A Educação e as Verdades Absolutas

Avatar de Paloma ChavesEduTec: Blog da Professora Paloma

Quem de nós nunca acreditou em verdades absolutas?

Especialmente durante nossa vida escolar somos bombardeados com informações que nos são apresentadas como verdades incontestáveis.

Aprendemos, por exemplo, que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil em 1500; que uma ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados; que todo ser humano nasce, cresce, se reproduz e morre; que o Brasil encontra-se na América do Sul, abaixo dos Estados Unidos, que fica na América do Norte; dentre várias outras verdades. Quase todas essas verdades são reforçadas por meio dos conhecidos exercícios de “verdadeiro ou falso”, em que apenas uma resposta é verdadeira. E desde muito cedo aprendemos a não pensar sobre a veracidade de fato ou origem dessas informações, afinal, isso é parte do conhecimento historicamente acumulado e ponto.

Não é sem razão que muitos de nós passa a vida inteira acreditando em verdades absolutas. E a…

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20 Séculos de Cristianismo em 3 Dias

Na semana que vem, nos dias 14 a 16 (Julho, 2015), das 19h30 às 21h, ministrarei um curso de quatro horas e meia sobre o tema acima. Há quem considere impossível falar sobre 20 séculos de Cristianismo em menos de cinco horas. Mas esse é o desafio que me propus.

JUSTIFICATIVA DO TEMA

Indivíduos e instituições têm identidade.

Nossa identidade, como indivíduos, está intimamente ligada a nossas memórias — às coisas que somos capazes de lembrar acerca de nós próprios. E nossas memórias estão intimamente ligadas à nossa história. Embora seja possível inventar memórias, ou seja, criar memórias fictícias, e até mesmo acreditar que elas são verdadeiras, a maior parte de nossas memórias decorre de nossa história, ou seja, daquilo que de fato aconteceu conosco, ou que nós próprios fizemos acontecer, ao longo de nossa vida.

O mesmo se dá com instituições — como, por exemplo, o Cristianismo. O Cristianismo é uma instituição extremamente complexa. Tem pelo menos três grandes ramos: o Ortodoxo, predominantemente Oriental, o Católico, predominantemente Ocidental, e o Protestante, hoje, basicamente Global (não é à toa que as igrejas neo-evangélicas criadas no Brasil usam e abusam de adjetivos que indicam isso: Universal, Mundial, Internacional, etc.).

Talvez o Cristianismo, tout court, tenha uma identidade básica que o diferencie de outras religiões: Judaísmo, Islamismo, etc. Possivelmente essa identidade básica tenha que ver de alguma forma com a pessoa de Jesus Cristo — afinal, a religião cristã dele deriva seu nome. Mas há muita divergência acerca do que, na pessoa de Jesus Cristo, seria responsável pela identidade cristã. Para os cristãos ortodoxos (num outro sentido, não envolvendo necessariamente os Ortodoxos Orientais), Jesus Cristo era Deus — a segunda pessoa da Trindade. Mas muitos grupos no Cristianismo antigo — definidos como heréticos — rejeitavam essa tese (embora reconhecendo que Jesus foi um ser superior). Mais recentemente surgiu o movimento Unitarista, que rejeita a divindade de Cristo. A maior parte dos cristãos chamados liberais também rejeita, afirmando que Cristo era o maior dos profetas ou dos mestres.

Mas além da identidade básico do Cristianismo, cada um dos ramos do Cristianismo tem uma identidade básica. No caso dos Católicos, ela aparentemente está ligada ao reconhecimento da Sé Romana e do Papa como sua liderança real.

No caso do Protestantismo, talvez ele também tenha uma identidade básica e várias identidades específicas, que diferenciariam as diversas denominações ou igrejas que se consideram protestantes ou evangélicas.

A gente estuda a História da Igreja para poder encontrar uma resposta a questões como “Os Mórmons são Cristãos? São Protestantes? E os Testemunhas de Jeová? E os Adventistas do Sétimo Dia? E a Ciência Cristã? E o Espiritismo?”.

Mas a gente estuda a História da Igreja principalmente para entender por que a gente é Cristão, Protestante, Presbiteriano, e Independente e não alguma outra coisa. Para entender isso, a gente precisa saber o que caracteriza a especificidade de cada um desses “centros de identidade”.

Um corolário desse estudo é que a gente é capaz de dar uma resposta plausível acerca de quem é irmão, quem é primo, quem é cunhado, e quem nem parente é, em termos de afiliação religiosa…

PROGRAMA DO CURSO

Temos apenas cerca de dez horas, distribuídas em três dias, para discutir 20 Séculos de Cristianismo. Se fizéssemos uma média, teríamos mais ou menos meia hora por século. . . É evidente, portanto, que não faz sentido passar em alta velocidade pelos vinte séculos. Faz bem mais sentido dar uma ideia geral da periodização da História da Igreja e concentrar em grandes marcos.

Isso será feito no início do primeiro dia — é rápido. Dedicaremos o restante do primeiro dia para cobrir os grandes marcos dos primeiros quinze séculos do Cristianismo — a Antiguidade Clássica e a Idade Média.

No segundo dia discutiremos os grandes marcos da Idade Moderna e da Era Contemporânea, cobrindo da Reforma Protestante de 1517 até os dias de hoje — com foco global.

O terceiro e último dia será usado para discutir o Cristianismo no Brasil. O Cristianismo Católico chegou aqui muito cedo, através dos colonizadores portugueses e especialmente, a partir da criação da Companhia de Jesus, dos Jesuítas que vieram com eles. Houve, antes do século 19, tentativas reformadas de trazer o Protestantismo para o Brasil através dos Huguenotes Franceses e dos Reformados Holandeses. Mas eles foram expulsos pelos Portugueses Católicos. Foi só no século 19, quando o Brasil deixa de ser Colônia e se torna Império, que imigrantes ingleses e alemães trouxeram o Anglicanismo (Episcopalismo) e o Luteranismo para o Brasil, e, depois, missionários, especialmente americanos, nos trouxeram o Presbiterianismo, o Congregacionalismo, o Metodismo, o “Batistismo”, e, um pouco mais tarde, o Pentecostalismo. Altamente minoritários, os Protestantes eram uma pequena minoria até a segunda metade do século 20, quando através do Neopentecostalismo, teve um crescimento espantoso, que hoje nos permite indagar se o Brasil ainda será, quem sabe ainda no século 21, um país predominantemente protestante.

Em resumo, o Plano de Curso é o seguinte:

Dia 1:
O Cristianismo até a Reforma: 1500 Anos de uma Igreja Mais ou Menos Unida

Dia 2:
Da Reforma aos nossos Dias: Um Novo Conjunto de Atores em Cena

Dia 3:
O Cristianismo no Brasil: Corremos o Risco de nos tornar um País Protestante?

Você está convidado a participar dessa experiência e é instado a torna-la um sucesso, trazendo sua dúvidas e inquietações — na forma de perguntas.

O curso será ministrado nos dias 14, 15 e 16 de julho deste ano (terça, quarta e quinta), das 19h30 às 21h, na Faculdade de Teologia de São Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (FATIPI), à rua Genebra, 180, na Bela Vista, em São Paulo.

Detalhes sobre como se inscrever podem ser encontrados no site da FATIPI:

http://fatipi.edu.br/semana-faculdade-aberta-2015/

Eduardo Chaves

Em São Paulo, 6 de Julho de 2015.

Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo

Conteúdo

  1. Considerações Iniciais
  2. O Problema
  3. Um Interlúdio Histórico e Autobiográfico
  4. A Culpa foi de Rudolf Karl Bultmann
  5. A Construção de um Novo Eu
  6. O Princípio e o Fim da Teologia Liberal
  7. O Legado da Teologia Liberal
  8. Considerações Finais

1. Considerações Iniciais

Como já informei num post no Facebook, finalmente, nesta viagem que acabo de fazer aos Estados Unidos (fim de Junho, começo de Julho de 2015), consegui completar minha cópia da coleção de 90 livretos escritos por vários autores e publicados de 1910 a 1915 sob o título de The Fundamentals (Os Fundamentos — mais corretamente, Os Princípios Fundamentais).

A coleção é considerada até hoje a (evidentemente segunda) Bíblia do Fundamentalismo Religioso Americano. A primeira é, naturalmente, a própria.

A coleção, hoje esgotada, e encontrada, portanto, apenas em sebos, foi preservada para a posteridade, em forma razoavelmente acessível, em uma edição em quatro volumes, preparada, em 1917, a pedido do Bible Institute of Los Angeles (hoje Biola University – BIOLA é uma sigla formada pelas iniciais do nome antigo), depois de revisada pelos dois principais editores da série original: R. A. Torrey e A. C. Dixson. Aparentemente, nem todos os livretos originais foram incluídos na edição em quatro volumes, mas apenas os considerados mais importantes pelos editores. A Baker House publicou essa edição em quatro volumes, reimprimindo-a várias vezes. Mesmo assim a coleção está hoje esgotada.

A iniciativa de solicitar a eminentes autores fundamentalistas (ou, em alguns casos, apenas conservadores) que escrevessem livretos sobre diferentes aspectos da doutrina cristã da ótica fundamentalista partiu de dois empresários conservadores americanos, que financiaram a iniciativa e contrataram os editores que a gerenciariam. Os empresários eram irmãos: Lyman e Milton Stewart, magnatas californianos da indústria petrolífera.

Levei quase dois anos coletando esses livros — e acabei ficando com alguns volumes duplicados. Tenho, por exemplo, duas cópias do volume três e do volume quatro dessa edição em quatro volumes.

Quase no fim de minha busca encontrei uma nova edição dos livretos, agora em um volume só. Para celebrar seu jubileu em 1958, o Bible Institute de Los Angeles (BIOLA) lançou uma nova edição dos livretos, que incluía 64 dos 90 livretos incluídos na edição em quatro volumes (que já não incluía todos os livretos). A escolha e revisão do volume, que teve o título de The Fundamentals for Today (Os Fundamentos para Hoje), ficou a cargo de Charles L. Feinberg. No mesmo ano, essa coleção menor em um volume foi também publicada pela Kregel Publications que acrescentou Introduções Biográficas preparadas por Warren W. Wiersbe e manteve o título original (The Fundamentals), mas acrescentou um subtítulo: The Famous Sourcebook of Foundational Biblical Truths (O Famoso Livro-Fonte de Verdades Bíblicas Fundacionais).

Assim, estou bem munido para terminar meu livro sobre a Controvérsia Fundamentalista – Modernista na Igreja Presbiteriana Americana, que, como já informei alhures, está virando uma Breve História do Presbiterianismo Americano, contada da perspectiva do conflito (aparentemente perene) entre seus Fundamentalistas (conservadores radicais) e seus Modernistas (liberais).

Como sempre acontece quando escrevo sobre questões históricas, meu texto tem um cunho bastante biográfico. Dentro da história maior, é o entendimento e a explicação de minha própria história que eu busco.

2. O Problema

Faz 15 anos (em 1990) eu escrevi um artigo, em Inglês, para apresentar na Second Assembly of the World’s Religions, em Los Angeles, patrocinada pela New Ecumenical Research Association (New ERA), no final daquele ano. O título do artigo foi “How Far Can a Doctrine Change Before Becoming Something Else?” (“Até que Ponto uma Doutrina Pode Mudar Sem se Tornar uma Alguma Outra Coisa?”). A transcrição do artigo original pode ser encontrado em meu blog Liberal Space no endereço: https://liberal.space/2014/05/26/how-far-can-a-doctrine-change-before-becoming-something-else/. Embora tenha sido escrito em 1990 e disponibilizado no blog apenas em 26/5/2014, o foco do artigo foi um tema que sempre me preocupou desde por volta de 1965, quando percebi que estava deixando de ser um cristão presbiteriano ortodoxo (conservador fundamentalista) para me tornar, digamos, um cristão liberal (frequentemente chamado de modernista), meio calvinista, meio luterano, meio adepto da chamada Reforma Radical, meio católico, meio ateu — não mais “apenasmente” presbiteriano.

Discuti essa minha passagem da ortodoxia para o liberalismo, que foi extremamente importante em meu processo de “desconversão”, em dois artigos e em um vídeo que também disponibilizei recentemente no meu blog.

Um dos artigos se chama exatamente “Processo de Desconversão”, e foi transcrito em meu blog no mesmo dia do artigo anterior — ou seja, em 26/5/2014. Trata-se, porém, na verdade, de transcrição comentada de pedaço de uma carta que escrevi por volta de 1990 — um pouco depois do artigo de 1990, pois faço referencia a ele. Esse novo artigo está disponível em https://liberal.space/2014/05/26/processo-de-desconversao/.

O outro artigo foi escrito no dia anterior à transcrição dos dois artigos que acabo de mencionar (25/5/2014). Ele não havia sido publicado ou mesmo escrito antes e tem o título de “Duas Crises Hermenêuticas”, podendo ser consultado em https://liberal.space/2014/05/25/duas-crises-hermeneuticas/.

Nesse artigo (“Duas Crises”) está contido um vídeo, que pode ser encontrado também em meu canal no YouTube https://www.youtube.com/watch?v=I30kYgh3A1o, com o título “Eduardo Chaves: Da Hermenêutica Bíblica ao Liberalismo”. Esse vídeo é um depoimento meu prestado ao meu sobrinho Vitor Chaves de Souza, também teólogo, por insistência dele, sobre a evolução (ou involução, como meu pai certamente acharia) de minha visão teológica.

Os três artigos e o vídeo apontam para o que sempre me pareceu um dilema ou quase uma aporia que persegue a História do Pensamento Cristão desde o seu início: como atualizar o objeto de nossa fé, face a novos contextos históricos, sociais, econômicos, políticos e principalmente culturais, e os novos desafios que eles apresentam à fé, preservando, ao mesmo tempo, de um lado, a “relevância” dessa fé e, de outro lado, a sua “identidade” e “continuidade”?

É relativamente fácil “atualizar” o objeto da nossa fé, fazendo sua “acomodação” a novos contextos, se não estamos muito preocupados com a questão da preservação de sua identidade e continuidade.

Por sua vez, uma preocupação excessiva com a identidade e continuidade da fé pode levar ao seu “afastamento” e até mesmo “isolamento” do contexto em que essa fé deve ser proclamada.

As alternativas do dilema ou da aporia são: uma atualização ou acomodação que torna relevante uma fé que não parece ser mais distintamente cristã, ou uma recusa a essa atualização e acomodação que preserva a identidade e continuidade de uma fé que, entretanto, parece ter perdido sua relevância no novo contexto.

Foi isso, em essência, e usando aqui novos conceitos, que discuti no meu artigo de 1990: “Até que Ponto uma Doutrina Pode Mudar Sem se Tornar uma Alguma Outra Coisa?”. John Gresham Machen (1881-1937), chamado de o fundamentalista mais brilhante que o presbiterianismo já teve, defendeu, em seu famoso livro Christianity and Liberalism (Cristianismo e Liberalismo), de 1923, a tese de que a Teologia Liberal do século 19 (e início do século 20) era até um esforço intelectual interessante — mas não era mais Cristianismo: havia se tornado uma nova religião. Ou seja, no esforço de buscar relevância para o “homem moderno”, atualizou-se e acomodou-se tanto que se tornou uma “outra coisa”. Acho essa uma posição interessante.

3. Um Interlúdio Histórico e Autobiográfico

Cresci na Igreja Presbiteriana do Brasil, filho de um pastor extremamente conservador — hoje eu o caracterizaria como fundamentalista. Cresci nesse ambiente e foi nesse ambiente que resolvi estudar teologia com o intuito de ser pastor, como meu pai. Fui para o Seminário Presbiteriano de Campinas em Fevereiro de 1964 e lá cheguei, depois de três anos no Instituto José Manuel da Conceição, bastante conservador do ponto de vista teológico, moral e político. Hoje percebo que nunca fui fundamentalista porque me faltavam quatro características que me parecem (hoje) ser essenciais no fundamentalista:

Certeza absoluta de suas convicções: o fundamentalista não tem a menor dúvida de que está de posse da verdade, de toda a verdade, e de nada mais senão a verdade;

Intolerância de convicções discordantes: se o fundamentalista está de posse da verdade, e alguém discorda dele, essa pessoa só pode estar errada — e ele não entende por que deva deixar o erro prosperar;

Beligerância, ou disposição de combater opiniões discordantes, até que os que as mantêm se convençam de que estão errados e se disponham a abandonar suas opiniões;

Dogmatismo, ou fechamento de mente, ou ainda indisposição para buscar a verdade através da leitura, da reflexão e do debate acerca de suas próprias opiniões, e, assim, aprender, pois ele acredita já estar de posse de toda a verdade, não contaminada por nenhum erro: não precisa, pois, aprender mais nada.

Eu certamente tinha minhas convicções quando cheguei ao Seminário. Minhas convicções eram conservadoras, mas eu não era fundamentalista, porque logo descobri que minhas convicções não eram inabaláveis, nem muito firmes. Eu tinha dúvidas, não certeza absoluta, acerca da veracidade daquilo em que acreditava. Por isso, tinha muito interesse em estudar, refletir, debater aquilo em que acreditava — e, assim, aprender mais.

Logo no primeiro ano de Seminário li um livrinho fundamental de John Stuart Mill (1806-1873): On Liberty (Da Liberdade). Ali ele faz notar, com toda razão, que silenciar a expressão de uma opinião é roubar a raça humana, tanto a geração presente como a posterior, sendo ainda mais prejudicados os que discordam do que os que mantêm a opinião, pois, se a opinião é correta, aqueles que dela discordam estão perdendo a oportunidade de trocar o erro pela verdade, e, se é errada, os dela discordantes perdem o grande benefício de adquirir uma percepção mais clara e mais viva da verdade, proveniente de sua colisão com o erro. Essas observações de Mill me marcaram, porque me pareceram totalmente convincentes. Ninguém consegue endossar essas palavras e ser um fundamentalista. (Num dos artigos que desencadeou a crise de 1966 no Seminário Presbiteriano de Campinas, eu fiz referencia a essa passagem de Mill).

Para aprender, é preciso ouvir e ler acerca de ideias diferentes das da gente — e estar disposto a refletir seriamente sobre elas e a discuti-las. A atitude adequada, nesse caso, é de debate de nossas próprias ideias — não de combate às ideias diferentes das nossas: estas precisam fazer parte do debate!

Mas essa combinação de atitudes (dúvida, tolerância, busca da verdade, abertura para debate, desejo de aprender) pode vir a ser fatal para as convicções originais — e o foi, no meu caso. Ela representou o fim do meu eu conservador e me mostrou que a Igreja Presbiteriana do Brasil, com o seu conservadorismo (na realidade, um fundamentalismo disfarçado, que tenta se esconder atrás de um verniz acadêmico intelectualizado), não era lugar para mim. Na verdade, a igreja percebeu isso antes de mim. Tentou me manter, proibindo-me de estudar por um tempo, na ilusão de que eu era “recuperável”. Mas eu não tinha mais jeito.

4. A Culpa foi de Rudolf Karl Bultmann…

O principal agente desencadeador de minha gradual perda de fé — não reconhecida como tal inicialmente: eu achava que estava apenas deixando de ser conservador — foi Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), teólogo alemão de confissão luterana, professor de Novo Testamento na Universidade de Marburg. Não vou apresentar em detalhe suas ideias aqui: elas são bem conhecidas. Só vou dizer que ele considerava mítica a visão de mundo do Cristianismo primitivo. Para os cristãos primitivos o mundo era o cenário de uma batalha entre seres e poderes sobrenaturais, bons e maus. O confronto entre os espíritos bons e os maus era constante. O mundo, cenário desse confronto, era plano, mas dividido em três níveis: o do meio, em que vivemos e em que esse conflito se dava; o de cima, local habitado por Deus e os espíritos do bem que são seus instrumentos e mensageiros; e o de baixo, local habitado por Satanás, o inimigo de Deus, e os espíritos do mal, seus agentes, que se aliam a ele. O que acontece aqui, no nosso nível, é em grande medida determinado pelas ações desses poderes sobrenaturais. São eles que nos tornam doentes (a doença em boa parte sendo considerada possessão demoníaca), são eles que nos curam (libertando-nos dos espíritos maus que nos afligem), são eles que nos amaldiçoam e que nos abençoam, fazendo com que, no primeiro caso, as coisas não deem certo para nós, e, no segundo caso, que nossa vida dê certo. Nosso fracasso e nosso sucesso não dependem de nós — dependem do desfecho desse embate entre os espíritos do mal e os espíritos do bem.

Toda essa maneira de entender o mundo, dizia Bultmann, é mitológica. Interpretado literalmente, esse conjunto de mitos é totalmente inaceitável ao homem moderno — para quem o que acontece aos seres humanos aqui na terra é decorrência de suas ações e de ocorrências que se passam no mundo natural, onde as causas são sempre ações humanas ou outras ocorrências naturais. A interpretação literal do conjunto de mitos contido no Novo Testamento deve ser abandonada. O Novo Testamento só será relevante para o homem moderno e contemporâneo se for interpretado não literalmente: se conseguirmos encontrar nele um novo “sensus plenior” (sentido mais profundo, mais pleno).

Diante de mitos do tipo dos que encontramos no Novo Testamento, temos basicamente duas alternativas, segundo Bultmann:

  • ou rejeitamos o mito, considerando-o uma forma de discurso ultrapassada, e nos tornamos agnósticos ou ateus, abandonando a nossa identidade cristã;
  • ou interpretamos o mito como linguagem cifrada que, corretamente decodificada e interpretada, pode ter um significado importante para as nossas vidas.

Bultmann optou pela segunda alternativa. Sua Teologia do Novo Testamento é uma tentativa de desenvolver uma hermenêutica existencial que seja capaz de extrair, dos textos míticos do primeiro século (o Novo Testamento), algum sentido importante para o homem do século 20. Todo o universo conceitual da filosofia existencial de Martin Heidegger, colega de Bultmann em Marburg, é colocado a serviço desse projeto hermenêutico: a existência fora da fé, ou segundo a carne, é uma existência inautêntica; a existência na fé, ou segundo o espírito, é a existência autêntica; a fé é, de certo modo, a decisão (um “salto no escuro” existencial, do tipo kierkegaardiano) de uma forma de existência para outra. E assim caminha a nossa vida.

Fiquei fascinado com a teologia de Bultmann e virei um bultmanniano. Traduzi seu artigo do Alemão para o Português (com a ajuda das traduções para o Inglês, do Francês e do Espanhol, que eu dominava melhor do que o Alemão). Quem revisou a tradução foi o Rev. Osmundo Affonso Miranda, professor de Novo Testamento em Campinas e meu mentor nos dois primeiros anos de seminário. Ele queria me convencer a fazer do Novo Testamento minha área de especialização. O Osmundo saiu do Seminário em meados de 1966, indo para os Estados Unidos. Fiquei sem mentor. Os eventos que se desenrolaram no primeiro semestre desse ano de 1966 (e que estão relatados em outros posts de meu blog) refletiram um pouco a ausência de apoio e aconselhamento de uma pessoa amiga, mas mais velha e experiente, que eu passei a ter a partir da saída do Osmundo do Seminário. Eu 1966 eu tinha 22 anos. Herdei dele vários livros que ele não quis levar para os Estados Unidos.

Um breve parêntese. Acabou de ser publicado nos Estados Unidos um livro extremamente detalhado e bem escrito sobre o pensamento de Bultmann, que chega a quase mil páginas: The Mission of Demythologizing: Rudolf Bultmann’s Dialectical Theology, de David W. Congdon (Fortress Press, lançado em 1 de Junho de 2015). Recomendo a leitura. Fim deste parêntese.

5. A Construção de um Novo Eu

Procurei, inicialmente, me dedicar à área do Novo Testamento, como Bultmann (e como o Osmundo havia me sugerido). Em 1967, depois de ter sido expulso em 1966 do Seminário Presbiteriano de Campinas, vim a estudar na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, no Morro do Espelho (Spiegelberg), em São Leopoldo, fiz um trabalho exegético para o Professor Gerhard Barth (*) acerca de uma passagem de Romanos que era central para Bultmann: Romanos 8:12-17. O título do trabalho (enorme, como sempre) foi: “Bultmann e a Exegese de kata sarkis [segundo a carne] e kata pneuma [segundo o espírito] em Romanos 8:12-17”.

Enfim… Parecia que meu destino estava traçado quando fui para Pittsburgh, fazer meu Mestrado no Pittsburgh Theological Seminary, em Agosto de 1967. Seria um teólogo (ou scholar) do Novo Testamento. Fiz até um esforço nesse sentido. No meu primeiro ano, escrevi uma exegese (também longa) para meu professor de Exegese do Novo Testamento, William F. Orr, sobre a narrativa da ressurreição de Jesus no Evangelho de Marcos (Marcos 16:1-8). Essa narrativa era tida por muitos como a descrição mais antiga no Novo Testamento dos acontecimentos que compõem a história da ressurreição. O título do meu trabalho foi: “The Gospel Resurrection Narratives: An Exegesis of Mark 16:1-8” (As Narrativas da Ressurreição nos Evangelhos: Uma Exegese de Marcos 16:1-8). Ousadamente, discordei da tese de que a narrativa (pericope) marcana da ressurreição fosse a mais antiga e mesmo mais confiável do Novo Testamento. Atribuí essas características à narrativa do Evangelho de João. Na realidade, o trecho que vai do versículo 9 até o fim do capítulo 16 de Marcos é hoje considerado uma interpolação posterior que não fazia parte dos manuscritos mais antigos do Novo Testamento. Ele é omitido na maior parte das edições e traduções críticas da Bíblia. Esse fato não empresta credibilidade aos oito versículos anteriores — pelo contrário.

No entanto, a partir do momento em que comecei a estudar História do Pensamento Cristão (História da Doutrina), com Ford Lewis Battles (1915-1979), o grande tradutor para o Inglês das Institutas da Religião Cristã, de João Calvino, na edição Library of Christian Classics, mestre que cobria o período antigo até a Reforma, e com Dietrich Ritschl (1929-), sobrinho neto do velho teólogo liberal alemão Albrecht Ritschl, que cobria o período moderno e contemporâneo, fiquei fascinado pela História das Ideias e pela Filosofia da Religião. A primeira disciplina investiga como é que a igreja veio a acreditar naquilo que hoje acredita, em especial diante dos desafios do pensamento não-cristão e do pensamento cristão desviante (heresia). A segunda disciplina investiga os fundamentos da fé cristã do ponto de vista epistêmico no contexto atual: que razões e evidências há, hoje, para continuar a acreditar na fé cristã, diante dos desafios da modernidade e da contemporaneidade? Em Pittsburgh meu interesse teológico se consolidou nessas duas áreas. Essa combinação não raro é letal para a preservação e manutenção de uma fé cristã ortodoxa, e o foi no meu caso.

Faço aqui um novo parêntese para dar uma ideia do que era (e ainda é) o Pittsburgh Theological Seminary. Ele resulta de várias fusões e consolidações de seminários presbiterianos anteriormente existentes, oriundos dos vários ramos em que a denominação se desdobrou, ao longo dos anos, à medida que os presbiterianos se dividiam e, posteriormente, se uniam de novo em sua conturbada história de cismas e reunificações. Sua última “encarnação”, na qual estudei, surgiu quando, em 1959, o Pittsburgh-Xenia Theological Seminary (pertencente à Igreja Presbiteriana na América do Norte), e o Western Theological Seminary (da Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América), ambos localizados em Pittsburgh, PA, se consolidaram, formando o seminário em sua atual “personalidade”, em decorrência da fusão das duas igrejas. Pittsburgh-Xenia tinha suas raízes no primeiro seminário teológico presbiteriano organizado em terra americana, em 1794 — dezesseis anos, e, portanto, antes do mais bem conhecido (e bem mais conservador) Princeton Theological Seminary. O seminário de Pittsburgh tem, hoje, portanto, mais de 220 anos a serviço do presbiterianismo. Quando lá estudei, de 1967 a 1970, esse número era quase 50 anos menor. Neste ano de 2015 foi comemorado o aniversário de 45 anos da formatura de minha turma de Mestrado — e 48 anos do meu ingresso no seminário.

Vários teólogos e professores famosos trabalharam lá. Além de Orr, Battles e Ritschl, já mencionados, Markus Barth (1915-1994), professor de Teologia do Novo Testamento, filho de Karl Barth (1886-1968, que doou ao seminário a escrivaninha em que seu pai trabalhou por longos anos), Hans Eberhard von Waldow (?-?), professor de Teologia do Velho Testamento, alemão que passou algum tempo no Brasil, na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), e John Henry Gerstner (1914-1996), professor de História da Igreja, um dos mais famosos defensores do conservadorismo presbiteriano na segunda metade do século 20, que acabou por deixar a Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América para ingressar na conservadora e ortodoxa Igreja Presbiteriana na América, criada em 1936 por John Gresham Machen (1881-1937), chamado de o fundamentalista mais erudito que o mundo já conheceu. Antes da consolidação mencionada de 1959, trabalharam no Western Theological Seminary dois professores que vieram a fazer parte dos luminares da chamada “Teologia de Princeton”: Archibald Alexander Hodge (1823-1886, filho do mais famoso teólogo americano, Charles Hodge, 1797-1878, de Princeton Theological Seminary), que, depois de vários anos em Pittsburgh, foi chamado para suceder o pai naquele seminário, e Benjamin Breckinridge Warfield (1851-1921), que, também foi chamado para Princeton, depois de vários anos em Pittsburgh. Hodge, o filho, e Warfield são autores da chamada “Teoria da Inspiração Plenária” da Bíblia, ainda muito respeitada por fundamentalistas e conservadores até hoje. Vide o longo artigo deles na revista Presbyterian Review, Abril 1881, pp. 225-260, em http://www.bible-researcher.com/warfield4.html. Fim do novo parêntese.

6. O Princípio e o Fim da Teologia Liberal

Neste capítulo vou sucintamente resumir a contribuição de Schleiermacher, Troeltsch, e Harnack — três dos mais importantes teólogos liberais.

A. Schleiermacher

A Teologia Liberal é filha das críticas feitas pelo Iluminismo à religião e à teologia tradicional. Friedrich Schleiermacher (1768-1834) é considerado o pai da teologia moderna e o fundador da Teologia Liberal. Karl Barth (um dos grandes críticos da Teologia Liberal) disse dele o seguinte:

“O primeiro lugar na história da teologia da época mais recente pertence, e sempre pertencerá, a Schleiermacher. Ele não tem rival. . . . Schleiermacher não criou escola, não deixou discípulos: ele fundou toda uma era, e todos nós somos alunos dele.” (From Rousseau to Ritschl, p. 306).

Como fundador da Teologia Liberal, Schleiermacher lhe deu o tom com o qual influenciou o restante da teologia do século 19.

Antes de discutir esse tom, é bom esclarecer que Schleiermacher foi o primeiro teólogo na história do Cristianismo:

  • A perceber quão radical e profundo foi o desafio das críticas do Iluminismo à teologia cristã;
  • A concluir que era impossível continuar fazendo teologia da mesma forma que antes;
  • A extrair de uma parte da tradição cristã (o Pietismo) os elementos para a construção de um outro edifício teológico: a Teologia Liberal;
  • A construir uma teologia que se alicerça, não na razão, ou na revelação, ou na tradição, como tais, mas no sentimento, usando a razão, a revelação e a tradição para esclarecer os sentimentos que produzem a experiência religiosa.

O tom que Schleiermacher deu à Teologia Liberal é, no meu entender, o seguinte: ele promoveu uma revolução copernicana na teologia no início do século 19 ao defender a tese de que a teologia — inclusive a bíblica — tem que ver com o homem, e não com Deus. Para ele, a teologia se caracteriza, não como uma discussão da revelação de Deus ao homem, mas como uma discussão dos esforços do homem para alcançar a Deus, vale dizer, para transcender seu sentimento de dependência, suas limitações, sua finitude.

Da mesma forma que Copérnico percebeu que os diversos problemas da astronomia não seriam resolvidos se a Terra fosse considerada o centro do sistema planetário, e ali colocou o Sol, Schleiermacher percebeu que os diversos problemas que o Iluminismo colocou para a teologia não seriam resolvidos se Deus fosse considerado o foco da reflexão teológica, e ali colocou o Homem, seus sentimentos, sua experiência de dependência, sua frustração com sua limitação, sua impotência diante de sua finitude.

A partir de Schleiermacher, e durante toda a duração da Teologia Liberal, que só terminou (se é que terminou… — para mim, Bultmann é um liberal) nas primeiras décadas do século 20, em grande parte em decorrência da crítica barthiana, a teologia passa a ser a discussão dos esforços humanos — quase sempre frustrados (o que não quer dizer que sejam inúteis) — de buscar o infinito.

É através do estudo do homem, de sua vida, de sua experiência, de seus sentimentos, que se pode chegar a alguma compreensão, mas ainda assim muito limitada, do que se entende por Deus — o Infinito.

A principal característica do homem, e que se revela de forma cabal em sua experiência, é sua finitude, evidenciada no fato de que sua vida tem fim, tem um limite que não depende dele próprio. A experiência humana de finitude implica, pois, também a experiência de dependência. Buscar a Deus é buscar o Infinito que está além de nossa finitude, o Ilimitado que nos impõe limites, é reconhecer o nosso caráter dependente.

Para cristãos, em especial os mais tradicionais, Schleiermacher capitulou ao Iluminismo, quando se recusou a considerar a Bíblia como revelação divina e regra de fé e prática, e relegou as confissões e as doutrinas a papel secundário.

Para os iluministas, Schleiermacher capitulou ao Romanticismo, abandonando o racionalismo da ciência e da filosofia e sucumbindo ao sentimento, à emoção, ao belo, à arte.

De certo modo Schleiermacher deixou aberta para Ludwig Feuerbach a possibilidade de dizer, de forma chistosa, que a teologia tradicional afirmava que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, enquanto a teologia moderna, por seu lado, afirmava que o homem criou Deus, ainda que como contraste, à sua imagem e semelhança…

A religião, como entendida por Schleiermacher, é elemento constitutivo e irredutível da natureza humana, que, como tal, não pode ser reduzido, de um lado, à razão ou ao intelecto, ou de outro lado, à ação moral.

Ao colocar o proprium da teologia no sentimento, Schleiermacher achou que não só respondia às críticas do Iluminismo e do Kantianismo, mas, também, que havia tornado a religião imune às críticas da razão e da moralidade.

E o infinito e ilimitado que faz com que nós, os seres humanos, nos reconheçamos tanto finitos como limitados não é uma criação humana: ele também é dado, da mesma forma que nossa experiência de finitude, limitação e dependência

Assim, Deus não é uma projeção humana, mas uma realidade, que, porém, não nos é dado conhecer a não ser como enigma, como reflexo, como contraste e negação de nossa finitude, limitação e dependência. Deus é uma realidade que escolheu se esconder de nós (Deus absconditus).

B. Troeltsch

Um dos últimos grandes representantes da Teologia Liberal — na realidade, o penúltimo — foi Ernst Troelstch (1865-1923).

No tocante ao seu entendimento da religião, em si, e de Deus, Troeltsch basicamente repete os pontos de vista de Schleiermacher

A essência da religião está no homem, não em Deus: entender a religião é entender o anseio e a busca pelo infinito por parte do ser humano e o sentimento de finitude, limitação e dependência que essa experiência produz, que é o sentimento religioso por excelência. Conhece-se Deus ao conhecer os limites do homem — inclusive os seus limites cognitivos.

Quando Troeltsch fala em revelação divina ele não se refere a um movimento de Deus em busca do homem, de cima para baixo, como se fosse, mas, sim, a um movimento, de baixo para cima, por assim dizer, do homem em busca de Deus, e ao que essa busca nos revela sobre a natureza do homem e, negativamente, e de forma obscura, sobre a natureza de Deus.

A revelação que acontece é, portanto, da natureza do homem em sua busca pelo infinito — buscar por aquilo que se contrasta com ele e contrapõe a ele.

Cada religião revela um aspecto dessa busca. Troeltsch não estava interessado apenas no Cristianismo: interessava-se por todas as religiões e sua evolução — vale dizer, sua história. É considerado um dos fundadores da chamada Religionsgeschtliche Schule (Escola [Teológica] Voltada para Estudar [e Comparar] a História das Religiões).

Troeltsch assim colocou a ênfase na história, na relação do Cristianismo com a sociedade e o estado, e no desenvolvimento dessa relação. Dá mais importância ao pensamento ético-social-político-econômico do Cristianismo do que ao pensamento dogmático, à teologia sistemática

Por isso Troeltsch se propõe a estudar a religião cristã dentro do quadro do estudo comparativo das religiões, tanto históricas como atuais, em sua rica diversidade.

Em decorrência desse estudo, Troeltsch viu o Cristianismo como um movimento religioso que, como tal, deve ser analisado:

  • No contexto social, político, econômico e religioso no qual surgiu e se desenvolveu;
  • No contexto de suas relações movimentos não-religiosos com os quais veio a interagir;
  • No contexto do estudo as Religiões Comparadas

Por isso, Troeltsch se interessou (como já observado) muito mais pela História da Igreja e pela História do Pensamento Cristão (em especial na área ética / social / político / econômica) do que pela Teologia Sistemática e a História do Dogma.

Em outras palavras, seu interesse pela História da Igreja está muito mais voltado para o que se dá “do Cristianismo para fora” do que “dentro do Cristianismo em si”.

Se chamarmos de “mundo” tudo aquilo que, em um determinado momento, não é “Cristianismo”, podemos dizer que o que interessa a Troeltsch é mais a relação entre o Cristianismo e o mundo do que o desenvolvimento interno da Igreja Cristã e suas estruturas próprias, seus sacramentos, seus rituais, sua liturgia, seus credos e confissões, seus dogmas, suas doutrinas. Ou seja: interessa-lhe seu pensamento e sua prática no âmbito ético / social / político / econômico.

Interessa-lhe em especial descobrir um modelo de interação do Cristianismo com o mundo, que ele definiu como uma tensão dialética entre as seguintes atitudes, em relação ao mundo:

  • Indiferença: convivência relativamente pacífica, um aqui, o outro lá
  • Rejeição: recusa de convivência, crítica, combate
  • Envolvimento: interação, interpenetração, transformação mútua

No terceiro estágio desse modelo há, fatalmente, interpenetração e, consequentemente, adaptação e mudança da herança recebida, pela necessidade de lidar com novas realidades (“acomodação”).

Quase sempre, na história do Cristianismo, essas três atitudes conviveram uma com as outras no seio da Igreja, mas não sem tensões e conflitos. A partir do Século 6, no Ocidente, com a queda do Império Romano Ocidental, a terceira atitude veio a prevalecer, sem que, entretanto, as outras duas atitudes deixassem de existir e até mesmo criticar severamente a acomodação.

A Reforma Protestante produz uma luta entre duas visões distintas da acomodação. Para Troeltsch o verdadeiro início da Era Moderna não se dá com o Renascimento e a Reforma, mas sim, com o Iluminismo.

Dados os seus interesses e seu referencial teórico, Troeltsch conclui que na Reforma não houve uma mudança de atitude, alterando-se só detalhes da vida interna da igreja, com pequenos ajustes na atitude adotada pela igreja para com o mundo, que, porém, continuou a ser de acomodação, i.e., de interação, interpenetração, e transformação.

Em compensação, no Iluminismo houve uma clara revolução que totalmente inverteu o equilíbrio de poder entre o Cristianismo e o mundo.

O mundo, de dominado, e condenado a viver num universo em que todas as dimensões, até mesmo a política e a econômica, tinham uma natureza de certo modo sagrada, virou totalmente a mesa e conseguiu dominar o Cristianismo, condenando-o a viver num universo secularizado ou mundano.

A questão que Troeltsch coloca é como pode o Cristianismo sobreviver, depois de tantos séculos em que foi a verdade absoluta, em um ambiente em que não há absolutos nem verdades, mas só instituições em evolução através do tempo?

Entre as verdades que sucumbiram no século 18 está a de que o Cristianismo é único, diferente das demais religiões e instituições, porque tem origem sobrenatural e é mantido graças à providência de seu Criador: todas as religiões reivindicam a mesma coisa.

Consequentemente, o desafio do Cristianismo nos séculos posteriores ao Iluminismo é manter-se e encontrar seu espaço em um ambiente em que ele não é senão uma dentre várias religiões em posição de relativa igualdade, e, num clima de secularização total.

O desafio é tanto mais difícil quanto até mesmo para os cristãos “o mundo” passou a ter maior importância do que “a igreja”.

A posição fundamentalista, intransigente, está fadada a fracassar na prática. A se insistir nela, só se pode terminar em desastre. A história do Cristianismo é altamente instrutiva a esse respeito. Ela é, olhada de longe, como um compromisso e uma acomodação constante entre as demandas utópicas do Reino de Deus e as permanentes condições da vida real no mundo.

C. Harnack

Adolf von Harnack (1851-1930) foi o último grande teólogo liberal.

Embora tenha vivido até 1930, Harnack atuou, até 1900, mais como historiador e teólogo, e, a partir de 1900, como homem de ação — gestor — que se dedicou mais a importantes atividades culturais, políticas e administrativas, tais como:

  • Reitor da Universidade de Berlin
  • Diretor da Biblioteca Nacional Alemã
  • Presidente da Academia Alemã de Ciências
  • Principal Consultor do Kaiser para assuntos culturais

Como historiador, a principal obra de Harnack é História do Dogma, 3 volumes no original Alemão e 7 volumes na tradução Inglesa, em que tem 2.407 páginas, indo até Lutero (Harnack era Luterano). Ele escreveu essa obra de 1894 a 1898.

Como teólogo, sua principal obra é A Essência do Cristianismo (que recebeu o título, em Inglês, de What is Christianity? (O Que é o Cristianismo?), escrita nos anos 1899-1900.

Como historiador, Harnack é uma unanimidade: é considerado simplesmente o maior historiador que a Igreja já teve. Como teólogo, foi muito controvertido e muito criticado.

Eis o que diz Wilhelm Pauck em seu livro Harnack and Troeltsch: Two Historical Theologians (p. 8):

“A História do Dogma terá um lugar permanente entre as obras primas da literatura teológica. Ainda que ela venha a ser ultrapassada em partes específicas, será sempre considerada, em seu todo, o trabalho mais criativo de interpretação histórica jamais feito da igreja e de sua evolução teológico-dogmática, concebido com grandeza e executado com habilidade inigualável, tanto no que diz respeito ao conteúdo como à forma.”

Embora Harnack seja unanimemente considerado o maior historiador que a Igreja já teve, sua tese principal, em relação à História do Dogma e da Igreja, também é controvertida e muito criticada. Seu livro teológico mais importante é um resumo e uma sistematização dessa sua tese.

a. O Historiador

Sua tese histórica é que o foco da mensagem de Jesus ao longo de seu ministério é a chegada do Reino de Deus, enquanto o foco da mensagem dos apóstolos, depois da morte de Jesus, é o significado da pessoa de Jesus, em especial de sua morte e ressurreição, e não mais a mensagem que Jesus pregou enquanto vivo. Isso quer dizer que a religião de Jesus (“Jesusismo”) é uma variante não legalista e não ritualista da religião judaica, enquanto o Cristianismo é uma invenção dos apóstolos.

O Evangelho de João e as Cartas de Paulo são o principal instrumento dessa transformação: o conteúdo do quarto Evangelho é teológico, não histórico, e Paulo, que não conheceu Jesus, teve papel importante nessa mudança. Sob sua tutela, e sob a influência do pensamento helenístico, o Cristianismo foi se tornando, a partir do século 2, uma religião doutrinária e dogmática, que se afasta da religião de Jesus e a nega.

As principais doutrinas definidas nos Concílios de Niceia e de Calcedônia, que serviram de base para o desenvolvimento da ortodoxia cristã, não tinham base alguma na pregação de Jesus, como, por exemplo:

  • A Divindade de Cristo, ou seja, a tese de que Jesus de Nazaré, sem deixar de ser plenamente homem, também é plenamente Deus, e, portanto, eterno, tendo sido gerado (não criado) por Deus Pai antes da criação do mundo, convivendo, assim, em uma só pessoa, as duas naturezas, a humana e a divina;
  • A Trindade, doutrina que se tornou necessária em decorrência da tese da Divindade de Cristo;
  • A Trindade é a tese de que uma única natureza divina é compartilhada por três pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito, sendo Deus, portanto, trino, sem que isso implique em triteísmo (três Deuses) e signifique, consequentemente, negação do monoteísmo (um só Deus) herdado dos Judeus
  • A tese da Divindade do Espírito parece ter sido uma conclusão meio de última hora: o Espírito foi também considerado divino e eterno, tendo “emanado” de Deus antes da criação do mundo.

A Igreja Ocidental acrescentou a cláusula, que não consta das decisões de Calcedônia, e que nunca foi aceita pela Igreja Oriental, de que o Espírito Santo emanou do Pai e do Filho: esta a famosa cláusula filioque, que teve papel muito importante na teologia Medieval e no cisma do Ocidente com o Oriente.

Várias outras doutrinas, como:

  • Igreja (vários ofícios, estrutura hierárquica, centralização das decisões no Papado, a afirmação de que fora da Igreja não há salvação, etc.);
  • Sacramentos (Batismo, Eucaristia, Confirmação, Penitência, Unção de Enfermos, Ordenação para o Sacerdócio e Matrimônio);
  • Outras (Purgatório, Oração pelos Mortos, intercessão de Maria e dos Santos, etc.);

criaram dogmas que nada têm que ver com a mensagem pura e simples do Jesus histórico.

Segundo Harnack, que era luterano, nem mesmo Lutero e os principais Reformadores, que tentaram saltar sobre a Idade Média e voltar para o Cristianismo Primitivo, estavam dispostos a recuperar a religião de Jesus, retomando apenas temas complexos da teologia paulina, como, por exemplo, justificação pela graça, fé como dádiva divina, predestinação, expiação de pecados pela morte de Cristo na Cruz, a ressurreição de Cristo, sua ascensão e sua Segunda Vinda

Ao aplicar à Bíblia o método histórico-crítico, que ele herdou de teólogos liberais anteriores, Harnack a considera como livro puramente humano, vindo, portanto, a rejeitar a historicidade de qualquer relato que tenha qualquer conotação sobrenatural:

  • O nascimento virginal de Jesus;
  • Os milagres atribuídos a Jesus e aos apóstolos;
  • A ressurreição e a ascensão de Jesus; etc.

Harnack também rejeitou a tese tradicional de que o fato de Jesus ter sido batizado e ter participado de uma ceia pascal represente a instituição dos sacramentos.

Harnack encontra alguns elementos que considera históricos, que lhe permitem definir a mensagem (não os detalhes da vida) de Jesus, apenas nos três Evangelhos Sinóticos (os três primeiros: Mateus, Marcos e Lucas). Isso não quer dizer, porém, que considere histórica toda a narrativa dos Sinóticos. Considera como interpolação teológica posterior a maior parte das referências ao cumprimento de profecias (“Isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito…”), as referências que sugerem que Jesus pudesse se considerar divino, etc.

Por não encontrar nos Evangelhos, mesmo nos Sinóticos, material suficiente para sequer esboçar uma história da vida de Jesus, Harnack não se insere na chamada “Busca do Jesus Histórico”, tão magistralmente historiada por Albert Schweitzer em The Quest of the Historical Jesus (1906). É por isso que Schweitzer mal lhe dá atenção em seu livro clássico acerca da tentativa de vários autores do século 18 e 19 de reconstruir o que veio a se chamar “a história do Jesus Histórico”

Tendo se convencido, através de seu trabalho sobre a história da Igreja no período apostólico, que a mensagem de Jesus é totalmente diferente da mensagem e da teologia da igreja que veio a ser criada pelos apóstolos, e que Jesus não teve a menor intenção de criar, nem sequer antecipou, uma nova religião, o desafio de Harnack, como historiador, é explicar como um Jesus não divino e morto pôde se tornar a figura central de uma instituição eclesiástica complexa, hierarquizada, autoritária, com práticas e doutrinas que nada deviam a Jesus.

Harnack desejava enfrentar esse desafio, que, para ele, implicava total rejeição da estrutura institucional, prática e doutrinária (dogmática) da igreja cristã criada pelos apóstolos, sem, no entanto, perder, nesse processo, o que ele via como a “essência” do Cristianismo, a saber, a mensagem de Jesus.

Por isso, logo depois de terminar a História do Dogma, elaborou um curso, publicado, sobre A Essência do Cristianismo. Harnack não usa o termo “Jesusismo”: ele usa o termo “Cristianismo” para a religião de Jesus, e reserva o termo “Catolicismo” para se referir à religião que foi criada pelos apóstolos e por seus sucessores.

A Reforma Protestante, no entender dele, deveria, ao rejeitar o Catolicismo, ter optado claramente pelo Cristianismo de Jesus, isto é, pela religião de Jesus.

Harnack achava que estava fazendo, no limiar do século 20, aquilo que a Reforma Protestante do século 16 deveria ter feito e não fez: rejeitar todo o arcabouço institucional, prático, litúrgico, e, especialmente, doutrinário da Igreja (Católica E Protestante) e voltar à pura e simples mensagem de Jesus, que contém o essencial do Evangelho.

Por isso ele se considerava cristão e protestante, e acreditava que estava prestando um serviço de valor inestimável para a Igreja — serviço esse que a igreja a que pertencia rejeitou.

Harnack e Troeltsch são, ambos, defensores do método histórico para analisar o desenvolvimento do Cristianismo.

Mas Troeltsch vê de forma positiva a acomodação da mensagem cristã ao meio cultural em que ela era apresentada, a penetração, na doutrina e na teologia da igreja, de elementos oriundos de um contexto que, até ali, era estranho ao Cristianismo — mas que passava a se integrar a ele.

Harnack, no entanto, não vê essa acomodação como positiva — muito pelo contrário. Apesar da natureza reduzida das fontes históricas, e de sua contaminação por elementos teológicos, Harnack acredita ser possível chegar ao “núcleo central” da mensagem de Jesus, removendo as “cascas” que lhe foram sendo acrescentadas.

O que ele encontra é, admitidamente, pouco — mas, em sua qualidade, ele considera esse núcleo sublime — quiçá divino, num sentido metafórico.

b. O Teólogo

Segundo Harnack, o núcleo da mensagem de Jesus é o seguinte:

  • “O Reino de Deus e sua vinda”
  • “Deus como Pai e o valor infinito da alma humana”
  • “O amor, uma justiça mais elevada”

Quanto ao Reino de Deus e sua vinda, Harnack ressalta que havia, na época de Jesus, duas visões do Reino de Deus: uma, escatológica, a outra, imanente. Não se distinguia muito claramente, então, entre uma e outra. Entre os ditos atribuídos ao Jesus há elementos das duas. A visão escatológica prevalecia entre seus contemporâneos, mas a visão que Jesus privilegiava era a imanente. Para Jesus, o Reino de Deus não é uma noção que se refere ao futuro: o Reino de Deus, em um sentido importante, já está presente. As parábolas de Jesus são mais importantes aqui do que os outros ditos acerca do Reino de Deus que são atribuídos a ele “O Reino de Deus vem quando o indivíduo o aceita e deixa que ele entre em sua alma, passando a controla-la. O Reino de Deus é de Deus, mas ele é um reino em que Deus governa o coração do indivíduo. Entrar no Reino de Deus é estabelecer uma relação especial com Deus, através de Jesus, vale dizer, pela aceitação de sua mensagem. Essa relação com Deus é ativa, dinâmica, “gerundial”, algo que está sempre acontecendo — não algo que se dá através da aceitação de doutrinas e dogmas e passa a ser estático e imutável. Embora ela envolva um conduta diferente, ela não se limita a um sistema de ética.

Quanto à teoria de Deus como Pai e o valor infinito da alma humana, Harnack vê nela não só parte da essência do Cristianismo, mas a essência mesma da religião: ver Deus como Pai, como quem cuida, apoia e ajuda, e não como Juiz, como quem vigia, julga e condena — e ver a alma humana como algo de valor infinito e inestimável: é nela que Deus habita e é através dela que ele nos transforma. “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”

Quanto à teoria de que o amor é uma justiça mais elevada, Harnack concorda com Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”. O amor não é um conjunto de regras, mas o foco em uma disposição e uma intenção pura. O amor deve ser a única raiz e a única motivação de nossas ações. É por isso que Jesus pode colocar o amor a Deus e o amor ao próximo lado a lado.

A religião é a alma da moralidade, e esta o corpo da religião. Dessa forma Jesus redefine a esfera do ético de uma forma que ninguém antes dele havia feito. Comparada com a forma em que o Judaísmo definia o ético, a visão de Jesus é um progresso que só pode ser descrito como incomparável — incomensurável.

Harnack discute ainda nesse livro a questão da relação entre o Evangelho e o mundo. Para ele, o asceticismo, a renúncia do mundo, não tem nenhum lugar no Cristianismo de Jesus. Pelo contrário: Jesus foi acusado de conviver com comilões e com beberrões e de ser tolerante com prostitutas e adúlteras.

Também não tem lugar no Evangelho de Jesus o confronto com o mundo, a visão do mundo como um lugar de conflito e combate. O mundo, para Jesus, é lugar de amor e serviço ao próximo.

Essa afirmação o leva a discutir a questão da relação entre o Evangelho e o pobre. “Ama o teu próximo como a ti mesmo”. Essa a essência do ensino de Jesus em relação à pobreza. Não se trata de casuísmos e regrinhas, mas de uma atitude básica. “As pessoas não devem falar de amor ao próximo se permitem que pessoas do seu lado passem fome, vivam em miséria” (Harnack, referindo-se ao núcleo do chamado “Evangelho Social”, que ele defendeu). “O objetivo do Evangelho hoje é transformar um socialismo que se nutre de conflito entre classes em um socialismo que se alicerça na consciência de uma unidade espiritual da humanidade” (Harnack, idem).

O Evangelho de Jesus não nos oferece orientação sobre como mudar a estrutura política e econômica da sociedade: ele se posiciona acima de questões mundanas relativas ao desenvolvimento. O Evangelho está preocupado, não com mudanças estruturais na sociedade, mas com a alma do ser humano, com o estabelecimento de uma unidade espiritual no seio da humanidade.

Ao chegar ao final do livro, Harnack discute a questão da relação entre o Evangelho, a cultura e a civilização. O Evangelho de Jesus não visa o desenvolvimento cultural e o progresso da civilização. Ele visa a criação de uma rede de serviço ao próximo.

Quanto ao papel do dogma e da doutrina no Cristianismo, Harnack não deixa dúvida: o Evangelho de Jesus não é um sistema de doutrina. Fazer a vontade de Deus amando e servindo o nosso próximo é mais importante do que estar a declamar e endossar credos e confissões.

Harnack conclui seu livro, num tom de aparente contradição, falando sobre o Evangelho, o tempo e a história. Surpreendentemente para um historiador, Harnack vê o Evangelho de Jesus como transcendendo o tempo e a história. Isso acontece, segundo ele, porque a mensagem de Jesus se dirige ao homem, que, em todo lugar e em todo tempo, é sempre o mesmo.

7. O Legado da Teologia Liberal

Dado o caráter da Teologia Liberal, especialmente como revelado em Schleiermacher, Troeltsch e Harnack, não é difícil entender a ameaça que ela colocava ao Cristianismo Ortodoxo.

  • Para o Liberalismo, o Cristianismo não é uma religião única e totalmente diferente de outras: na verdade, ele é uma religião histórica, como todas as outras;
  • A evolução histórica do Cristianismo se deu em contato com o seu ambiente, contato através do qual ele deu e recebeu, influenciou e foi influenciado, numa dialética de acomodação;
  • Na visão liberal, o Cristianismo, como religião, não se baseia numa revelação de Deus para o homem, mas, sim, na busca do homem pelo infinito;
  • Segundo o liberal, conhecer a Deus é, na realidade, conhecer os sentimentos que levam o homem a tentar transcender sua limitação, sua dependência, sua finitude;
  • O núcleo essencial do Cristianismo está localizado na mensagem ética de Jesus que afirma que o amor a Deus se expressa no amor ao próximo;
  • A ética cristã não consiste de uma série de princípios ascéticos que determinam o afastamento do mundo, mas, sim, numa disposição e intenção pura voltada para implantar a unidade espiritual entre os homens e para criar uma rede básica de serviço ao próximo;
  • No Evangelho simples de Jesus (em contraposição à ortodoxia complexa do Catolicismo) dogmas e doutrinas não têm lugar, sendo substituídos pelo amor a Deus que se expressa no serviço ao próximo.

8. Considerações Finais

Espero que tenha ficado claro, ao longo deste artigo, que o Cristianismo, sendo uma religião que se alicerça num livro que os cristãos acreditam conter a revelação divina de regras de fé e prática, tem a obrigação de interpretar o que esse livro espera que eles creiam e como ele espera que se conduzam.

Há razoável consenso de que o processo de interpretação requer normas que, em seu conjunto, constituem a disciplina chamada Hermenêutica.

Em se tratando de textos, a Hermenêutica em geral distingue o gênero dos textos. Narrativas, em regra, devem ser interpretadas literalmente — a menos que contenham elementos maravilhosos ou miraculosos que, no contexto em que se dá a interpretação, sejam considerados indignos de crença. Neste caso, frequentemente se opta por uma interpretação não literal que tenta encontrar, no texto, sentidos mais profundos, quiçá espirituais ou éticos — aquilo que os medievais chamavam de sensus plenior — sentido mais pleno.

O problema, quando se deixa de lado o sentido literal do texto, é que as interpretações que buscam o sentido mais profundo frequentemente divergem entre si sem que haja critérios que permitam adjudicar qual dessas interpretações é a mais próxima da verdade, a que mais bem revela aquele que pode ser chamado de o sentido natural (ainda que não literal) do texto. Assim, se produzem divergências que levam a conflitos.

Espero que o artigo deixe claro que, dados esses fatos, divergência e conflito são coisas naturais no Cristianismo (não só no Presbiterianismo) — mas que representam constantes ameaças para ele. O seu título, “Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo”, aponta para essa razão. O foco do artigo é que, para se manter relevante aos diversos contextos históricos e geográficos em que penetra, o Cristianismo precisa de alguma forma reinterpretar os seus escritos sagrados para se acomodar aos novos contextos, desincentivando, ou mesmo abandonando, uma leitura literal de suas Escrituras. Essa acomodação, porém, que é a proposta básica dos vários “modernismos” que a cada época aparecem, pode levar, e em vários momentos já levou, à perda da identidade e, portanto, da continuidade do Cristianismo. Por isso os “fundamentalistas” se opõem tão ferozmente a ela. Eles estão lutando pelo que entendem ser a preservação de sua religião como algo verdadeiro e relevante e que tem interesse além de meramente histórico.

Em São Paulo, 4 de Julho de 2015. [Revisado em 24 de Março de 2019.]

(*) Na versão original deste trabalho, eu, por lapso, dei o prenome desse professor como sendo “Markus Barth”. Seu prenome é “Gerhard Barth”, como agora está no texto. Markus Barth, filho do grande Karl Barth, foi meu professor de Novo Testamento no Pittsburgh Theological Seminary. Dois especialistas em Novo Testamento com o mesmo sobrenome famoso me levaram ao erro. Agradeço ao Pastor Werner Dietz, meu ex-colega na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em São Leopoldo, RS, em 1967, ter chamado a minha atenção para a troca de prenomes, através de e-mail de 23 de Março de 2019.

Ainda o Casamento Gay (agora a propósito de decisão da Suprema Corte americana)

Comento abaixo um artigo escrito por John MacArthur (que eu não conheço), com o título “Uma carta aberta aos pastores sobre o casamento gay nos EUA”. Encontrei o artigo postado no Facebook via José André (meu amigo de longa data, presbítero da Igreja Presbiteriana de Santo André, na qual cresci), que o retirou (já traduzido por uma instituição chamada “Olhai e Vivei”) do Blog “Bereianos – Apologética Cristã Reformada” disponível no seguinte endereço: http://bereianos.blogspot.com/2015/06/uma-carta-aberta-aos-pastores-sobre-o.html#.VZKiXGDIie4. O blog aparentemente o retirou da Revista Monergista. O local original de publicação em Inglês foi uma fonte chamada “The Master’s Seminary”. Não conferi nada disso: as informações estão contidas no blog.

Como digo abaixo, não concordo com quase nada que diz o artigo, que passo a transcrever, para a seguir colocar meus comentários (que também coloquei no blog e no Facebook).

[Início do artigo original traduzido]

A Suprema Corte neste país [EUA] promulgou seu julgamento. As manchetes informam que um pouco mais da metade dos juízes da Suprema Corte consideram a liberdade de orientação sexual, um direito para todos os americanos. Esta troca de valores não aparece como uma surpresa para nós. Já sabemos que o deus deste século cega as mentes daqueles que não acreditam (2 Cor. 4:4). O dia 26 de junho de 2015 fica como um marco americano de demonstração desta antiga realidade.

Nos próximos dias, irão esperar de você, como um pastor, que forneça comentários sensatos e conforto para o seu rebanho. Este é um momento crítico para os pastores, e surge como um lembrete de que uma formação adequada é crucial para um pastor. Estou escrevendo esta mensagem curta como de um pastor para outro. Os meios de comunicação estão cheios de atualizações, e eu não preciso juntar a minha voz nessa briga. Em vez disso, eu quero ajudá-lo a pastorear sua igreja nesse momento confuso. Além dos artigos úteis no blog Preaching and Preachers, eu também quero transmitir os pensamentos abaixo que, creio eu, vão ajudar a enquadrar a questão de uma maneira bíblica.

1 – Nenhum tribunal humano tem a autoridade de redefinir o casamento, e o veredicto de ontem não muda a realidade do casamento que foi ordenado por Deus. Deus não foi derrotado nesta decisão, e todos os casamentos serão julgados de acordo com fundamentos bíblicos no Ultimo Dia. Nada irá prevalecer contra Ele (Provérbios 21:30) e nada vai impedir o avanço de Seu Reino (Dan 4:35).

2 – A Palavra de Deus pronunciou seu julgamento sobre toda nação que redefiniu o mal como o bem, a escuridão como a luz, e o amargo como o doce (Isaías 5:20). Como uma nação, os EUA continuam a colocar-se na mira do julgamento. Como proclamador da verdade, você é responsável por nunca comprometer estas questões. De todas as maneiras, você deve se manter firme.

3 – Esta decisão prova que estamos claramente em minoria, e que somos um povo separado (1 Pedro 2: 9-11; Tito 2:14). Como escrevi no livro “Why Government Can’t Save You”, as normas que moldaram a cultura ocidental e a sociedade americana deram lugar ao ateísmo prático e ao relativismo moral. Esta decisão simplesmente acelerou a taxa de declínio dos mesmos. A moralidade de um país nunca vai ser mais alta que a moralidade de seus cidadãos, e sabemos que a maioria dos americanos não têm uma cosmovisão bíblica.

4 – A liberdade religiosa não é prometida na Bíblia. Na América, a Igreja de Jesus Cristo tem desfrutado de uma liberdade sem precedentes. Isso está mudando, e a nova norma pode, na verdade, incluir a perseguição (o que será algo novo para nós). Nunca houve um momento mais importante para homens talentosos ajudarem a liderar a igreja ao lidar, de forma competente, com a espada do Espírito (Efésios 6:17).

5 – O casamento não é o campo de batalha final, e os nossos inimigos não são os homens e mulheres que procuram destruí-lo (2 Coríntios 10:4). O campo de batalha é o Evangelho. Tenha cuidado para não substituir a paciência, o amor e a oração por amargura, ódio, e política. A medida que você guiar cuidadosamente seu rebanho afastando-o das armadilhas perigosas que aparecem à frente, lembre-os do imenso poder do perdão por meio da cruz de Cristo.

6 – Romanos 1 identifica claramente a evidência da ira de Deus sobre uma nação: a imoralidade sexual seguida da imoralidade homossexual culminando em uma disposição mental reprovável. Esta etapa mais recente nos lembra que a ira de Deus veio na íntegra. Vemos agora mentes reprováveis em todos os níveis de liderança – no Supremo Tribunal Federal, na Presidência, nos gabinetes, na legislatura, na imprensa e cultura. Se o diagnóstico da nossa sociedade está de acordo com Romanos 1, então, também devemos seguir a receita encontrada em Romanos 1 – não devemos nos envergonhar do evangelho, pois é o poder de Deus para salvação! Neste dia, é nosso dever divino fortalecer a igreja, as famílias, e testemunhar o evangelho ao tirar os absurdos pragmáticos que distraem a igreja de sua missão ordenada por Deus. Homossexuais (como todos os outros pecadores) necessitam ser avisados do juízo eterno iminente e precisam ter o perdão, a graça e a nova vida, amorosamente oferecidos através do arrependimento e da fé no Senhor Jesus Cristo.

Em última análise, a maior contribuição ao seu povo será a de mostrar paciência e uma confiança inabalável na soberania de Deus, no Senhorio de Jesus Cristo, e na autoridade das Escrituras. Mire seus olhos no Salvador, e lembre-os de que quando Ele voltar, tudo será corrigido.

Estamos orando para que você proclame firmemente a verdade, e que se posicione de maneira inabalável em Cristo.

[Final do artigo original transcrito]

Com todo o respeito, discordo de basicamente tudo. Os Estados Unidos da América, enquanto entidade política, não são um país religioso, muito menos cristão. São um país em que a religião é separada do estado, que, assim, só pode ser entendido como laico ou não religioso.

O que acabou de acontecer na Suprema Corte americana foi uma decisão jurídica que afirmou a validade, em todo o território nacional, de contratos de união civil (normalmente chamados de “casamentos civis”) entre duas pessoas não casadas de qualquer sexo (ou gênero, se preferem) — e, acrescente-se, raça, cor, nacionalidade, religião, preferência política, etc. No momento, era apenas o primeiro desses quesitos que estava em jogo — sexo ou gênero. Mas já houve época em que casamento civil interracial era banido. Provavelmente, num futuro não muito distante, o estado vai liberar casamento entre mais de duas pessoas (a chamada união poliafetiva ou poliamorosa, antigamente chamada de poligamia).

Não há nada antirreligioso nessas decisões, como não havia na decisão concernente ao divórcio — embora os católicos e os evangélicos conservadores também tenham protestado. O estado está regulando contratos de união civil entre duas (e oportunamente mais de duas) pessoas não casadas (e oportunamente já casadas — nada havendo que impeça uma pessoa de ter múltiplas uniões civis). Não se está desafiando Deus, ou a Bíblia. Não nos esqueçamos de que os Patriarcas da Fé do Velho Testamento, Abraão, Isaque e Jacó, eram todos “poliamorosos” ou polígamos — e alguns heróis do Velho Testamento chegaram até mesmo a ter conjunções carnais, como diz o pessoal do direito, incestuosas).

Cada igreja ou cada grupo social tem total liberdade de definir um casamento mais significativo ou profundo ou espiritual ou carregado de valores do que o civil da forma que quiser. Pode decidir que ele será exclusivamente hétero e entre apenas duas pessoas (necessária e comprovadamente virgens, se preferem), durará para sempre, não podendo ser desfeito (mesmo que um dos envolvidos, ou os dois, estejam sofrendo de forma desesperadora por causa desse casamento por causa de violência mental ou física, ou manipulação invasiva dos seus direitos por parte do outro cônjuge).

Num estado laico não faz sentido que evangélicos, católicos e judeus — para não falar nos maometanos — tentem impor seus valores religiosos em todo mundo. Imaginem que os judeus ortodoxos resolvam que um homem só pode casar se for circuncidado. Vocês acham justos que o estado adote esse ponto de vista religioso e obrigue todo humano masculino a se circuncidar? Não faz sentido, não é verdade? Também não faz sentido querer que duas pessoas, para se casar e viver em família, tenham de ser de sexos ou gêneros diferentes.

Por fim, já faz muito tempo que a finalidade principal do casamento civil não é a procriação, mas, sim, a parceria, o companheirismo, o apoio mútuo, etc. Erra, portanto, e fundamentalmente, demonstrando uma imperdoável pobreza de espírito, Hélio Schwartsman, na Folha de hoje (30/6/2015), quando afirma que “O casamento, vale lembrar, é um mecanismo através do qual o indivíduo pede ao Estado licença para manter relações sexuais com outra pessoa.” Nem de longe. Relações sexuais regulares fazem parte do casamento da maioria das pessoas — mas não de todas. Mas estão longe de ser a única razão para o casamento — em especial numa sociedade liberada como a nossa, em que a maior parte das pessoas começa a ter relações sexuais bem antes de se casar (sem pedir para ninguém, muito menos para o governo), em muitos casos mantém relações sexuais extraconjugais, e, findo o casamento, continua a ter uma vida sexual regular e normal (em alguns casos, até em asilos de idosos).

Em Cortland, 30 de Junho de 2015.

A Sabedoria de Eclesiastes. . . (Meus versículos favoritos)

[Exceto onde indicado (quatro citações), no restante foi usada a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTHL).]

“Procurei descobrir qual a melhor maneira de viver e então resolvi me alegrar com vinho e me divertir. Pensei que talvez fosse essa a melhor coisa que uma pessoa pode fazer durante a sua curta vida aqui na terra” (Eclesiastes 2:3).

“Eu me arrependi de ter trabalhado tanto e fiquei desesperado por causa disso. A gente trabalha com toda a sabedoria, conhecimento e inteligência para conseguir alguma coisa e depois tem de deixar tudo para alguém que não fez nada para merecer aquilo. Isso também é ilusão e não está certo!” (Eclesiastes 2:20-22).

“Então entendi que nesta vida tudo o que a pessoa pode fazer é procurar ser feliz e viver o melhor que puder” (Eclesiastes 3:12).

“Todos nós devemos comer e beber e aproveitar bem aquilo que ganhamos com o nosso trabalho. Isso é um presente de Deus”  (Eclesiastes 3:13).

“É melhor ter pouco numa das mãos, com paz de espírito, do que estar com as duas mãos sempre cheias de trabalho, tentando pegar o vento. Descobri que na vida existe mais uma coisa que não vale a pena: é o homem viver sozinho, sem amigos, sem filhos, sem irmãos, sempre trabalhando e nunca satisfeito com a riqueza que tem. Para que é que ele trabalha tanto, deixando de aproveitar as coisas boas da vida? Isso também é ilusão, é uma triste maneira de viver” (Eclesiastes 4:6-8).

“Se faz frio, dois podem dormir juntos e se esquentar; mas um sozinho, como é que vai se esquentar?” (Eclesiastes 4:11).

“Tenha cuidado quando for ao Templo.  . . . Vá pronto para ouvir e obedecer a Deus. Pense bem antes de falar e não faça a Deus nenhuma promessa apressada . . . Fale pouco. Quanto mais você se preocupar, mais pesadelos terá; e quanto mais você falar, mais tolices dirá.  . . . É melhor não prometer nada do que fazer uma promessa e não cumprir” (Eclesiastes 5:1-5).

“Então cheguei a esta conclusão: a melhor coisa que uma pessoa pode fazer durante a curta vida que Deus lhe deu é comer e beber e aproveitar bem o que ganhou com o seu trabalho. Essa é a parte que cabe a cada um” (Eclesiastes 5:18.

“Se Deus der a você riquezas e propriedades e deixar que as aproveite, fique contente com o que recebeu e com o seu trabalho. Isso é um presente de Deus. E você não sentirá o tempo passar, pois Deus encherá o seu coração de alegria” (Eclesiastes 5:19-20).

“Uma coisa é certa: quanto mais falamos, mais tolices dizemos; e não ganhamos nada com isso”.(Eclesiastes 6:11).

“Quem só pensa em se divertir é tolo; quem é sábio pensa também na morte.” (Eclesiastes 7:4).

“É melhor ouvir a repreensão de um sábio do que escutar elogios de um tolo” (Eclesiastes 7:5).

“Não existe no mundo ninguém que faça sempre o que é direito e que nunca erre” (Eclesiastes 7:20).

“Estou convencido de que devemos nos divertir porque o único prazer que temos nesta vida é comer, beber e nos divertir. Podemos fazer pelo menos isso enquanto trabalhamos durante a vida que Deus nos deu nesta terra” (Eclesiastes 8:15).

“Só os vivos têm esperança. É melhor ser um cachorro vivo do que um leão morto!” [Eclesiastes, 9:4; tradução A Bíblia Viva.]

“Enquanto você viver neste mundo de ilusões, aproveite a vida com a mulher que você ama. Pois isso é tudo que você vai receber pelos seus trabalhos nesta vida dura que Deus lhe deu.” (Eclesiastes 9:9).

“Eu descobri mais outra coisa neste mundo: nem sempre são os corredores mais velozes que ganham as corridas; nem sempre são os soldados mais valentes que ganham as batalhas. Notei ainda que as pessoas mais sábias nem sempre têm o que comer e que as mais inteligentes nem sempre ficam ricas. Notei também que as pessoas mais capazes nem sempre alcançam altas posições.Tudo depende da sorte e da ocasião” (Eclesiastes 9:11).

“Se alguém colocar moscas mortas num vídeo de perfume, ele acabará cheirando mal! Assim, um pequeno erro pode destruir muita sabedoria e honra.” [Eclesiastes, 10:1; tradução A Bíblia Viva].

“Quem fica esperando que o tempo mude e que o tempo fique bom, nunca plantará, nem colherá nada”. (Eclesiastes 11:4).

“Se você esperar que tudo fique normal, jamais fará qualquer coisa”. (Eclesiastes 11:4; tradução A Bíblia Viva.)

“É maravilhoso viver! Ver a luz, o sol! Se uma pessoa chegar à velhice, deve se alegrar em todos os dias de sua vida. Mas se deve lembrar também que a eternidade é muito mais comprida; quando se compara a vida com a eternidade, o que fazemos aqui não vale nada!” [Eclesiastes, 11:7-8; tradução A Bíblia Viva.]

Em São Paulo, 23 de Setembro de 2013 [Revisto e ampliado em 12 de Junho de 2015] [Transcrito aqui, de meu outro blog LivreMente, em 16/6/2015]

As Pessoas

[Dedicado ao meu sobrinho Vítor Chaves de Souza, filósofo e teólogo, como eu, e, ainda por cima, poeta e fotografo, não como eu]

Adapto aqui um material que, há exatamente três anos, em 12/6/12, o Renato Janine Ribeiro, publicou no seu perfil no Facebook. O ministro ainda mantém e alimenta o seu perfil no endereço https://www.facebook.com/renato.janineribeiro.

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A história é atribuída ao general Kurt Gebhard Adolf Philipp Freiherr von Hammerstein-Equord (September 26, 1878 – April 25, 1943), que (conforme registra a Wikipedia) foi um general alemão que serviu, por um período, como Comandante no Exército alemão — mas que, por ser contra Hitler e o regime nazista, foi escanteado. Segundo consta, ele próprio era, nos termos da história, inteligente e preguiçoso.

A história se aplicaria aos oficiais e soldados que o general comandava. Mas, pensando um pouco, concluí que ela se aplica a qualquer grupo de pessoas engajado em uma atividade profissional (ou, a bem da verdade, em qualquer coisa).

Vou reconta-la em minhas palavras e do meu jeito e aplica-la ao nosso mundo eclesiástico (que é meio distante do militar em alguns aspectos).

É possível dividir as características que definem os seres humanos em dois grupos: características de natureza cognitiva (ou intelectual) e características de natureza disposicional (ou motivacional / atitudinal / emocional).

Do ponto de vista de suas características cognitivas, as pessoas podem ser divididas, grosso modo, em inteligentes e estúpidas.

Do ponto de vista de suas características disposicionais, as pessoas podem ser divididas, também grosso modo, em diligentes e preguiçosas.

Infelizmente, a maioria das pessoas — cerca de 90%, segundo o general — é estúpida e preguiçosa. O melhor lugar para coloca-las é na execução de tarefas de rotina, que exigem pouca inteligência e que, se bem organizadas, não são grandemente prejudicadas pela estupidez e pela preguiça dos que as realizam.

É preciso tomar cuidado, porém, com as pessoas que são estúpidas e diligentes. A elas não deve ser confiada nenhuma — repito: nenhuma — tarefa importante e que exige alguma responsabilidade, porque elas certamente causarão o maior estrago ao realiza-la.

Os dois grupos finais envolvem as pessoas inteligentes — entre os quais estão, estou certo, os leitores deste blog.

Os inteligentes e diligentes em geral alcançam altos postos nas hierarquias. Chegam ao Estado-Maior nas Forças Armadas (na história original), tornam-se cardeais na Igreja Católica, e, nas nossas Igrejas Presbiterianas, certamente chegam aos mais altos cargos da sua administração — e tendem a continuar por lá o tempo todo.

Restam os inteligentes e preguiçosos. Esses, em regra, vão se tornar professores universitários ou, no nosso caso, professores de seminários. Como eu, admito (sem modéstia, no caso da inteligência, sem vergonha, no caso da preguiça). Esses, em regra, possuem clareza intelectual e criatividade para, no devido tempo, chegar a conclusões importantes sobre a vida, a sociedade, as instituições (como a igreja). O tempo que levam para chegar a essas conclusões depende do grau de sua preguiça e dos incentivos institucionais que os motivam a, ocasionalmente, abandona-la.

Alguém já disse que a inteligência não prospera fora de ambientes que favorecem um certo grau de ócio e vagabundagem. E outro alguém já disse que a criatividade não prospera em ambientes muito certinhos: seu desenvolvimento geralmente se dá em ambientes meio desorganizados e bagunçados.

Por isso, os inteligentes e preguiçosos raramente se dão bem em dois tipos de ambientes:

Primeiro, naqueles que não lhes deixam tempo livre para pensar, explorar, refletir sobre o que, pelo menos no início, parece totalmente inútil, despropositado, distante da realidade, removido das rotinas do dia-a-dia — tempo para flanar mentalmente.

Segundo, naqueles muito arrumadinhos (como o exército ou a empresa convencional) que não lhes dão liberdade para tentar e errar, para tentar de novo e errar de novo, para combinar o inusitado, adaptar o que não funciona em uma área para ver se funciona numa outra — liberdade para fazer coisas novas e, aparentemente, inúteis. Brinquedos, na história do Rubem Alves. Coisas que dão prazer

O céu, para esse quarto grupo de pessoas, é um lugar de ócio e liberdade. O inferno (se fôssemos o pássaro encantado de outra história do Rubem Alves) seria uma gaiola em que seríamos obrigados a cantar o tempo todo.

Enquanto o céu não chega, um mosteiro ou convento com um abade ou superior laissez faire, não Caxias (desculpem a mistura de categorias), seria um second best bem decente: tipo um céu aqui na terra.

Que assim seja. Amém.

Em Tempo: Não sou fã do ministro — só colega. Mas morro de pena ao vê-lo onde está. Temo muito que não vá dá muito certo. Mas agradeço a ele a inspiração para esta crônica.

Aproveito para homenagear outra pessoa que, aparentemente, foi concorrente do Janine ao cargo de Ministro da Educação: Mário Sérgio Cortella. Fico contente que o convite não tenha sido feito a ele — ou, mais ainda, que, tendo sido feito, ele o tenha rejeitado. Trata-se de uma entrevista dele ao Danilo Gentili. O link me foi passado pelo Vítor.

Em 12 de Junho de 2015

As Igrejas, o Casamento e a União Civil

TESE: AS IGREJAS DEVERIAM TIRAR O CASAMENTO, PROPRIAMENTE DITO, DAS MÃOS DO ESTADO, DEIXANDO-LHE APENAS A UNIÃO CIVIL  — EM VEZ DE TENTAR IMPOR A SUA VISÃO DO CASAMENTO AO ESTADO.

Tenho escrito bastante — basta olhar neste meu blog (http://liberal.space) sobre a reação dos evangélicos ao chamado “casamento gay” (e outras variantes de “casamento” que vêm por aí, como a bigamia, a poligamia (disfarçada de poliamorismo), etc.

Encontrei agora há pouco um artigo recente de Roger E. Olson, grande teólogo arminiano, com quem tenho mantido contato nos últimos tempos. O link para o artigo segue abaixo. Vale a pena ler. Mas como o artigo está em Inglês, faço um resumo em minhas palavras do que me parece ser essencial nele.

O que Olson propõe, basicamente, é que as igrejas evangélicas, em vez de se sentirem acuadas pelo estado, reagindo de forma irracional e tentando obrigar o estado a adotar seus valores e suas práticas, deveriam tomar a iniciativa e anunciar aos quatro ventos (cada uma delas — se conseguissem fazer isso mais ou menos de maneira “sinfônica” seria ainda melhor) o seguinte:

A lei da maioria dos países ocidentais é construída em cima do princípio da separação entre igreja e estado. É por isso que o estado não se mete, por exemplo, com a questão de quem pode ser ordenado pastor / padre, bispo, etc. Essa é uma questão puramente eclesiástica, que cada igreja decide por si — sem que seja necessário que as igrejas estejam de acordo exceto na questão de que essa é uma questão que diz respeito exclusivamente a elas. Elas também decidem se devem “desordenar” alguém e como — ou se, uma vez ordenado, a pessoa recebe uma característica indelével. Decidem se podem ordenar mulheres, gays, etc. O estado não tem nada que ver com isso.

De agora em diante, casamento, propriamente dito, seria uma questão puramente eclesiástica, deveriam anunciar as igrejas. O que estado regulamenta e celebra não é, de forma alguma, casamento, mas apenas um contrato, que podemos, daqui para frente, chamar simplesmente de união civil (seguindo a prática que já se adota).

De agora em diante, se alguém diz “eu sou casado”, a implicação lógica seria de que é casado em alguma igreja segundo suas regras — e não teria nada que ver se a pessoa tem ou não uma união civil — ou várias — perante o estado.

Cada igreja (como faz com a ordenação de seu clero) decide quem pode casar e em que circunstâncias, se um com um ou um com muitos, se pessoas de sexo diferente ou do mesmo sexo, etc. Decide também se, uma vez casados, podem se descasar, e, caso isso seja admitido, se os descasados podem recasar.

Para casar, as igrejas não devem exigir que os “nubentes” tenham antes celebrado uma união civil perante estado. Podem te-lo feito como podem não o fazer. Trata-se de procedimentos distintos. Quem se casa (evidentemente na igreja) pode ou não celebrar também uma união civil para ser titular de algum benefício que exija a união civil como pré-condição (ser beneficiário de uma pensão civil ou militar, por exemplo). Para as igrejas não faria diferença se quem quer se casar (nela, evidentemente) já é unido civilmente com outro(a/s) perante o estado.

É isso. Leiam o artigo. Vale a pena, se você ficou interessado com este “appetizer” ou “teaser”.

Some Thoughts (and a Proposal) about the Religion and Marriage Issue

Em Salto, 5 de Junho de 2015

No dia seguinte Olson publicou um “addendum” ao seu artigo do dia anterior. Ele pode ser lido aqui:

Follow Up to My Post about Marriage

Em São Paulo, 6 de Junho de 2015

Meu livro avança…

Mudei o título do livro que estou escrevendo, que passa a ser BREVE HISTÓRIA DO PRESBITERIANISMO AMERICANO, VISTO DA ÓTICA DA CONTROVÉRSIA FUNDAMENTALISTA-MODERNISTA. Investi tanto na Pré-História e nos Antecedentes da Controvérsia, que o livro se tornou uma história, ainda que sucinta, do Presbiterianismo Americano.

O esboço está todo pronto e cerca de 80 páginas estão redigidas. Precisarei de, no mínimo, outro tanto.

O livro se baseia num trabalho que redigi em 1967-1968, quando fazia o Mestrado nos Estados Unidos, sobre a Controvérsia Fundamentalista-Modernista na Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos.

Eu estava encafifado, naquela época, pela seguinte questão: Por que os Fundamentalistas ganharam a briga na Igreja Presbiteriana do Brasil e a perderam fragrorosamente dentro da Igreja-Mãe, a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos?

A questão que me preocupava pode ter uma redação um pouco diferente. Por que eu, um presbiteriano de nascença, filho de pastor presbiteriano, fui, aqui, escurraçado, em 1966, do Seminário Presbiteriano de Campinas, pertencente à Igreja Presbiteriana do Brasil, e, lá, em 1967, fui acolhido pelo Seminário Teológico de Pittsburgh, da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos. Aqui eu recebi ordem para, em uma semana, retirar todos os meus pertences do meu quarto no Dormitório do Seminário. Lá recebi bolsa completa por três anos, apartamento mobiliado, ajuda para livros, etc. e, por fim, bolsa para fazer o Doutorado. E lá era totalmente desconhecido, não tinha parentes na igreja, não tinha conhecidos na administração da igreja…

Por que os modernistas ganharam nos EUA e perderam aqui, na IPB? Por que lá o Fundamentalismo virtualmente deixou de existir dentro das principais igrejas presbiterianas, refugiando-se em minúsculas denominações, e, aqui, o Fundamentalismo ainda dá as cartas.

Sei que muitos pastores da Igreja Presbiteriana do Brasil não se consideram fundamentalistas, entre eles meu amigo e irmão Guilhermino Cunha​… Estou disposto a admitir que nem todos os sejam. Mas a diferença com a Igreja Presbiteriana americana é enorme — e com a Igreja Presbiteriana Independente, aqui do Brasil, da qual sou membro hoje, também.

Os Presbiterianos Americanos começaram o século passado divididos em quatro denominações relativamente grande: os Presbiterianos do Norte, os Presbiterianos do Sul, os Presbiterianos Cumberland, e os Presbiterianos Unidos. Ao final do século, essas quatro grandes denominações eram uma só, haviam se reunificado, e constituído uma igreja de cerca de 2 milhões de membros, que tinha uma confissão nova, que havia passado a considerar a Confissão de Westminster como apenas uma referência histórica, que ordenava mulheres, que estava engajada em trabalho ecumênico com outras igrejas cristãs, etc. Lá não se recua diante da discussão da aceitação de casamentos gays e mesmo da ordenação de pastores de orientação homossexual.

Aqui no Brasil, a Igreja Presbiteriana do Brasil começou o século 20 como uma igreja, em 1903 passou a ser duas, em 1986, três, sem contar as divisões menos significativas do ponto de vista numérico. Planos não há sequer para discutir uma reaproximação — quanto mais para discutir as outras coisas que a sua congênere americana já discutiu e aprovou.

No meu livro procuro encontrar respostas para essas e outras questões.

Em Salto, 4 de Junho de 2015.

Luiz Roberto Couto Pereira – 1942-2015

Participei ontem, sábado, dia 30 de Maio de 2015, de um encontro memorável. Agradeço, antes de tudo, ao meu amigo Eliezer Rizzo por ter me informado de sua ocorrência e ter me convidado a participar.

Foi na Faculdade de Teologia Metodista, em Rudge Ramos, no campus da UMESP, e o objetivo foi celebrar a vida de Luiz Roberto Couto Pereira, amigo do Eliezer há muito tempo e meu amigo há pouco tempo (2 ou 3 anos) e só pela Internet. O Luiz Roberto morava na França e faleceu lá, de forma meio inesperada, no dia 8 de Abril deste ano, quase dois meses atrás.

O perfil dele no Facebook ainda está disponível em para quem quiser visitar:

https://www.facebook.com/luizroberto.coutopereira

Eis o que escrevi na sua linha do tempo no mesmo dia em que ele morreu:

“Faleceu esta noite, na França, onde morava, Luiz Roberto Couto Pereira, um amigo querido que encontrei aqui na Internet e nunca face-a-face. Quem nos colocou em contato foi nosso amigo comum Eliezer Rizzo.

O Luiz Roberto era um ano e um pouquinho mais velho do que eu. Nasceu em 5 de Maio de 1942. Tivemos, ele, o Eliezer e eu, um passado semelhante, estudando Teologia nos conturbados anos 60.

Foi um prazer enorme conviver com ele aqui no Facebook e através dos e-mails que ele enviava periodicamente com notícias do Protestantismo na França, onde morava há muito tempo.

Há testemunhos magníficos de parentes e amigos na timeline dele. Vale a pena ler.

Fico irritado quando vejo gente criticar, subestimando, o potencial do Facebook de não só nos permitir reencontrar amigos que já tínhamos, mas também nos ajudar a fazer amizades sinceras e profundas com pessoas em quem nunca pusemos os olhos. Tenho inúmeros exemplos de amigos que ganhei aqui. O Luiz Roberto era um deles.

Que descanse em paz.”

O encontro de ontem, como disse no Facebook, foi uma das coisas mais emocionantes de que já participei.

Primeiro, pela idade dos participantes (exceto no caso de dois filhos do ‪Luiz Roberto Couto Pereira e da organista). Não creio que, exceto por esses, houvesse algum outro participante com menos de 70 anos. Foi a primeira reunião quase que exclusivamente de septuagenários de que já participei.

Contei as cadeiras da capela: havia 70, sete fileiras de dez cadeiras, todas tomadas. E havia gente fora dessas 70 cadeiras e em pé: o oficiante (o Bispo Paulo Ayres Mattos), a organista, e algumas pessoas no fundo. 70 cadeiras vezes uma média de (digamos) 72 anos, dá 5.040… Em outras palavras, havia ali, naquela capela pequena, nada menos do que cinco milênios de vida humana, se somarmos as idades de todos que estavam lá…

Que homenagem, hein, ‪Luiz Roberto Couto Pereira? Vá lá: quando o Consistório se reúne para eleger um Papa talvez haja ali, em termos de anos de vida vivida, algo comparável. Mas é raro — e é para eleger um Papa, não é verdade? Por aí se vê em que nível de companhia se situa o nosso querido amigo.

Segundo, é preciso mencionar o calibre dos participantes. Além do Bispo Paulo Ayres, estavam ali o Prof. Rev. Adahyr Cruz, o Anivaldo Padilha, o Eliezer, e mais umas 65 pessoas. Sobreviventes, todos, de anos muito difíceis — inclusive o Luiz Roberto, que sobrevive agora de outra forma… Todos estudamos Teologia na década de 60 aqui no Brasil. Todos, menos eu, no Seminário Metodista. E todos fomos perseguidos, de alguma forma, dentro e em alguns casos fora da igreja. Vários foram presos. Alguns exilados. Alguns sofreram o que ninguém merece sofrer — pelo “crime” de pensar a serviço de uma Igreja Protestante. Muitos se esparramaram e foram fazer outra coisa depois dos expurgos e dos fechamentos de Seminários. Boa parte saiu da igreja. Alguns conseguiram dar a volta por cima e acharam uma forma de trabalhar na igreja de alguma forma, alcançando grande sucesso. Não por generosidade da igreja, mas por sua competência e pelo seu valor.

Terceiro, o ponto alto do encontro: as manifestações de vários dos participantes — todas elas comoventes. Não sei quantos falaram. Creio que não chegou a dez o número. Mas todos falaram por todos. Abriram seu coração. Falaram não só do Luiz Roberto (como disse, havia pessoas da família dele presentes). Falaram da igreja (a de então e a de hoje), falaram dos anos 60, falaram da Ditadura Militar. Nada piegas, nada que nem de longe soasse como autocomiseração. Fala de gente que tem brio, que sente, que sente raiva… mas que consegue, de um momento para outro, deixar o que foi triste de lado e falar de coisas mais alegres.

Quarto, porque encontrei lá pessoas interessantes – e, depois, vim a descobrir fatos interessantes sobre algumas dessas pessoas. O ‪Anivaldo Padilha, entre eles. Fiquei conhecendo o Anivaldo pela Internet, já faz algum tempo, vendo um conjunto de três blocos de entrevista que ele deu para o também recém-falecido Antonio Abujamra. A entrevista me deixou extremamente tocado pelo drama pessoal que ele viveu. O fato de ele ser pai do Alexandre Padilha, então Ministro da Saúde, e, depois, candidato ao Governo de São Paulo pelo ora quase-finado PT, não diminuiu um iota da minha admiração por ele. Em Outubro do ano passado tive a oportunidade de vê-lo face-a-face, mas não cheguei a conversar com ele. Foi na Semana Teológica da Faculdade de Teologia em que trabalho, que foi dedicada à atitude dos protestantes para com a Ditadura Militar, que fez 50 anos no ano passado. Ontem, ao chegar ao estacionamento da Igreja Metodista de Rudge Ramos, onde deveríamos estacionar, eis que chego ao mesmo tempo que ele. Apresentei-me, disse que o conhecia, e ele disse que me conhecia de nome. Subimos juntos para as dependências em que seria tomado o café da manhã. Hoje descobri que uma tia de minha mulher, Josira Arruda Machado, que é metodista, é muito amiga do Anivaldo, tendo ele sido padrinho de seu casamento com o Moysés Rocha. Mundo pequeno esse nosso mundo protestante… Especialmente quando a gente já passou da casa dos 70…

Vi com o Prof. Rev. Adahyr Cruz uma foto de 1967 de meu grande amigo Aharon Sapsezian. Conheci o Aharon naquele ano, quando ele era Diretor Executivo da Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE) e eu fui lá, na Rua Rego Freitas, pedir uma bolsa de viagem para poder viajar para Pittsburgh, PA, para fazer Pós-Graduação, pois havia recebido uma bolsa completa (exceto passagem) para estudar lá… Passei vinte anos sem contato com o Aharon. Vinte anos depois, em 1987, eu o encontrei em Genebra, quando fui lá prestar serviços junto à Organização Mundial da Saúde que eram de interesse da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, onde eu era Diretor de Informações. De 1987 a 1992 voltei lá uma sete vezes, passando mais de um ano em Genebra. Nessas ocasiões, via o Aharon e sua mulher, a Zabel, pelo menos umas duas ou três vezes por semana. Ele era uns doze anos mais velho do que eu, mas ficamos melhores amigos. Descobri, em momentos em que jogávamos conversa fora, que ele havia sido aluno de Caligrafia de meu pai em Patrocínio, MG, no início da década de 30… Coincidências. Ou, como eu as chamo, provincidências — coisas que a gente não sabe se foi coincidência ou providência. Fiz uma cópia da foto e a coloquei no Facebook.

Ainda neste quesito, encontrei lá minha colega da primeira série de Ginásio (quinta série do Fundamental) Zuleica de Castro Coimbra (hoje também Mesquita, pois se casou com Jorge Mesquita). Estudamos juntos em 1956, no Colégio Estadual e Escola Normal Dr. Américo Brasiliense, em Santo André. No ano que vem fará 60 anos que isso se deu. Eu tinha 12-13 anos. Ela, possivelmente, um ou dois anos menos. Fazia nada menos do que 59 anos que não nos víamos! Nós éramos os dois únicos protestantes numa classe de 40 ou 42 alunos: ela Metodista, eu Presbiteriano. Na chamada da classe, ela era a última, por ter o nome começado por “Z”, seguido de “u”…

Por fim, uma nota dissonante — pequena e insignificante. Apareceu lá, durante o almoço que seguiu ao culto, Josias Dias França, pai do ex-marido de minha mulher. Ele foi estudante de Teologia lá em Rudge Ramos nos 60. Cumprimentei-o discretamente com a minha cabeça e ele virou a cabeça como quem não viu — como sói fazer.

Voltemos a assuntos mais edificantes.

Fiquei comovido ontem ao ouvir o Bispo Paulo Ayres dizer algo assim:

“Tenho certeza de que vocês todos aqui tiveram um dia a ideia de servir a Igreja Metodista como pastores e pastores, ou em alguma outra capacidade”.

Eu não era nem nunca fui Metodista. Sou presbiteriano “de nascença”… Mas pensei nos 83 alunos que o Seminário Presbiteriano de Campinas tinha no início de 1966, o ano em que ele implodiu. Sessenta e oitos daqueles alunos não terminaram o ano, eu entre eles. Fomos expulsos. Só ficaram 15 alunos, todos eles do primeiro e do segundo ano, que hipotecaram solidariedade à administração do seminário que fazia aquele expurgo — aquilo que ela chamava de “limpeza”. O Seminário ficou basicamente três anos sem formatura. A Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) achou que podia abrir mão de 68 pessoas decididas a serem pastores dela (isso só no Seminário de Campinas — fez algo semelhante em outros seminários), jogou-as fora, perseguiu-as, em alguns casos (como o meu), tentando impedir que voltassem a estudar teologia em seminários de outras igrejas. Querem algo mais absurdo do que isso? O principal culpado de tudo isso foi o Rev. Boanerges Ribeiro, colega de seminário de meu pai. Mas os demais, de sua época e depois, são culpados também, pela sua conivência, pelo seu silêncio, pelo seu medo de falar mesmo quase 50 anos depois. A Igreja Presbiteriana do Brasil nunca pediu perdão pelo que fez aos 68 alunos do Seminário, e, aos poucos, nos anos seguintes, a todos os seus professores. A Igreja Metodista, para seu crédito, celebrou, alguns anos atrás, um Culto do Perdão, em que, como instituição, pediu desculpas pelo que fez nos anos 60 e 70. Para a Igreja Presbiteriana no Brasil, porém, é como se nós, aqueles 68 de 1966, tivéssemos sido obliterados, pulverizados, deixado de existir a não ser como moléculas jogadas ao vento às quais nem sequer se dirige a palavra. Ela prefere, ainda hoje, fazer de conta que não existimos.

Apesar de tudo, muitos de nós conseguimos continuar a estudar teologia em outros lugares. Eu fui para a Faculdade de Teologia Luterana em São Leopoldo, depois para o Seminário Presbiteriano de Pittsburgh. O Eliezer foi para o Seminário Metodista. Alguns ainda acreditavam o suficiente, depois disso, para se disporem a ser pastores — mas nenhum, que eu saiba, na Igreja Presbiteriana do Brasil, a impenitente. Para crédito deles.

Em São Paulo, 31 de Maio de 2015

O Estado do Bem Estar Social, da Virtude e da Moralidade é uma Quimera – diz Santo Agostinho

Comecei a reler ontem à noite um livro que li pela primeira vez em 1968 e que comprei em 1973. O livro havia sido publicado dez anos antes pela Columbia University Press. Trata-se de The Political and Social Ideas de St. Augustine, de Herbert A. Deane.

Lembro-me de o livro ter-me impressionado quando o li pela primeira vez, como leitura para um Seminário sobre as Ideias Políticas, Sociais e Econômicas de Calvino, recomendada pelo meu querido mestre de História da Igreja na Idade Média e na Reforma, Ford Lewis Battles (o tradutor da edição mais conceituada das Institutas de Calvino, a publicada pela Library of Christian Classics). Na ocasião Battles observou que as ideias politicas de Calvino, em especial sua visão do papel do Estado, eram bastante realistas, muito longe do utópico ou mesmo do idealista. Disse Battles nessa ocasião que Calvino, nesse respeito, havia sido influenciado por Agostinho — e foi nesse contexto que recomendou a leitura do livro de Deane, que li em cópia encontrada na Biblioteca do Seminário. Battles salientou ainda que, talvez exagerando um pouco, Calvino, como Agostinho, via o Estado de forma negativa, como um mal necessário. Foi nessa aula que ouvi pela primeira vez a afirmação de que Agostinho via o estado como nada mais do que um bando de ladrões. Battles observou por fim que Agostinho e Calvino, em termos de visão do Estado, estavam no grupo de filósofos políticos realistas, entre os quais se encontrava também Maquiavel.

Isso tudo me ficou na cabeça e, cinco anos depois, quando trabalhava no Claremont College, em Claremont, CA, encontrei o livro de Deane numa livraria e o comprei e reli, por estar dando um curso de Filosofia Política na ocasião. Sei que o reli porque a cópia que comprei em Agosto de 1973, um mês antes de começar meu curso, está toda rabiscada e anotada por mim.

Mas voltemos ao presente, passados 42 anos da segunda leitura e 47 da primeira. Nesse ínterim aprendi bastante Filosofia Política, em especial em combate com a esquerda e em defesa do Liberalismo Clássico de feição Smithiana e Randiana. A terceira leitura de Deane me surpreendeu já na Introdução. Ali Deane faz um breve apanhado da História do Pensamento Político dos gregos até o final do Império Romano no Ocidente, em 476, para se concentrar no pensamento de Agostinho (354-430). Ressalta ele na Introdução a diferença básica que existia entre a forma positiva e otimista com que os gregos viam o Estado e seu papel na vida de uma nação e dos seus cidadãos e a forma razoavelmente blasé e indiferente com que Jesus e os cristãos primitivos o viam.

Para os gregos (clássicos) o Estado tinha, entre suas funções, a de promover a boa vida de seus cidadãos, cuidando de educa-los e treina-los (paideia), bem como de promover o seu bem-estar (eudaimonia), para que eles se tornassem pessoas virtuosas e boas e se realizassem como “pessoas enquanto cidadãos” do Estado, assim encontrando a sua felicidade. Para os gregos (antigos) o Estado era “o foco central dos interesses e das atividades do homem” e “a encarnação de seus mais elevados valores” (pp.7-8). Deane observa que, depois dos gregos, três séculos Antes de Cristo,, só os regimes totalitários do Século 20 voltaram a ter uma visão tão exaltada do Estado — que estaria, entretanto, no Século 20, sob controle do partido totalitário (p.8).

Deane contrasta com essa visão idealista-utópica do Estado a visão do Estado de Jesus e dos cristãos primitivos. Eles encaravam o Estado de forma blasé e indiferente (quando não hostil), embora não negassem que lhe deviam lealdade, exceto quando o Estado interferia com seu dever cristão. Viam as funções do Estado, porém, de forma restritiva e negativa. O Estado existia, segundo eles, para manter a ordem, punir os malfeitores, e, assim, proteger os bons cidadãos. Melhor definição do Estado Mínimo Liberal é difícil de encontrar.

Ressalte-se que Jesus e os cristãos primitivos acreditavam que o mundo iria terminar em breve — quiçá durante a vida deles. Isso explica, talvez, pelo menos em parte, o fato de o Novo Testamento não prestar muita atenção ao Estado e suas funções. Jesus enfatizou que o seu reino não era deste mundo — isto é, não era um reino terreno que pudesse vir a conflitar com o Estado Romano promovendo subversão e revolta. Ele insistiu que seus seguidores não deviam ter interesses políticos (poder) e econômicos (riqueza) — neste caso, nem mesmo do plano mais mundano do que iriam comer e vestir no dia seguinte. A ideia é que seus seguidores deviam ficar indiferentes a esses ideais que movem tanta gente em outros círculos. E Jesus deixou claro que seus seguidores não deveriam promover anarquismo e rebelião ou demonstrar hostilidade para com o Estado. Deviam pagar seus impostos, dando ao Estado o que a ele pertence (o dinheiro que ele cunhou). Jesus não questionou a autoridade pela qual Pilatos o julgou e se irritou quando Pedro cortou a orelha do soldado por ocasião de sua prisão — colando-a de volta de lugar.

A ideia por detrás dessa postura dos cristãos primitivos é que não é o Estado que cuida da vida dos seus cidadãos (além de protege-los contra violência de terceiros), não é o Estado que os educa e promove o seu bem estar moral, cultural e em outras esferas, e não é o Estado que os torna virtuosos e felizes. O Estado cuida da ordem pública e protege seus cidadãos apenas contra a violência de terceiros. Em função disso, porém, merece o respeito dos cidadãos e tem direito de cobrar impostos — exceto, naturalmente, quando extrapola seus limites. É tudo.

Essa foi a visão cristã do Estado até que, numa reviravolta inesperada, o Imperador Constantino se converteu ao Cristianismo e, dentro de setenta anos, a partir dessa data (312), todo mundo no Império Romano se tornou cristão automaticamente — sem escolha. A partir dessa data o Cristianismo começou a mudar — porque os servidores do Estado, e até mesmo sua força militar (o Exército), agora eram todos inevitavelmente cristãos.

Difícil pretender, nesse contexto, que o dever do cristão em relação ao Estado é apenas respeita-lo e pagar-lhe impostos que sejam justos. Nesse momento o dinheiro dos impostos estava sendo usado, entre outras coisas, para construir grandes igrejas e magníficas basílicas e catedrais para o Cristianismo, tornado religião estatal. Difícil ser contra imposto numa situação dessas, mesmo que o imposto chegasse aos níveis que alcança hoje no Brasil — em que o Estado, em vez de construir Igrejas, constrói estádios de futebol para manter o povo entretido e feliz. Mas voltemos ao que importa.

Agostinho desenvolveu sua filosofia política neste contexto — e, segundo Deane, tentou unir o ideal de Estado dos gregos e o ideal de Estado dos cristãos.

A solução salomônica de Agostinho foi manter os dois ideais — mas jogando o ideal do Estado dos gregos para a vida futura, para a Cidade de Deus, e mantendo o ideal do Estado dos cristãos primitivos, e radicalizando-o a ponto de passar de indiferença ao Estado para uma hostilidade indiscutível a ele, para esta vida, para a Cidade dos Homens. Aqui, nesta vida, o Estado não passa de um bando de ladrões (algo que não é nenhuma novidade para os brasileiros não-ingênuos).

A visão idealista, quiçá romântica, do Estado que faz o bem, educa, promove o bem-estar e a virtude, é, neste mundo, utópica — quimérica mesmo. É isto que nos ensina Agostinho. Quem está mais interessado nesta vida do que na outra faria bem em adotar o seu realismo político e partir para a briga para reduzir as funções do Estado ao mínimo que os cristãos primitivos consideravam indispensável — na verdade, um mal necessário.

Em São Paulo (Bela Vista, Rua Genebra, em homenagem a Calvino), 28 de Maio de 2015