, o espírito da democracia, expressão do doloroso reconhecimento da necessidade da autoridade e da determinação de manter sempre a autoridade no seu devido lugar: não em cima, mas em baixo, como serva e funcionária do corpo sacerdotal – claro! – o povo todo, cada um deles um sacerdote.

Depois ela nos dá permissão para pensar com ousadia os pensamentos mais loucos e avançados. Reprimir o pensamento é reprimir a consciência, é colocar a autoridade estabelecida num nível mais alto que a liberdade do indivíduo. Sei que isto horroriza aqueles que habitam os espaços já organizados e disciplinados da vida eclesial. Tudo já está previsto. O futuro não pode ser diferente do passado. A casa está em ordem e os velhos descansam tranquilos. Mas, de repente, uma classe de jardim de infância invade a casa e tudo fica em movimento, borbulhante de vida. Cada peça de museu se transforma num brinquedo. Cada canto sagrado vira um esconderijo para o jogo de esconder. A ordem cristalizada se transforma na vitalidade indomável… É claro que há muitos que começam a sofrer vertigens, enquanto outros tratam de expulsar a criançada… “Se não vos converterdes, e não vos fizerdes como crianças…”

Por séculos o ideal da Igreja foi o de construir jardins geométricos, monocultura, em que tudo permanecesse sob o estrito controle do jardineiro. Agora os protestantes dizem que o Espírito é um semeador sem muito gosto pelos traçados geométricos, que mistura tudo quanto é tipo de semente e as espalha ao vento… E elas brotam na mais fantástica explosão de cores, na desordem maravilhosamente bela que surge da vida… E surge então o mandamento para a pluralidade e a diferença. Os especialistas em cortar pedras dirão que a pluralidade e a diferença são sinais de desintegração. Afinal, se os tijolos não forem todos iguais, a casa cai… Mas quem é que falou em construir casas? Da mesma forma como a vida, na sua unidade, produz amores perfeitos, cravos-de-defunto, girassóis, musgos, cactos, caquis, bananas, jacas, algas, buchas, erva-doce, losna, abóboras e cerejas, também o Espírito de Deus, na sua unidade e vitalidade, pode produzir as mais variadas formas de vida, sejam as culturas indígenas, as dançantes comunidades pentecostais africanas, ordens monásticas, experiências de contracultura, as religiões populares, e até mesmo os estilos de vida em que nos sentimos em casa. E com os estilos de vida surgem novas formas de pensar e novas formas de falar sobre Deus, sobre Cristo, sobre a salvação… E quem seria aquele que tomaria da espada para liquidar os diferentes? Com que direito? Quem quer que se atreva a liquidar os dissidentes está possuído da ilusão de ser o detentor do monopólio do divino, e sucumbe à tentação e à crueldade da espada – eclesial ou secular, não importa.

Posso bem perceber o espanto incrédulo nos olhos do meu leitor, protestante de muitos anos, que pela primeira vez ouve coisas tão insólitas. E ele procurará ao seu redor para ver onde é que este protestantismo se encontra. Entre os Batistas? Na Igreja Presbiteriana? Quem sabe nas Comunidades Protestantes? Que dizer dos Metodistas? E vamos caminhando, inutilmente, reconhecendo as pedras, identificando a voz da autoridade, ouvindo o barulho típico da tesoura de poder que corta um broto novo… O futuro deve ser uma continuação do passado. As mesmas ideias. A verdade já foi cristalizada em séculos idos. Proibidos de explorar o novo, de pensar o insólito… E as pessoas vão ficando tristes, pensando todos os dias os mesmos pensamentos, fazendo todos os dias as mesmas coisas, orando as mesmas orações espontâneas  formadas com a colagem de frases feitas e estereotipadas, sem coragem para contar as coisas que acontecem no fundo da sua alma, porque isto pode perturbar a simetria da rotina…

E eu me lembro então da última coisa que quero dizer sobre a liberdade de Deus, coisa que todo protestante repete. Poucos, entretanto, tomam o risco. Salvação pela graça. Salvação não vai de baixo para cima. Salvação vem de cima para baixo. Deus nos ama. Deus resolveu o problema, por conta própria. Isto significa que ele não tem livro caixa, onde entram nossos débitos ou créditos. Os débitos são perdoados e os créditos ignorados. Salvação segundo o modelo do livro caixa é o que os teólogos denominavam “salvação pelas obras”. E quem é que pode estar tranquilo, sem recursos para pedir uma informação sobre o saldo da conta? Salvação pela graça significa: das questões depois da morte Deus já cuidou. Por isto é ocioso gastar pensamento e aflição com discussões sobre a mobília do céu e a temperatura do inferno. Mas sobra tudo o mais que nos ocupar: a preservação da natureza, a arte, a fogueira das armas, para transforma-las em arados e podadeiras; a luta contra os exploradores, a proteção dos oprimidos, o prazer da liturgia, da música, da comunidade, o brinquedo da teologia. A salvação pela graça significa: é inútil e desnecessários nos preocuparmos com o além. O além pertence a Deus, nossos braços não vão até lá. E Deus já resolveu o assunto, em amor. Somos então livres para sermos totalmente deste mundo, fazendo as coisas que a consciência nos comanda.

Imagino a sua perplexidade que pergunta se não existirá coisa mais oposta ao espírito cristão de amor que o individualismo que leva as pessoas a caminhar de forma solitária, cercadas de muros. Terei de responder que você tem razão. Mas terei de lhe perguntar, em troca, se existe coisa mais oposta à comunhão que a sociabilidade fácil daqueles que se satisfazem com a conversa ociosa da representação de papeis… Toda palavra genuína deve nascer do silêncio. Não posso crer nas declarações de solidariedade daqueles que não frequentam a solidão de sua própria consciência. Não, o individualismo da Reforma nasce de um profundo respeito pela pessoa, porque cada pessoa é uma “máscara” de Cristo, Cristo se fazendo presente, disfarçado… E assim, quando alguém é desrespeitado, violentado, torturado, quando alguém passa fome e não tem onde morar, é o próprio Cristo que está aí…

Sou protestante.

Mas você já deve ter percebido que minha bem-amada está ausente. Meu protestantismo é uma saudade e uma esperança. Esta é a razão por que sinto uma enorme necessidade de ler os pais da Reforma e uma compulsão de ouvir o vento do espírito, pra ver onde é que poderei empinar o papagaio…

Por enquanto, o espírito cantante e brincalhão do protestantismo (sob disfarce, é claro) está fazendo das suas na Igreja Católica. Como eu lhe disse, o Espírito é livre… Talvez ele tenha querido brincar conosco. Talvez não tenhamos querido brincar com ele. E ele está se indo. Ele, porém, volta de vez em quando – e haverá de voltar para ficar.

É, eu sou protestante.

Rubem Alves

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Transcrito aqui em São Paulo, em 7 de Outubro de 2015

A Escola e o Futuro

Cada vez fico mais convencido de que a escola não tem futuro, porque o futuro não terá escolas.

Se a gente tivesse tido coragem, o presente já não teria escolas, porque teríamos prestado atenção ao que disse Ivan Illich, 45 anos atrás, em 1970, quando escreveu um livro nos conclamando a acreditar que uma sociedade sem escolas era possível – mais do que isso, necessária – e propondo que, portanto, desescolarizássemos a sociedade.

Se isso já parecia viável a Illich, um religioso, vivendo em Cuernavaca, no México, quase 50 anos atrás, quanto mais hoje, com toda a tecnologia de que dispomos, toda ela interconectada, com a Internet, com comunicação multimídia móvel e instantânea – ficando mais rápida a cada dia…

Falo em tecnologia, não porque ache que a tecnologia vai substituir a escola. A tecnologia de hoje, como Bill Gates já percebeu há muito tempo, quando escrevia seu primeiro livro, existe para permitir que pessoa se conecte com pessoa e que, interconectados, tenhamos amplo acesso às informações de que precisamos, ou que queremos, para fazer seja lá o que for que queiramos fazer. O que vai substituir a escola são redes – não de computadores, mas de gente: redes sociais. Os computadores viabilizaram essas redes, mas quem as criou fomos nós. Mike Zuckerberg teve a ideia, montou a estrutura, mas quem transformou Facebook em uma rede de bem mais de um bilhão de pessoas fomos nós. A maior parte de nós trabalha de graça no Facebook, conversando um com o outro, trocando ideias, fotos e vídeos, produzindo, compartilhando, criticando informações – só pelo prazer, pela satisfação, pelo sentimento de realização que isso nos dá – ou por outra razão últil qualquer.

As redes sociais que nós estamos montando vão substituir a escola – mas serão tão diferentes da escola que conhecemos que nós provavelmente abandonaremos o termo. Os prédios que hoje são escolas, da mesma forma que os cinemas que antigamente estavam por todo lugar e andavam sempre cheios, um dia serão destruídos (já estão sendo) ou se transformarão templos das igrejas dos sucessores dos Edir Macedos de hoje. A menos que as igrejas também sejam substituídas por redes sociais – por que não? Elas são locais em que pessoas se encontram para receber e transmitir informações e para sentir prazer com a companhia alheia… Tudo isso pode ser feito através de redes sociais atuais – e será muito mais viável e efetivo com as redes sociais que estão ali adiante, bastando virar a esquina. O Edir Macedo, que entende muito mais do que se pode fazer com tecnologia do que qualquer um de nós já esparramou “pastores virtuais” pela Internet, que ouvem e conversam com gente que tem problema, que está ansiosa, preocupada, aflita, usando a Internet como confessionário…

Uma das coisas mais importantes (para eles) que crianças, adolescentes e jovens fazem hoje é jogar – brincar usando videogame. Hoje, eles não jogam com o videogame: usam o videogame para jogar com outras pessoas. Os que fazem isso intensamente são uma confraria secular. Aprender a jogar bem um videogame desses que fascinam as novas gerações não é fácil (para um adulto). É muito mais difícil do que aprender a usar bem a língua portuguesa. Mas as jovens gerações de hoje aprendem a jogar esses jogos fascinantes de forma extremamente rápida e com inacreditável competência. Por eles, viram a noite jogando. E aprendem de forma ativa, interativa, comunicativa, colaborativa, significativa… Como dizia Paulo Freire, ninguém ensina ninguém, mas ninguém aprende sozinho: nós nos educamos uns aos outros “em comunhão”, mediatizados pelos nossos interesses comuns no mundo… A igreja dos anos 60 aprendeu que o lugar de adorar a Deus é no mundo, não no templo… Paulo Freire pegou essa ideia e a pedagogizou: o lugar de nos educarmos uns aos outros é no mundo, não na escola. Paulo Freire era amigo de Ivan Illich – e ambos eram amigos de Rubem Alves, o nosso teólogo-educador-poeta-em-prosa maior, que nos ajudou a entender, lá nos anos setenta, que a teologia era uma coisa muito chata, mas a teopoesia era uma coisa encantadora… Ele também fez uma transposição do mundo da religião para o mundo da aprendência: aprender o que não se quer e, o que ainda é pior, através do ensino de um professor de saco cheio é uma merda – mas aprender o que se tem interesse em aprender, brincando juntos, poetizando juntos, até mesmo teopoetizando juntos, é encantador. Escolas são gaiolas. Rubem Alves nos ajudou a ver isso. Elas matam os pássaros que prendemos nelas – mesmo quando o fazemos com a melhor das intenções. Rubem Alves certamente havia lido um livro de alguém que descreveu o tempo de escolarização obrigatória como uma sentença de 12 anos que condena nossas crianças, adolescentes e jovens a desperdiçar numa instituição autoritária o melhor tempo de suas vidas, o tempo em que deveriam estar explorando o mundo, aprendendo enquanto jogavam, se divertiam, curtiam a vida… [*]

Fui obrigado a ir à escola, disse Mark Twain – mas nunca deixei que a escola atrapalhasse a minha educação. Ainda bem. É isso. Na escola perdemos tempo – tempo precioso que deveria estar sendo usado em nossa educação.

Karl Popper disse que tinha fé no ser humano – e que essa fé se fundamentava no fato de que essa maldita escola, que, segundo ele, foi inventada e nos foi legada por Platão e que foi conservada quase sem mudança até hoje, ainda não conseguiu destruir de todo a nossa curiosidade, a nossa vontade de aprender, o nosso amor ao saber e ao saber-fazer, a nossa capacidade de não perder de vista o que importa, mesmo quando a escola tenta desviar o nosso olhar para o desimportante…

A escola está à morte. Que tenha uma longa vida a educação.

Em São Paulo, 6 de Outubro de 2015

[*] O livro a que me refiro é The Twelve-Year Sentence: Radical Views on Compulsory Education, de William Rickenbacker. Infelizmente, apesar to título chamativo, Rickenbacker não é suficientemente radical. Ele se opõe basicamente à educação compulsória (em especial a que tem lugar na escola pública). Na verdade, ele se opõe à escolarização obrigatória imposta pelo governo. Eu me oponho a isso também. Mas minha tese é mais ampla e mais radical: ela afirma que a escola, como locus privilegiado da educação, é uma ideia a ser combatida, seja a escola compulsória ou não, seja a escola pública ou não. O locus da educação é o mundo, isto é, a sociedade, o ambiente de trabalho, o ambiente de lazer, a comunidade, a casa (o lar), o quarto do indivíduo, o seu telefone… Todos esses ambientes de aprendizagem estão hoje interconectados — na verdade, estão tão entrelaçados que a gente trabalha em casa, se diverte no trabalho, brinca e se entretem com as mesmas ferramentas com que trabalha — e aprende em todos esses locianywhat, anywhy, anywhen, anywhere, anyhow…