Engaiolando o Pensamento: Tecnologia, Religião, Ortodoxia, Dogmatismo, Intolerância, Repressão

Publico este artigo que escrevi em 29/7/2014, logo depois da morte do Rubem Alves, e acho que me esqueci de publicar aqui, porque, procurando-o, não o encontrei.

1. Tecnologia e Religião

Tecnologia e Religião são duas coisas que, à primeira vista, parecem não ter muita relação uma com a outra. No entanto, uma das tecnologias mais importantes para a humanidade, a prensa de tipo móvel (tipografia), criada por Johannes Gutenberg em 1455, por aí, foi inventada com uma motivação claramente religiosa – mais especificamente, cristã.

Em primeiro lugar, é conhecido de muitos o fato de que o primeiro livro impresso por Gutenberg em sua máquina foi a Bíblia.

A alguns isso parecer apenas um fato fortuito, decorrente apenas da popularidade da Bíblia. Mas não é.

Se fomos ler o prefácio que Gutenberg escreveu à sua Bíblia, encontraremos nele uma segunda razão para a tese de que sua motivação, ao inventar a tipografia, era profundamente religiosa. Eis o que ele diz:

““Deus sofre por causa da multidão de almas que sua palavra não pode alcançar. A verdade da nossa religião está aprisionada nas páginas de uns poucos livros copiados a mão, e isso limita e mesmo confina, em vez de esparramar, um tesouro que deveria ser público e estar nas mãos de todo mundo. Vamos quebrar o selo que hoje prende as palavras santas e dar asas à verdade, para que ela possa conquistar, a partir de agora, através da palavra, cada alma que venha ao mundo — palavra não mais copiada lenta e custosamente por mãos que podem ser facilmente paralisadas, mas multiplicada como o vento por uma máquina que nunca se cansa” (apud Ministry in the Digital Age, de David T. Bourgeois).

A intenção de Gutenberg era, portanto, mais do que apenas religiosa: era missionária.

É verdade que ele, aparentemente, concebia o trabalho missionário como se limitando a divulgar a Bíblia . . . ainda por cima em Latim, uma língua que a maioria das pessoas não lia, naquela época. (Na verdade, a maioria das pessoas não lia em nenhuma língua naquela época). O trabalho de Gutenberg teve de ser completado, por exemplo, por Martinho Lutero, que devotou alguns anos de sua vida traduzindo a Bíblia para a língua do seu povo, o Alemão.

2. Teologia e Educação

Apesar de Lutero defender a tese de que cada um tem a liberdade e o direito de interpretar a Bíblia por si próprio, segundo a sua consciência, iluminada pela razão (conforme mostrei no artigo anterior neste blog), ele não era ingênuo a ponto de crer que apenas colocar a Bíblia na mão do povo, ainda que impressa numa língua que o povo oralmente entendesse, era suficiente. Ele foi adiante: criou escolas ao lado das igrejas luteranas para que crianças e adultos aprendessem a ler, e, assim, pudessem ler a Bíblia. E ele tinha consciência de que, mesmo sabendo decodificar a linguagem escrita, muitos leem, mas não entendem o que leem (vide Atos 8:26-27: “Entendes tu o que lês?”). Por isso, para ele, a Igreja Protestante (em especial a sua, a luterana) tinha um “ministério educacional”, entre outros. Na Igreja Presbiteriana, calvinista, o pastor é até mesmo chamado de o “presbítero docente”… A igreja e, nela, o pastor, devem ajudar o crente a entender o que lê (e até mesmo o que ouve).

Há uma diferença sensível entre afirmar, no estilo Magister dixit, que o Papa ou o clero são os únicos credenciados e autorizados a interpretar a Bíblia, e que, no caso do Papa, sua interpretação, quando feita oficialmente (ex cathedra), e envolvendo questão de fé ou de prática (moralidade), é infalível, e, portanto, inerrante, e afirmar, por outro lado, que cada um tem a liberdade e o direito de interpretar a Bíblia por si, mas pode estar errado, e que, portanto, é preciso disponibilizar, portanto, para quem precisar ou desejar, apoios, ferramentas e serviços para que possa entender o que lê (o que ouve, o que vê…).

3. Protestantismo e Ortodoxia

É verdade que, no devido tempo, um século e pouco depois de Lutero e de Calvino, também o Protestantismo desenvolveu uma Ortodoxia, uma ideia de qual é a recta doctrina que a Bíblia contém… E a ideia continua a prosperar entre nós…

Rubem Alves escreveu dois magníficos livros sobre esses temas:

Primeiro, Protestantismo e Repressão (publicado em 1979, pela Editora Ática). Cerca de 25 anos depois, em 2005, o Rubem reeditou esse livro com um novo título, mais genérico: Religião e Repressão (publicado agora pela Edições Loyola, editora católica, em coedição com a Teológica).

Segundo, Dogmatismo e Tolerância (publicado em 1982, ironicamente por uma editora católica, a Paulinas).

4. Ortodoxia e Intolerância

Há duas atitudes básicas em relação à verdade: a de quem constantemente a busca, e a de quem acredita que já a encontrou.

O ortodoxo é aquele que acredita que a encontrou e que tem posse dela.

A ideia de que encontramos a verdade não seria tão perigosa se não fosse acompanhada da crença de que somos os únicos a tê-la encontrado e que temos posse exclusiva dela. Quando nos imaginamos os únicos possuidores da verdade – da recta doctrina – e a verdade da qual somos exclusivos possuidores é a única, a tendência é nos tornarmos dogmáticos: rejeitamos a ideia de que a verdade pode ter muitos lados, que é possível vê-la de várias perspectivas, e que, por isso, é preciso sempre continuar a busca-la. . .

Se não adotarmos essa atitude – podemos chama-la de liberal – o resultado é a intolerância. Imaginamos que não devemos tolerar pontos de vista divergentes, porque eles serão necessariamente errôneos, visto que a verdade está exclusivamente conosco.

5. Intolerância e Repressão

Da intolerância para a repressão a distância é mínima. Reprimir aquilo de que discordamos parece até uma virtude para aquele que se acredita dono da verdade – pois seria uma forma de evitar ou extirpar o erro.

Provavelmente foi com base num raciocínio mais ou menos assim que Calvino concluiu que não devia impedir que Michel Servetus fosse queimado numa fogueira.

O Rev. Joás Dias de Araújo, falecido recentemente, escreveu em 1975 um livrinho chamado Inquisição sem Fogueiras, sobre os expurgos que a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) fez nos seus quadros, presentes e futuros, durante a Ditadura Militar, na época ainda em pleno vigor (com um luterano na Presidência da República).

6. Homenagem ao Rubem Alves

Na dedicatória que apôs à cópia de Protestantismo e Repressão que me deu em 1979 (faz 35 anos este ano), o Rubem Alves escreve: “Ao Eduardo, em memória de um passado comum”. A dedicatória vem logo acima do mote do livro, uma linda passagem de Leszek Kolakowski, muito amada pelo Rubem, e que ele citou em mais de um livro:

“Por que deveria qualquer pessoa, inflexivelmente convencida da verdade exclusiva dos seus conceitos relativos a qualquer e a todas as questões, estar pronta a tolerar ideias opostas? Que bem pode ela esperar de uma situação em que cada um é livre para expressar opiniões que, segundo o seu julgamento, são patentemente falsas e portanto prejudiciais à sociedade? Por que direito deveria ela s abster de usar quaisquer meios para atingir o alvo que ela julga correto?”

Rubem Alves ressalta, em sua “Nota Preliminar” que a “Ortodoxia Protestante”, com seus “mecanismos de controle de pensamento e repressão do comportamento, [está] em evidente oposição à tradição ideológica clássica do Protestantismo, com sua ênfase na liberdade de consciência, livre exame e democracia”.

Entre Protestantismo e Repressão, de 1979, e sua reedição como Religião e Repressão, em 2005, Rubem Alves mudou profundamente sua atitude para com a religião… Deixou de trata-la como objeto de um discurso acadêmico, científico, rigoroso, para trata-la mais como poesia, como literatura. . .

Na nota “Trinta Anos Depois” cita Fernando Pessoa e conclui que “somos assim”: sonhamos voar, mas temos medo das alturas, sonhamos com a liberdade, mas preferimos o abrigo seguro das certezas…

Afirma, na mesma nota, que as religiões, em regra, têm tendência de se tornarem gaiolas que procuram prender pássaros que gostam de voar. Em geral, os hereges “são os pássaros que recusam as gaiolas de palavras que os prendem, que falam palavras proibidas”.

Continua ele, em espírito de confissão: “Vivi, durante muitos anos, numa gaiola de palavras. Eu gostava dela. Não me sentia engaiolado. Sentia-me protegido. Minha gaiola era minha armadura”.

Sua nota é um desabafo… Registra que, durante a Ditadura Militar, os grupos protestantes que, no Brasil, “anda[vam] sempre a pé”, “se apressaram a montar na garupa dos militares” – e, além de expulsa-los de seus seminários, resolveram entregar ao poder secular “os seus hereges, sob a acusação de subversão e comunismo”.

Ironicamente, a Igreja Católica que, na época da Reforma, declarou Lutero herege e o excomungou e perseguiu, por pouco não o colocando na fogueira, tornou-se, no Brasil da Ditadura Militar, “uma gaiola com portas abertas”, encarnando, como diz o Rubem Alves, “o espírito libertário que se encontra nas origens do protestantismo”.

Mas o Rubem conta que um dia perguntou a Dom Helder Câmara se não haveria “um lugarzinho” para ele na Igreja Católica… A resposta de Dom Helder foi realista, sem nenhum romantismo: “Não se engane. É tudo igual…”. Triste. A porta da gaiola gradualmente se fechou e calou os que “ensaiavam cantos diferentes”, aos quais se impôs o famigerado “silêncio obsequioso”. Pior do que tapar a boca de alguém é exigir que ele próprio a mantenha fechada. . .

“Para engaiolar a verdade”, conclui Rubem Alves, “é preciso engaiolar a liberdade e o pensamento”.

Que falta ele nos vai fazer.

Data em que escrevi: em São Paulo, 29 de Julho de 2014

Em São Paulo, 20 de Maio de 2015

Educação Formal Centrada na Aprendizagem do Aluno

Recebi agora de manhã, por gentileza de meu amigo Enézio Eugênio de Almeida Filho, link para um artigo intitulado “Teacherbot: Interventions in Automated Teaching”, de Sian Bayne, publicado em Teaching in Higher Education. O artigo aborda, dentro do tema, vários assuntos interessantes. Um, em especial, me chamou a atenção, porque tem que ver com algo que venho dizendo há uns bons 15 anos, a saber, que a educação formal, quando ocorre, deve ser “centrada no aprendente”, isto é, a tese de que as atividades consciente e deliberadamente organizadas para resultar em aprendizagem devem estar orientadas para os interesses de quem aprende — não de quem organiza essas atividades, qualquer que seja o nome que se lhe dê: professor, mestre, instrutor, tutor, mediador, facilitador da aprendizagem, etc.

Sublinho, no que acabo dizer, a expressão “educação formal, quando ocorre”, e o faço porque a educação da maior parte das pessoas, naqueles aspectos que mais importam, não acontece através da chamada “educação formal”, mas, sim, através das diferentes dimensões do que se pode chamar de “educação não-formal”. Em seu sentido mais genérico, esta é simplesmente a educação que não é formal.

Ilustro.

Quando abri meu computador hoje cedo, e entrei no Facebook, ele me informou de que dois anos atrás, no dia 16/5/2013, eu havia postado uma citação da escritora Tatiana Belinky, em que ela comentava como a educação mudou sua vida. Dizia:

“A própria existência dos meus pais me educou. Eles não me ensinavam nada. Eu via tudo. Lia e ouvia. Todo mundo lia e todo mundo conversava. Meus pais nunca me apontaram: faça isso, faça aquilo, era a vida de todo dia que era assim, educacional, naturalmente. Você me pergunta o que é Educação e não dá nem para responder. É só tudo!”.

Talvez seja coincidência, talvez seja providência. Melhor ainda, talvez seja o que chamo de “provincidência”, uma mistura das duas coisas, ou, simplesmente, um nome que a gente dá quando não sabe se se trata de uma ou da outra. Eu, especificamente, nunca sei. Mas o Enézio e o Facebook, cada um com seus interesses e com suas intenções, colocaram esses dois textos na minha frente hoje cedo. Do meu ponto de vista, foi provincidência.

A citação de Tatiana Belinky me fez lembrar de outra citação, esta de Paulo Freire, em que ele diz, de forma (no meu entender) muito feliz, o seguinte (as palavras são em parte minhas, porque cito de memória):

“Ninguém educa ninguém; mas tampouco alguém se educa sozinho. Nós nos educamos uns aos outros, em comunhão, mediatizados pelo mundo.”

Ou seja:

Os que estão por trás dos diversos programas de educação formal (professores, mestres, instrutores, tutores, mediadores, facilitadores da aprendizagem, etc.) podem encher o peito e se chamar de educadores profissionais — mas não é isto que são, segundo Paulo Freire, porque “ninguém educa ninguém”. Ninguém educa ninguém assim de modo formal, consciente, intencional, deliberado. A gente, a maior parte do tempo e no que realmente importa, se educa um ao outro de maneira não-formal, inconsciente, não-intencional, não-deliberada, simplesmente interagindo (o mais das vezes com outras intenções), com quem nos cerca, vendo-os, ouvindo-os, falando com eles, diretamente ou através de livros, de revistas, de jornais, do rádio, da televisão, da Internet, do Facebook… Exatamente assim como nos diz a Tatiana Belinky. Educamo-nos um ao outro simplesmente “comungando” uns com os outros, isto é, conversando, dialogando, lendo, escrevendo, discutindo, debatendo, colaborando (fazendo coisas juntos), vivendo juntos, convivendo, enfim, aprendendo juntos nesse magnífico ambiente educacional que é o mundo, tendo ao fundo o cenário genuíno de toda educação que vale a pena, a vida (não, necessariamente, a escola — embora a escola seja uma pequena parte da vida, e possa se tornar tão mais importante quanto mais semelhante à vida ela for).

o O o

Mas voltando ao artigo que me enviou o Enézio. “Teacherbot” quer dizer robô que ensina, robô didático. O tema do artigo é “Automated Teaching”, Ensino Automatizado. Em suma, o autor discute se podemos ser ensinados (e, assim, vir a aprender, ser educados) de forma automática, por um robô.

Não vou entrar no mérito dessa questão, porque ela me entedia. Vou discutir apenas algo que o autor menciona mais ou menos en passant, como se fosse entre parênteses. Trata-se da tese de que “na educação a linguagem da aprendizagem deve prevalecer sobre a linguagem do ensino” — tese que, no entender de alguns, acaba por “marketizar o discurso pedagógico”, “instrumentalizando a educação”, “desagregando o ensino e o reduzindo a nada mais do que facilitação ou apoio à aprendizagem”. Essa tese, ainda no entender de alguns, “desprofissionaliza o ensino” e “abre as portas para que o ensino automatizado possa entrar na escola e oportunamente substituir o professor”, realizando, assim, o “sonho tecnocrático”.

A raiz dessa tese está na afirmação de que a educação formal deve estar sempre “centrada no aprendente”. (Digo “educação formal” porque a educação não-formal sempre está centrada no aprendente). Os críticos da tese discutida no parágrafo anterior e da dessa afirmação acham que esse “modo discursivo subavalia o papel do professor ou até mesmo o deixa fora da equação”.

Os críticos citam um artigo publicado pela National Science Foundation (Fundação Nacional de Ciência) que afirma:

“Sugerimos que, dentro de poucas décadas, a educação se tornará personalizada, porque se harmonizará com as principais características do aluno, como, por exemplo, sua personalidade e seu estilo de aprendizagem, e com seus estados de espírito, como sua disposição afetiva, sua motivação, o nível de seu envolvimento. Ferramentas computacionais aferirão quais seus pontos fortes e fracos, quais as áreas em que ele tem problemas, qual seu estilo motivacional — e o fará isso tão bem quanto qualquer tutor humano. As tecnologias disponíveis para produzir esse tipo de instrução personalizada incluem modelos do usuário, ambientes inteligentes, ambientes lúdicos, e data mining (‘mineração de dados’)”.

Nenhum comentário dos críticos ou do autor sobre o fato que se sugere, nessa citação, que a personalização da educação se dará através da “instrução personalizada” — quando estávamos falando de aprendizagem, não de instrução ou ensino, da tese de que a educação formal deve estar sempre centrada na aprendizagem do aluno — e não no ensino ou na instrução do professor (ou equivalente).

O autor do artigo que estou analisando (o que me enviou o Enézio) tenta tucanamente fazer a media com a oposição e a situação afirmando que está longe dele afirmar que“o uso e métodos automatizados na educação seja indesejável”. Longe disso. O problema, afirma ele, está no fato de que “os termos em que esses métodos são propostos são dirigidos por um solucionismo orientado para a produtividade que vem sendo criticado já faz décadas”. Segundo o autor, quando isso acontece “é preciso resistir a esses métodos”, enfatizando que “o toque humano”, “a humanidade desejável”, “os relacionamentos humanos” são o “locus principal” a partir do qual é forçoso resistir “ao frio imperativo tecnocrático”. Ele sugere que o referencial teórico proposto pelo “pós-humanismo crítico e outras áreas anti-antropocêntricas dentro das humanidades e das ciências sociais” podem fornecer uma “base adequada” para “a construção de uma experimentação pedagógica responsável”. O que ele chama de uma “perspectiva pós-humanista” se reduz, no final dessa discussão, “a tentar usar visão dupla: ver o humano e o não-humano ao mesmo tempo”.

Pode? Essa baboseira “pós-modernista” e pseudo-intelectual se resume a “ver o humano e o não-humano ao mesmo tempo”. Quem jamais disse, no “pré-pós-humanismo” (isto é, no “humanismo”, isto é, numa visão moderna e liberal), que era impossível ver o humano e o não-humano (a técnica, a tecnologia) ao mesmo tempo?

Engana-se o autor do artigo que a alternativa seja usar apenas o ser humano para ensinar e instruir, sem tecnologia, ou usar apenas tecnologia para ensinar (robôs didáticos), sem o ser humano (o que ele chama de “ensino automatizado”).

No processo de discutir essas besteiragens o autor do artigo se esquece da tese que havia se proposto discutir na seção que me interessou: a tese de que “na educação a linguagem da aprendizagem deve prevalecer sobre a linguagem do ensino”. Eu, pessoalmente, não tenho a menor dúvida de que essa tese é verdadeira e merece toda nossa atenção e o nosso endosso.

Na educação não-formal (como a que Tatiana Belinky menciona) não há a menor dúvida de que a aprendizagem prevalece sobre o ensino.

A educação ativa, interativa, colaborativa, e, portanto, fatalmente dialógica, e a única que resulta em aprendizagem significativa, também não há a menor dúvida de que a aprendizagem prevalece sobre o ensino — onde quer que essa educação se realize, em contextos formais ou não-formais.

A aprendizagem só não prevalece sobre o ensino na escola — onde se presume que o aluno só aprende se for ensinado por um professor (ou equivalente), uma besteira de tal tamanho que basta enunciar a tese para qualquer um (exceto professores) concluir que ela é falsa, e, pior do que isso, também nociva e prejudicial à verdadeira aprendizagem, que vai muito além de assimilar e absorver o que outros acham que a gente deve assimilar e aprender e que, a maior parte do tempo, não têm a menor relevância ou utilidade para aquilo que realmente nos interessa.

A educação existe para que seres humanos — que nascem não sabendo fazer nada e não sabendo nada, e, por isso, são totalmente dependentes (inautônomos) por um bom tempo — se tornem competentes (adquiram competências ou construam capacidades). Porque nascem com uma programação genética mínima e aberta, e uma enorme capacidade inata de aprender, os seres humanos são capazes de, tendo adquirido algumas competências, escolher ou definir para si próprios um projeto de vida e de procurar transforma-lo em realidade, passando a ser, não só competentes, mas, também, autônomos.

Competência e autonomia se alcançam da forma indicada por Tatiana Belinky e Paulo Freire. É uma besteira gigantesca afirmar, em adesivos ou alhures, que a gente nunca chegaria a assinar o nome, quanto mais ser médico, engenheiro ou advogado, se não tivesse frequentado escolas e aprendido com professores. A escola moderna é relativamente recente. E professores “profissionalizados e sindicalizados”, mais recentes ainda. É crível que ninguém nunca tenha aprendido nada, e nunca aprendido a fazer nada, antes da existência dessa instituição e desses profissionais?

Ivan Illich, que era amigo de Paulo Freire e que possivelmente concordaria 100% com Tatiana Belinky, queria, em 1970, uma sociedade sem escolas, desescolarizada, em que a gente aprenderia e aprenderia a fazer tudo o que fosse necessário em interações colaborativas horizontalizadas e não-formais.

Note-se que Illich escreveu antes da revolução dos microcomputadores, antes da Internet, antes da Web, antes das redes sociais. O potencial para que aquilo que ele propôs — em 1970, para ser feito face-a-face — seja hoje feito (também) através da tecnologia é enorme. Mas não será a tecnologia de robôs didáticos e de ensino automatizado que fará isso: será a tecnologia de comunicação e acesso à informação que está aí nas mãos e no bolso de cada um, o computador personalíssimo que se disfarça de telefone celular…

E essa educação é, sim, centrada no aprendente. Não poderia ser diferente. E isso não é nada pós-moderno, pós-humanístico. É um procedimento tão simples quanto os que descreve Tatiana Belinky.

Bem disse o Rubem Alves que professor que tem medo de perder seu emprego para um computador (ou um robô didático) merece perde-lo. A gente se vira sem eles.

Em São Paulo, 16 de Maio de 2015.

Contrato Civil de Convivência e Casamento (Religioso)

Confesso que tenho enorme dificuldade para entender por que cristãos evangélicos e católicos mais conservadores se incomodam tanto com o casamento de pessoas do mesmo sexo e assuntos correlatos. Já escrevi sobre isso aqui. O que vou dizer, em sua substância, não é, portanto, novidade para ninguém que acompanha o meu blog ou minhas discussões no Facebook. Mas vou tentar repetir meus argumentos de uma maneira bem simples e clara.

Vivemos, aqui no Brasil, numa sociedade laica em que o estado e a religião são separados. Custou para que chegássemos a essa condição — e corremos o risco de perde-la. Durante a maior parte do tempo na história do Cristianismo houve muito envolvimento do estado na religião e da religião no estado. Aqui no Brasil, até a problamação da República, também. Há muitos países, ainda hoje, desenvolvidos ou não, em que esse envolvimento continua. Na Inglaterra a Rainha é a chefe da Igreja Anglicana, e na Alemanha cobra-se dos cidadãos um imposto destinado a sustentar as igrejas. Mas aqui no Brasil, felizmente, o estado é hoje laico e separado da igreja, que, por sua vez, é livre para se organizar da forma que bem quiser. A separação entre a igreja e o estado e a liberdade religiosa foram grandes conquistas dos cristãos evangélicos (inspirados pelo liberalismo, em especial nos Estados Unidos). No Século 19 a Igreja Católica se opunha a essas medidas, inclusive no Brasil, porque (até 1899) era a religião oficial, sendo mantida, em princípio, pela monarquia. Mesmo no Século 20, até que o Senador Nelson Carneiro finalmente conseguiu a aprovação da Lei do Divórcio no Congresso, ainda que cheia de ressalvas e qualificações, a Igreja Católica lutou até o último minuto para impedir a aprovação da lei e garantir que a indissolubilidade do vínculo conjugal fosse mantida (embora o Desquite já fosse permitido há tempo).

É forçoso reconhecer que duas pessoas podem viver juntas (conviver) numa mesma casa sem que isso seja regulado pelo estado — independentemente do sexo delas e do tipo de vida que levam em sua privacidade e intimidade. Até há bem pouco tempo, muitos casais que queriam viver juntos simplesmente se “juntavam” ou se “amigavam”, vivendo em “concubinato”, como “amasiados”, e tendo uma multidão de filhos. Também comum era a situação de um homem que, tendo uma mulher “oficial”, a “matriz”, tinha, também, uma “filial”, tendo filhos com ambas. Há muito tempo a Globo mostrou uma série em que Ney Latorraca, no papel do Seu Quequé, tinha três mulheres (uma oficial e duas filiais). E há um filme em que Regina Casé tem três maridos — provavelmenete nenhum deles oficial. Os protagonistas dessas histórias simplesmente ignoravam a possibilidade de que sua convivência viesse a ser regulamentada pelo estado.

Num determinado ponto de nossa história, o estado resolveu regular esse tipo de convivência e incentivar a sua oficialização, em especial por duas razões (nenhuma delas moral, é bom que se diga):

  • o fato de que pessoas que vivem juntas podem adquirir bens imóveis depois do início de sua convivência e o estado regula a posse. a transferência e a transmissão por herança de bens imóveis;
  • o fato de que pessoas que vivem juntas podem, se forem de sexo diferente, vir a ter filhos, que, enquanto são menores, fazem jus a algum tipo de proteção do Estado.

Quando resolveu regular a convivência entre duas pessoas, o estado resolveu considera-la um “contrato civil”. Infelizmente, especialmente por causa (no Brasil) da influência da Igreja Católica, resolveu chamar esse tipo de convivência de “casamento”, à semelhança daquilo que a Igreja Católica já fazia em relação a um de seus sacramentos. Os protestantes, em regra, não consideravam o casamento um sacramento e apenas solicitavam a bênção de Deus para os casais que resolviam se casar, oficialmente — no civil, naturalmente.

Ainda por influência da Igreja Católica, o Estado brasileiro resolveu considerar esse “Contrato Civil de Convivência” (CCC) indissolúvel (a não ser pela morte de um dos contratantes e em outras poucas situações), e resolveu exigir que os contratantes fossem apenas dois e de sexos diferentes: um homem e uma mulher. Resolveu, também, que o homem era a pessoa mais importante nesse contrato, chamando-o de “Cabeça do Casal”.

Felizmente, o estado brasileiro resolveu, em 1977 (quase 38 anos atrás), remover a cláusula de indissolubilidade dessa sociedade civil, permitindo que ela fosse dissolvida (encerrada), criando o Divórcio. Antes, como já salientei, havia o Desquite (que até pouco tempo se chamava de “separação judicial”), que cessava os deveres da coabitação mas não dissolvia a sociedade — ou seja, permitia que o casal se “apartasse”, como se diz em partes do Brasil, mas mantinha o seu vínculo conjugal: nenhum dos dois poderia se casar de novo ou firmar novo CCC. Com a Lei do Divórcio, a sociedade conjugal foi considerada solúvel. No início, por pressão da Igreja Católica, o estado manteve a exigência de que uma pessoa só podia se divorciar uma vez e especificou em detalhe as condições em que o divórcio poderia ser pleiteado — deixando a uma das partes o direito de se opor à pretensão da outra de dissolver o contrato de casamento. Depois eliminou a exigência de que alguém só pudesse se divorciar uma vez e, mais recentemente, tornou o divórcio sob demanda, ainda que de interesse de apenas um dos contratantes, uma realidade. Nesse processo, instituiu-se igualdade entre os contratantes, eliminando a figura do Cabeça do Casal.

Ao mesmo tempo, legisladores e tribunais oficializaram, pouco a pouco, a convivência de fato entre um homem e uma mulher não casados, considerando-a equivalente ao casamento, quando houvesse impedimento para as partes se casarem oficialmente (especificando que essa seria a condição ideal). A “União Estável” já aparece na Constituição de 1988, no artigo 226, parágrafo 3º: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Com o tempo, legisladores e tribunais eliminaram, gradualmente, as exigências estabelecidas para a união estável (convivência duradoura não formalizada como casamento), admitindo até mesmo que os “unidos” já fossem casados com outras pessoas sem haverem se divorciado delas (desde que separados de fato).

O passo seguinte, mais recente, foi Supremo Tribunal Federal (STF) admitir, a despeito do que diz a Constituição Federal (na passagem citada acima), que o estatuto da união estável se aplicava, também, à convivência entre pessoas do mesmo sexo, oficializando, na prática, o chamado “casamento gay”.

A decisão do STF desagradou os gays e os religiosos conservadores, neste caso, tanto evangélicos como católicos. Os gays queriam que suas uniões fossem reconhecidas como casamentos no sentido pleno do termo para que ficasse patenteada sua igualdade de direitos com os héteros. Os religiosos conservadores insistiam que o reconhecimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo descaracterizava a família, e se opunham à possibilidade, agora plenamente admissível, de que casais (pares) gays oficialmente adotassem crianças como filhos (crianças essas que, no caso da união entre duas mulheres, poderiam ser filhos delas mesmas, não sem alguma ajuda externa…).

O protesto dos religiosos conservadores será maior ainda quando legisladores e tribunais admitirem uniões estáveis de mais de duas pessoas — aquilo que hoje se chama, meio eufemisticamente, de “uniões poliamorosas” ou “uniões poliafetivas” (eufemismos para poligamia). Isso fatalmente se dará — mais cedo do que muita gente imagina.

[Parágrafo acrescentado em 28/4/2015, dia seguinte ao da publicação: Vide o artigo de Reinaldo de Azevedo sobre os pontos de vista acerca da poligamia do advogado e professor de Direito Luiz Edson Fachin, indicado para o Supremo Tributal Federal pela Presidente Dilma Rousseff, em:
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/esta-vai-para-o-senado-alem-de-teorico-dos-direitos-da-amante-fachin-candidato-ao-stf-tambem-flerta-com-a-poligamia-e-enxerga-em-quem-discorda-nada-mais-do-que-gosma/%5D

Enfim… a única solução sensata que antevejo para essa situação conflitiva é distinguir claramente entre, de um lado, de um instituto civil, o “Contrato Civil de Convivência”, que seria o novo nome do casamento civil, e, do outro lado, de um instituto religioso, chamado “Casamento Religioso” (que poderia manter o nome sacramental e até mesmo eliminar o qualificativo “religioso”, por inexistir o “casamento civil”).

Eliminar-se-iam, também, no processo, o chamado “Casamento Religioso com Efeito Civil”, o direito de padres, pastores, e rabinos presidir sobre a celebração dos CCC, etc.

Um CCC seria, dali para a frente, um ato puramente civil, realizado em Cartório, entre duas ou mais pessoas, independentemente de seu sexo. Ficaria instituída a poligamia, que, diferentemente do que acontece hoje em sociedade muçulmanas (por exemplo), poderia ser de vários homens com várias mulheres e vice-versa (como no filme da Regina Casé). O contrato poderia, como qualquer outro contrato, especificar o tempo de sua duração, ou, alternativamente, ser por tempo indeterminado, deixando claro o ritual a ser seguido caso uma das partes quisesse dissolvê-lo (no caso de contrato entre duas pessoas) ou sair dele (no caso de contrato entre mais de duas pessoas). O contrato especificaria, ainda, o regime de bens, à semelhança do que hoje acontece com o chamado casamento civil e outras coisas que os contratantes houvessem por bem incluir nele.

O casamento, propriamente dito, passaria a ser algo estritamente religioso, sem implicações no plano civil, sendo regulado por cada religião, igreja ou denominação conforme suas convicções. A Igreja Católica, por exemplo, poderia considera-lo indissolúvel. Protestantes mais liberais poderiam admitir a sua dissolução e especificar em que condições ele poderia ser dissolvido (sendo possível manter a cláusula de “sob demanda” atual). Poderia também se especificar que o casamento só poderia ser realizado entre duas pessoas de sexo diferente, um homem e uma mulher. A Igreja Católica poderia até mesmo definir que o casamento fosse estritamente para a procriação, não para o companheirismo e o prazer, e exigir que os nubentes apresentassem prova de fertilidade para poder celebrar o casamento entre eles.

Com isso acabaria a pressão dos gays para que, no plano civil, sua união fosse idêntica à de pessoas heterossexuais. Ela seria. E acabaria a pressão, no plano da sociedade civil e do Congresso, para proibir o casamento gay, ou a adoção de crianças por partes de casais (ou pares) gays, etc. E cada religião, igreja ou denominação adotaria o casamento que lhe parecesse mais acertado para os seus membros. Não teriam, como não têm hoje, o direito de definir como viveriam os que não são seus membros.

Acabaria, também, essa excrescência que é o Estatuto da Família. A família é uma realidade social e ao estado não cabe regulá-la. A única coisa que se admitiria é que o estado tornasse oficiais as convivências civis, permitindo que as partes celebrassem um CCC, caso o desejassem. Ao estado não caberia sequer incentivar essa celebração. Nada impediria, portanto, que as pessoas que assim o desejassem vivessem na “informalidade”, resolvendo os problemas de propriedade, de guarda dos filhos menores, e outros à medida que surgissem e da forma que achassem melhor. Hoje em dia pessoas que não são casadas já podem adquirir bens em conjunto ou “em condomínio”. E pais de crianças tidas fora do casamento ou de uniões estáveis podem ser acionados para lhes reconhecer a filiação, lhes dar pensão alimentícia e cuidar de outros aspectos de seu desenvolvimento enquanto menores.

A solução aqui proposta consolidaria a liberdade religiosa e a separação entre o Estado e as Igrejas no plano da convivência entre as pessoas. E deixaria tanto os gays como os Cunhas e Felicianos sem algumas de suas bandeiras políticas, despoluindo nossos olhos e ouvidos.

Em São Paulo, 27 de Abril de 2015

O Liberalismo e Outros Ismos

Faz 50 anos que me considero basicamente uma pessoa liberal — liberal à moda antiga, liberal clássico, liberal laissez-faire (não liberal no sentido em que os americanos usam o termo).

Foi em 1965, no meu segundo ano no Seminário Presbiteriano de Campinas, uma instituição de ensino orientada (na época — mas, creio, talvez até hoje) pela visão calvinista do mundo, e, portanto, teológica e moralmente conservadora, quiçá fundamentalista, que me senti cerceado em minhas liberdades de pensar, crer, exprimir meus pensamentos e crenças e agir de acordo com elas.

Minha atração para o liberalismo surgiu, não exatamente das aulas de Filosofia do Rev. Francisco Penha Alves, mas nelas e nas leituras que elas propiciaram — entre as quais, On Liberty, de John Stuart Mill. Foi Mill que, por assim dizer, abriu os meus olhos para contemplar e admirar a a importância e a beleza da liberdade. Mais tarde, sob a influência de Ayn Rand, Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek, vim a achar Mill não suficientemente radical em seu liberalismo, mas essa é outra história.

Para resumir, os únicos limites à liberdade do indivíduo que o liberal clássico reconhece como legítimos são dois que, em princípio, são fáceis de enunciar (embora, na prática, sejam muitas vezes difíceis de determinar):

  1. a liberdade dos outros, ou seja, a possibilidade de que, ao exercer a minha liberdade, eu viole igual liberdade de outrem;
  2. o dano a outros, ou seja, a possibilidade de que, ao exercer a minha liberdade, eu possa causar dano a outrem (dano real, material ou físico, não mera ofensa à sensibilidade — moral, religiosa ou outra — dos outros).

Sempre achei complicado, desde então, ser qualquer coisa que não liberal, pura e simplesmente, ponto final. Sempre me desgostaram os liberalismos qualificados — os liberalismos hifenados, por assim dizer. Quando alguém me diz “Sou liberal conservador” — ou “liberal cristão”, ou “liberal católico”, ou “liberal feminista”, etc. — fico esperando a ocasião de concluir (nem sempre mostrar) que ele não é realmente liberal, ou o é simplesmente em relação a certas coisas, não a outras, que tocam o outro lado do hífen, por assim dizer (ainda que um hífen não seja gramaticalmente exigido para caracteriza-la).

Muitas pessoas que admiro, hoje, como Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino, são liberais assim. Reinaldo é católico, Constantino é culturalmente conservador à la Russell Kirk. Aprecio muito o que escrevem quando seu liberalismo é dirigido a questões políticas, relacionadas às atribuições do estado (que, para o liberal clássico, devem ser mínimas, relacionadas à “lei e à ordem”), ou a questões de economia política, relacionadas ao controle da economia pelo estado (que, para o liberal clássico, deve ser nenhum).

Nenhuma área ilustra melhor isso do que a da moralidade, principalmente a da moralidade de inspiração religiosa ou ideológica.

Para o liberal clássico, a liberdade na área de expressão do pensamento deve ser basicamente total (restringida apenas das formas explicitadas acima). Ela incluiu, por exemplo, a expressão de ideias consideradas imorais ou mesmo pornográficas por outras pessoas.

O liberal que pretende ser hifenadamente religioso em geral deixa de ser liberal aqui. A pornografia, numa revista, num livro, num filme ou num programa de televisão, o ofende, e ele em geral tenta controla-la. Evidentemente, ele pode controla-la não lendo ou assistindo, mas ele em geral quer, também, que outros não a leiam ou assistam. Para o bem deles, insiste. Ou para proteger as crianças, acrescenta.

A feminista em geral é mais feminista do que liberal. Argumenta que a pornografia rebaixa a dignidade da mulher, a degrada, a torna um objeto, a desumaniza — e, por isso, deve ser proibida. No argumento pode até vir a citar Kant sobre a importância de não considerar o outro como meio…

O liberal que defende a importância de uma cultura que preserve e sustente princípios morais que ele considera essenciais e perenes, usa argumentos muito semelhantes. Ele, em regra, é até antifeminista, porque o feminismo não é tradicional…

É isso, por enquanto. Quem sabe eu volte à carga.

Em São Paulo, 25 de Abril de 2015

Novos Rumos na Área de Tecnologia na Educação

Avatar de Paloma ChavesEduTec: Blog da Professora Paloma

Quando iniciei minha carreira na área de Tecnologia na Educação, havia uma discussão importante acontecendo, que envolvia não apenas a concepção de uso das tecnologias digitais na escola, mas também o currículo, propriamente dito.

Naquela época, no início dos anos dois mil, ainda predominava o modelo de laboratórios de informática. O custo dos equipamentos ainda era muito alto, por isso as escolas criaram esses espaços com alguns poucos equipamentos para uso coletivo da comunidade escolar. Para organizar esse uso compartilhado, a escola colocou as chamadas “aulas de informática” na grade escolar, garantindo que todos os alunos tivessem acesso aos computadores, em regra, uma vez por semana, durante o período de uma aula. O foco era a inclusão digital. O que seria ensinado nessas aulas ainda não era tão relevante. O importante era que todos tivessem acesso aos computadores.

Os professores, todos imigrantes digitais, não tinham muita familiaridade com as tecnologias…

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Como É que Eu Sei? O Desafio da Modernidade

1. O Conhecimento Face à Dúvida e ao Ceticismo

Consta que Kant, tido como o principal Filósofo da Modernidade, teria um dia escrito que os grandes problemas da Filosofia são (eu adapto):

  • Quem sou?
  • De onde venho?
  • Que faço aqui?
  • Para onde vou?
  • Como é que eu sei?

Desses cinco problemas, o último é o mais básico, porque perpassa os outros quatro — e a si próprio:

  • Como é que eu sei quem sou (se é que de fato eu sei)?
  • Como é que eu sei de onde venho (se é que de fato eu sei que venho de algum lugar)?
  • Como é que eu sei o que faço aqui (se é que de fato eu sei que faço alguma coisa aqui)?
  • Como é que eu sei para onde vou (se é que de fato eu sei que estou a caminho de algum lugar)?
  • Como é que eu sei essas coisas (se é que de fato eu as sei; e se eu as sei, como é que eu sei que sei)?

O problema do conhecimento se tornou uma obsessão para a Filosofia Moderna — a filosofia feita mais ou menos a partir da primeira metade do Século 17. René Descartes é considerado o Pai da Filosofia Moderna, e ele viveu de 31 de Março de 1596 a 11 de Fevereiro de 1650 — quase 54 anos. Ele inventou a “Dúvida Metódica”: colocar em dúvida tudo o que ele achava que sabia. . .

Reconhecer esse fato não implica, de forma alguma, que não tenha havido grandes discussões do problema do conhecimento antes do Século 17. Os gregos, em especial seus dois principais filósofos, Platão (que, provavelmente, nasceu em 428 e morreu em 348, AC, vivendo, portanto cerca de 80 anos) e Aristóteles (que nasceu em 384 e morreu em 322, AC, vivendo, portanto, 62 anos) discutiram muito esse problema — e outros correlatos. Data dessa época a famosa discussão acerca da distinção entre conhecimento (ἐπιστήμη ou γνῶσις) e opinião ou “achismo” (δόξα).

Mas foi no início da Era Moderna que o problema do conhecimento se tornou (para alguns) uma questão (quase) de vida e morte: Como é que eu sei que é a Terra que gira ao redor do Sol e não o Sol ao redor da Terra (como parece aos nossos sentidos e, antes do Século 15, sempre se acreditou)? Consta que Galileu Galilei (1564-1642), quando a Igreja Católica decidiu combate-lo, optou (para escapar da fogueira) por concordar com ela, afirmando continuar a acreditar que era o Sol que girava ao redor da Terra. Mas, para si mesmo, admitiu: “Mas eu sei que é a Terra que se move ao redor do Sol”. . .

Mas a questão epistemológica continuava: “Como é que eu sei que é a Terra que gira ao redor do Sol, quando para os meus órgãos dos sentidos é o Sol que parece girar ao redor da Terra?”. . . Com base em que eu abandono aquilo que eu pareço ver para acreditar numa teoria?

Essa questão foi se radicalizando (embora também essa radicalização tenha raízes gregas). . . Se, neste caso, eu posso deixar de acreditar na minha percepção sensorial, como é que eu sei que aquilo que eu pareço estar vendo na minha frente em qualquer ocasião de fato existe numa realidade externa a mim, e não é um simplesmente um “fantasma”, um “fenômeno”, uma “alucinação” que tem lugar exclusivamente na minha mente? Quando eu sonho, refletiu Descartes, eu imagino estar vendo toda sorte de coisas, pessoas, eventos — mas tudo aquilo está apenas dentro da minha mente, enquanto eu durmo, tranquilo, de olhos cerrados, numa cama confortável. Como é que eu sei que minha vida inteira, com todas as suas atrações, peripécias e perigos não é tão somente um sonho de minha mente, sonho que se desenrola enquanto eu durmo numa caminha simples, numa casa não atraente, e nunca realmente vivenciei, de fato, peripécias e perigos?

O problema vai além. . .

Até o início da Idade Moderna a maioria das pessoas acreditava que algumas coisas (estados de coisas, pessoas, etc.) são belas, outras feias. . . e que essas características, beleza e feiura, existem nas próprias coisas, a distinção entre o belo e o feio sendo real e objetiva. Mas várias pessoas, na Idade Moderna, passaram a acreditar que, de fato, “a beleza está no olho de quem olha. . .”. David Hume (1711-1776), filósofo escocês sobre o qual eu escrevi minha tese de doutoramento, de 1970 a 1972, que, segundo alguns, é o maior filósofo da língua inglesa que viveu até hoje, disse “A beleza não existe nas coisas, mas na mente que as contempla”. (Note-se que ele nem diz “na mente de quem as contempla”).

Mas o problema se estende ainda mais. . .

Até o início da Idade Moderna a maioria das pessoas acreditava que algumas ações são moralmente certas e outras, moralmente erradas, e isto em sua própria natureza, enquanto ação, sendo a distinção, portanto, entre ação moral e ação imoral, objetiva e absoluta (“absoluta” querendo dizer que não varia dependendo do tempo, do lugar, das circunstâncias). Mas várias pessoas, na Idade Moderna, passaram a acreditar que o certo e o errado, na moralidade, não está nas ações em si mesmas, mas, como já se reconhece no tocante aos hábitos alimentares, às vestimentas, e a outros usos e costumes, nos gostos e nas preferencias das pessoas, naquilo que elas optam por favorecer, naquilo que elas consideram atraente ou repulsivo, agradável ou detestável. Bertrand Russell (1872-1970), por muitos considerado o maior filósofo da língua inglesa depois de Hume, e por alguns incautos considerado uma das âncoras morais do Século 20, indagado acerca do que, nas ações de Hitler, ele considerava moralmente condenável, esclareceu que aquilo que o levara a se opor a Hitler era o fato de que ele não gostava do que Hitler havia feito. . . (Fica a implicação intrigante e mesmo revoltante: se uma outra pessoa gostasse do que Hitler havia feito, nada haveria, do ponto de vista moral, filosófico ou racional, que pudesse ser utilizado por Russell para convence-la de que estava, de fato, errada — pois gosto não se discute, de gustibus non est disputandum).

Russell era chamado de “O Hume Moderno”. Concordava com seu mestre que, na moralidade, não existem valores reais, objetivos, absolutos, mas apenas meros gostos e preferencias, explicáveis em termos de nossos sentimentos e sensações de atração ou repulsa.

Hume também está na raiz de uma crença ou postura, bastante difundida no Século 20, de que a razão é uma faculdade preciosa, mas que ela é apenas “instrumental”, isto é: opera apenas no “reino dos meios”, não no “reino dos fins”. Assim, dado um fim qualquer, a razão (da qual faria parte a chamada “razão científica”) tem condições de determinar quais os melhores meios de alcança-lo. Mas a razão, sendo instrumental, não tem condições de avaliar se o fim em questão é bom, correto, digno, ou melhor do que qualquer outro fim. . . Se o fim é o poder a qualquer preço, a razão pode ditar os meios a serem utilizados para que esse fim seja alcançado, mas fica silente quanto aos méritos do fim em si. . .

Se é parte da herança da Modernidade que devemos duvidar até mesmo das coisas que observamos, manter-nos céticos até mesmo acerca daquilo que vemos, quanto maior será a dúvida e o ceticismo dos modernos acerca do inobservável, do invisível, daquilo que, por definição, jaz além da observação dos sentidos? Se o natural cai dentro do reino da dúvida e do ceticismo, o sobrenatural e o metafísico ficam totalmente fora do admissível. Aí se incluem Deus, espíritos em geral, ruins ou bons, a alma humana e sua suposta imortalidade. . . Para ser imortal, a alma teria de existir — e como é que eu sei que ela existe, como é que eu sei que, possivelmente, não é apenas o cérebro e o seu sistema nervoso que explica tudo? E se a alma é apenas o cérebro, ela morre com ele e a questão da imortalidade da alma não faz sentido.

2. E a Fé uma Alternativa Viável?

Diante da defesa, por parte da Filosofia Moderna (com o apoio da Ciência Moderna), da dúvida e do ceticismo em relação à religião, em geral, e ao sobrenatural, em particular, ficou difícil, para os teólogos cristãos, continuar a manter a tese de que a razão tem um papel importante na Teologia Cristã.

A. Razão e Fé em Pé de Relativa Igualdade

Tradicionalmente, tínhamos, na Teologia, pelo menos desde Tomás de Aquino (1225-1274), a defesa de uma síntese entre a Razão e a Fé, ou entre a Razão e a Revelação.

Segundo Tomás de Aquino, há basicamente duas formas de conhecer a Deus — e, consequente, de fazer Teologia. Uma, baseada na razão, outra baseada na revelação. Essa tese era importante para ele porque ela permitia que até mesmo os que viveram muito antes do Cristianismo não tivessem desculpa para não acreditar em Deus. A razão humana, desassistida da revelação, e, por conseguinte, da fé, seria capaz de determinar que Deus existe e quais são suas características negativas essenciais (embora a razão não seja capaz de ir além da existência e da negação de algumas características essenciais: Deus não é material, não é corpóreo, não é mortal, não é falível, não é mau, não é ignorante, não é limitado, etc.). Tomás escreveu uma obra inteira apenas desse tipo de Teologia Natural Negativa: a Summa Contra Gentiles.

Para irmos além desse mínimo, é necessário que Deus se revele — e, felizmente, segundo Tomás de Aquino, ele o fez. Essa revelação está contida na Bíblia, que deve ser entendida como a sua palavra. Para Tomás, a Bíblia pressupõe a razão e nunca vai contra ela — indo, porém, além dela, sem a contradizer. Para ele, em relação à razão, é possível diferenciar três tipos de enunciados:

  • Secundum rationem: aquilo que é racional, pois é derivado da razão;
  • Contra rationem: aquilo que é irracional, pois contraria a razão;
  • Supra rationem: aquilo que é não é nem racional (secundum rationem) nem irracional (contra rationem), porque está além da razão (supra rationem), tendo nós boas razões para aceita-lo.

A revelação se encaixa nessa terceira categoria: o conteúdo da revelação não contraria a razão: se aparentar faze-lo, devemos interpreta-lo de outra forma, de modo a que deixe de contrariar a razão.

Não poderíamos nós, diante de algo que não é nem racional nem irracional, simplesmente suspender o nosso juízo e nem aceitar nem recusar, nem crer nem descrer? Tomás é contra essa postura, por pelo menos três razões:

  • Primeiro, porque o conteúdo da revelação, embora não alcançável pela razão, enriquece e apoia o que nossa razão é capaz de descobrir acerca da moralidade, da vida, etc.
  • Segundo, a epistemologia de Tomás de Aquino deixava aberta a possibilidade de milagres, não os definindo como impossíveis, muito menos como incríveis;
  • Terceiro, porque o conteúdo da revelação traz, consigo, evidências de autoria divina, como por exemplo, os milagres que teriam acompanhado essa revelação. [Tomás não se preocupa com o fato de que o relato dos milagres que autenticariam a origem divina da revelação está contido na própria revelação.]

A epistemologia de Tomás é basicamente aristotélica. Ela parte do pressuposto de que somos capazes de conhecer a essência das coisas, isto é, aquilo que elas são em mesmas e aquilo que elas são capazes de fazer por si próprias. Isso vale também para o ser humano. Se algo acontece na realidade que vai além daquilo que qualquer coisa natural (o ser humano incluído) é capaz de fazer, podemos concluir, com convicção e certeza, que a natureza, deixada a si própria, não seria capaz de produzir aquele acontecimento, que, por conseguinte, só pode ser entendido como milagre — que é definido como uma suspensão (não uma violação) das leis naturais.

Segundo Tomás, portanto, tanto a razão como a revelação são fontes legítimas de conhecimento teologicamente relevante (acerca de Deus, da alma, do que é certo fazer, etc.) que convivem pacificamente, sem que uma contrarie a outra. Embora a revelação não seja secundum rationem, ela não é contra rationem, sendo, portanto, racional em um sentido mais fraco: não é derivada da razão mas também não conflita com ela.

Aqui, nessa posição, embora a razão e a fé sejam ambas fontes de conhecimento teológico, o conhecimento de Deus baseado na razão pode, oportunamente, levar à fé. A razão, assim, pode servir como ponte para a fé. Por isso, por vezes essa posição é chamada de intelligo ut credam: entendo, para poder vir a crer.

Uma consequência dessa forma de ver a relação entre razão e revelação é que Tomás acredita que a verdade é una e rejeita a teoria da “dupla verdade”, que, comum na parte final da Idade Média, postula que algo pode ser verdadeiro na Filosofia, mas falso na Teologia, ou vice-versa.

Essa visão de síntese entre razão e revelação (ou fé) tem outra consequência interessante, esta na área da moralidade. Como a revelação divina não contraria a razão, Deus não pode dar comandos morais que sejam contrários à razão — ainda que eles sejam acima da razão.

Isso faz com que, na Teologia Cristã, tenha surgido a tese de que mesmo o próprio Deus está sujeito à moralidade racional. Assim, um curso de ação não é moralmente certo porque Deus o comande — pelo contrário: Deus o comanda porque esse curso de ação é moralmente certo (numa visão racional). De igual modo, um curso de ação não é moralmente errado porque Deus o proíba — pelo contrário: Deus o proíbe porque esse curso de ação é moralmente errado (numa visão racional). Essa é a famosa controvérsia do prohibita quia mala (a conduta é proibida [por Deus] porque é errada) vs mala quia prohibita (a conduta é errada porque é proibida [por Deus]).

B. A Razão como Serva da Fé

Anselmo de Cantuária (1033-1109), que viveu cerca de duzentos anos antes de Tomás de Aquino, tinha uma visão diferente do papel da razão na revelação, e, por conseguinte, na Teologia. Para ele, a primazia era da Revelação — e a razão não passava de uma serva da fé. Essa visão acabou por caracterizar a Filosofia como a serva, a handmaid, da Teologia. As raízes dessa posição, porém, já podem ser encontradas em Agostinho (354-430).

Para ele, a revelação divina não é algo que se entende automaticamente, bastando ler ou ouvir. É necessário, muitas vezes, que a razão intervenha para esclarecer, elucidar, tornar inteligível a revelação. Por isso o seu lema: fides quaerens intellectum (a fé que busca o entendimento). Karl Barth (1886-1968), já no Século 20, escreveu um interessante livro sobre Anselmo, com esse título em Latim. Um outro título para essa posição é credo ut intelligam: creio para que possa vir a entender.

Aqui, dá-se por pressuposto que a revelação está contida na Bíblia e admite-se a necessidade da razão para entender a Bíblia (não para questiona-la).

No Século 19, o grande teólogo reformado americano Charles Hodge (1797-1878) adotou estratégia metodológica mais ou menos semelhante. Para ele, a Teologia é uma ciência — tão rigorosa como a Física. A diferença entre a Teologia e a Física está no fato de que, nesta, os fatos que ela analisa e sistematiza são dados pela observação, enquanto na Teologia eles vêm prontos, empacotados, como se fosse, na Escritura Sagrada. Dados os fatos, o resto — analisar e sistematizar os fatos — é trabalho exclusivamente da razão.

Eis o que ele diz na primeira página de sua obra monumental, Systematic Theology:

“Da mesma forma que a natureza não é um sistema de química ou de física, a Bíblia não é um sistema de teologia. Encontramos na natureza os fatos que o químico e o físico precisa analisar, e, a partir deles, inferir as leis pelas quais eles são determinados. Da mesma forma, a Bíblia contém as verdades que o teólogo precisa coletar, autenticar, arranjar, e apresentar em seu relacionamento umas com as outras. Aqui se encontra a diferença entre teologia bíblica e teologia sistemática. A tarefa da primeira é descobrir e enunciar os fatos contidos na Escritura. A tarefa da teologia sistemática é, com base nesses fatos, determinar sua relação uns com os outros e com outras verdades cognatas, bem como vindica-los, mostrando sua harmonia e consistência. Essa tarefa não é fácil nem de pequena importância” [pp. 1-2].

“A Bíblia é para o teólogo aquilo que a natureza é para o cientista. É o depósito de fatos. E o seu método para averiguar o que a Bíblia ensina é o mesmo método que o cientista adota para averiguar o que a natureza ensina” [p. 10].

“O verdadeiro método da Teologia é, portanto, o indutivo, que pressupõe que a Bíblia contém todos os fatos ou verdades que foram o conteúdo da Teologia, da mesma forma que os fatos da natureza são o conteúdo das ciências naturais. Também se assume que a relação desses fatos bíblicos um para com o outro, e os princípios neles envolvidos, estão contidos nos próprios fatos, e devem ser deduzidos deles, da mesma forma que as leis da natureza são deduzidos dos fatos da natureza. Em nenhum dos dois casos os princípios derivados da mente são impostos sobre os fatos, mas, de igual forma, tanto na teologia como nas ciências naturais, os princípios ou leis são deduzidos dos fatos e reconhecidos pela mente” [p. 17].

Para realizar a tarefa descrita ao final da primeira citação, as duas teologias, a bíblica e a sistemática, fazem uso imprescindível da razão. Mas a razão, por si só, não seria capaz de descobrir os fatos (“as verdades”) que a Escritura revela. O método da teologia é, para Hodge, tão racional e científico quanto o da química e da física. Tanto uma como as outras fazem uso do método indutivo. Mas a razão não descobre fatos, e muito menos os constrói, seja na teologia, seja nas demais ciências. Nestas a descoberta de fatos é feita pela observação; na teologia, os fatos são revelados por Deus e estão contidos na Bíblia.

C. Fideísmo, ou Credo Quia Absurdum

No início da era cristã um teólogo chamado Tertuliano defendia a tese de que os cristãos não devem pretender que a razão seja capaz de descobrir, desassistida pela revelação, os mistérios do Cristianismo. Para ele, não há nada em comum entre Jerusalém e Atenas, entre a Teologia e a Filosofia. Esta lida com o conhecimento, aquela com a fé.

A fé, para ele, não era um estágio anterior ou posterior ao da razão: era algo totalmente distinto. Quando não se tem como justificar um enunciado por um apelo a evidências, ou não se está interessado em faze-lo, a única alternativa é reconhecer que, se aceitarmos esse enunciado, a aceitação terá de ser cega, totalmente pela fé, como um salto no escuro. Afirmar que determinado enunciado foi aceito pela fé, portanto, não é uma forma justificar a sua aceitação: apenas explica que a aceitação foi feita sem apelo a evidências, ou porque se acredita que elas não existam, ou porque se escolheu não leva-las em conta.

Tertuliano chegou mesmo a dizer, ecoando parcialmente o apóstolo Paulo, que acreditava no Cristianismo porque o Cristianismo era absurdo. Kierkegaard (1813-1855), no Século 19, foi quem afirmou que a fé é sempre um salto no escuro: se houver evidência, se houve apoio da razão, ela deixa de ser fé.

Para os que acreditam assim, que normalmente são chamados de Fideístas, os racionalistas do Iluminismo fizeram ao Cristianismo um grande favor mostrando inexistirem argumentos, evidências e boas razões para sua aceitação. Mostraram, assim, que apenas a fé cega, a fé do tipo “salto no escuro”, explica sua aceitação.

Neste caso, a única resposta à pergunta “Como é que eu sei?” é “Eu não sei” — mas resolvi, de qualquer forma, apostar.

No Século 16 Pascal (1623-1662) resolveu mostrar que a aposta, afinal, não é tão cega, tão racional.

Segundo ele, temos basicamente, a seguinte alternativa: Crer ou não crer.

Se não cremos, existem duas possibilidades: o Cristianismo é falso (ou Deus não existe) ou o Cristianismo é verdadeiro (ou Deus existe). Na primeira hipótese, não ganhamos nada não acreditando; na segunda, vamos nos dar muito mal.

Se cremos, também existem duas possibilidades: o Cristianismo é falso (ou Deus não existe) ou o Cristianismo é verdadeiro (ou Deus existe). Na primeira hipótese, não perdemos nada acreditando; na segunda, ganhamos o “jack pot”, o maior prêmio da casa.

Assim sendo, há, segundo ele, boa razão para se apostar, mesmo cegamente, que o Cristianismo é verdadeiro (ou que Deus existe): não perdemos nada se estivermos errados e ganharemos tudo se estivermos certo. Por outro lado, se apostamos que o Cristianismo é falso (ou que Deus não existe), não ganhamos nada se estivermos certos e perdemos tudo se estivermos errados.

Ainda é tempo de apostar. . .

Em São Paulo, 26 de Março de 2015

Ortodoxia e Heresia – 3

I. A Construção da Ortodoxia

1. O Sentido Etimológico dos Termos “Heresia” e “Ortodoxia”

O termo “heresia” nos vem do Grego, através do Latim.

Em Grego, o termo αἵρεσις (hairesis, em transliteração para o nosso alfabeto) significava, originalmente, escolha, ou coisa escolhida, ou até mesmo grupo dos que fizeram uma escolha. Assim, podia significar uma aceitação de alguma ideia, crença, doutrina ou teoria, ou até mesmo, uma seita: o grupo daqueles que aceitavam um conjunto determinado de ideias, crenças, doutrinas, teorias.

No Novo Testamento o termo foi aplicado aos Fariseus, aos Saduceus, e mesmo aos Cristãos, entendidos, todos eles, como seitas do Judaísmo.

Em Latim o termo haeresis veio a significar forma de pensar, escola filosófica — inicialmente sem se indicar se a forma de pensar ou escola filosófica era considerada correta ou desviante.

Com o tempo, já na era cristã, o termo veio a ser usado para se referir a crenças e doutrinas que se desviavam da opinião (δόξα, termo grego que, transliterado, dá doxa) geralmente aceita, ou, com o tempo, do ensinamento, instrução, ou doutrina (διδαχń, em Grego, transliterado como didaché, ou, ainda, doctrina, em Latim) tido como certo, correto, verdadeiro, oficial (oρθός, transliterado como orthós): a “ortodoxia”.

2. Das Heresias à Ortodoxia

Mencionei de passagem, na seção anterior, que o movimento que veio a se tornar o Cristianismo, durante boa parte do primeiro século da era que veio a ser conhecida como cristã, foi visto, inicialmente, e de forma correta, como uma seita judaica — na verdade, uma heresia do Judaísmo. Diferentemente dos Fariseus e dos Saduceus, que no primeiro século já eram seitas (ou formas de pensar) judaicas bem aceitas e assimiladas, os seguidores de Jesus de Nazaré não foram bem aceitos na Palestina, durante boa parte do primeiro século.

A história nos mostra, e uma leitura atenta do livro de Atos dos Apóstolos comprova, que, logo depois da morte de Jesus, seus seguidores eram quase que exclusivamente judeus. Mas havia basicamente dois tipos de judeus naquela época:

  • Os judeus que moravam na Palestina (em especial na Judeia e na Galileia), que falavam judaico ou aramaico, e eram cumpridores fieis e zelosos das leis e dos regulamentos judaicos;
  • Os judeus que moravam fora da Palestina (na Diáspora), que falavam grego, e que, embora ainda seguidores da religião judaica, adotavam uma religião à qual se haviam misturado elementos do pensamento helênico, e cujos costumes, pela sua convivência diária com gentios, não eram mais tão rigorosos.

É de esperar que houvesse certa animosidade entre uns e outros, animosidade essa que aumentava nas ocasiões em que os judeus helênicos visitavam o Tempo de Jerusalém.

Os cristãos que habitavam a Palestina se viam, inicialmente, como judeus, não como membros de uma outra religião. Como os demais, iam ao Templo, observavam as normas alimentícias, circuncidavam-se (no caso dos homens, naturalmente), etc.

Mas os seguidores de Jesus logo se esparramaram por cidades fora da Palestina, que eram helênicas, nas quais os judeus existentes eram judeus helênicos. Em Antioquia, diz o livro de Atos, os seguidores de Jesus foram pela primeira vez chamados cristãos. Nessas cidades, muitos judeus helênicos e muitos gentios (os chamados de “pessoas tementes a Deus”) aceitaram as ideias que os seguidores de Jesus lhes apresentavam e se converteram, sendo batizados.

Por admitirem, entre seus adeptos, judeus helênicos (da Diáspora) e até mesmo gentios, os seguidores de Jesus que viviam em cidades fora da Palestina sofreram discriminação por parte daqueles que viviam na Palestina, que exigiam que eles seguissem as normas alimentícias e outras, e, no caso dos homens, fossem circuncidados.

Por volta do ano 50 AD, em Jerusalém, um encontro entre Paulo, Pedro e Tiago (o irmão de Jesus), supostamente acertou essa questão (vide Atos 15 e Gálatas 2). Mas mesmo depois desse “acerto” ainda houve conflitos entre os seguidores de Jesus da Palestina e os das cidades helênicas.

Mesmo em Jerusalém, seguidores de Jesus que eram suspeitos de não aceitar totalmente a Torah foram perseguidos, e, no caso de Estêvão, assassinados (vide Atos   ).

Os primeiros cinco séculos da história cristã, até, basicamente, o ano de 476, que marca, para muitos, o fim da Antiguidade e o início da Idade Média, foram um período que viram a transformação daquilo que era, inicialmente, uma heresia judaica em uma outra religião, a religião cristã, e viram a fixação da ortodoxia dessa religião.

3. Pluralismo e Relativismo de Pontos de Vista — e Tolerância

É evidente que, em contextos pluralistas e relativistas, isto é, em que vários pontos de vista divergentes são tolerados em relação a uma mesma coisa (pluralismo), e em que (indo além da mera tolerância) se acredita que um é tão bom, certo, correto, ou verdadeiro quanto os demais (relativismo), não faz sentido falar em heresia — exatamente por inexistir, nesse contexto, a ideia de um único ponto de vista correto ou verdadeiro (ortodoxia) em relação a algum tema. Tudo é tolerado, tudo é admitido.

Em um contexto assim, a única coisa não tolerada é a ortodoxia intolerante — isto é, a postura daqueles que, por estarem convictos de que estão certos e de que estão de posse da verdade, não toleram divergência — passam a resistir ao pluralismo e, com maior razão, ao relativismo.

De certo modo, na época em que nascia o Cristianismo o Império Romano era pluralista, relativista e, por isso, tolerante — mas os judeus, embora fossem tolerados pelos romanos, não tinham postura igualmente tolerante, porque se julgavam o povo escolhido, os únicos a quem o Deus único e verdadeiro havia se revelado. Como diz Rubem Alves, “a linguagem religiosa sente vertigens diante de qualquer tipo de pluralismo e relativismo” (Dogmatismo e Tolerância, 26).

A antipatia dos romanos para com o judeus, e, depois, para com os cristãos, têm origem nesse fato.

4. Ferramentas para a Construção da Ortodoxia Cristã

Como vimos no primeiro artigo desta série, muita gente acredita que a maioria dos cristãos nos quatro ou cinco primeiros séculos da era cristã subscrevia àquilo que hoje se considera ortodoxia em sua doutrina, as diversas heresias aparecendo apenas nas periferias, e sendo rapidamente combatidas e rechaçadas pela maioria ortodoxa.

Vimos, também, que provavelmente a coisa não era bem assim, e que o mais certo é supor que por um bom tempo vicejaram várias doutrinas ou escolas de pensamento que, posteriormente, quando fixada a ortodoxia, foram declaradas heréticas, mas que, antes dessa fixação, competiam de forma razoavelmente livre entre si. A ortodoxia, neste ponto de vista, foi uma construção lenta e cuidadosa que exigiu, por parte das lideranças do cristianismo nascente, a criação de várias ferramentas, entre as quais as mais importantes são:

  • A definição, ou o fechamento, do cânon do Novo Testamento.
  • A definição de fórmulas que definiam, de forma telegráfica, as principais doutrinas do cristianismo nascente — as chamadas “regras de fé” (regulae fidei), usadas por ocasião do batismo, e, que, oportunamente se tornaram os credos.
  • A concentração de poder nas mãos do clero, em especial dos bispos, para definir, entre outras coisas, o que é pensamento ortodoxo e o que é pensamento herético.
  • Quando os bispos não se entendiam, convocação de concílios onde as divergências eram debatidas e se tentava chegar a um consenso — dos quais o de Calcedônia, em 451, é considerado o mais importante (embora não tenha sido o último).

É fácil de lembrar: são quatro “c’s”: cânon, credo, clero e concílio.

II. As Principais Controvérsias

É de esperar que as principais controvérsias desses primeiros tempos tenham tido que ver com a natureza da principal figura do Cristianismo: Jesus de Nazaré.

1. Quem é Jesus de Nazaré?

Nem mesmo os livros que vieram a ser definidos como canônicos concordam acerca de quem era, em sua essência mais profunda, Jesus de Nazaré.

De um lado, eles dizem, com todas as letras, que Jesus era um homem, “nascido de mulher”, como diz a Bíblia, que tinha mãe (e pai — ele é chamado de “o filho do carpinteiro”), que sentia fome e frio, que foi tentado, sofreu e finalmente morreu e foi sepultado.

De outro lado, ele parecia ser um homem muito especial. Alguns livros do Novo Testamento dizem que sua concepção no ventre de Maria prescindiu da colaboração de seu marido (noivo), José, e que Jesus, portanto, era filho de uma virgem, que o concebeu por obra do Espírito Santo.

Além disso, ele era extremamente precoce (discutia com os doutores no Templo quando tinha apenas 12 anos), carismático, excelente mestre e pregador, realizador de inúmeros milagres e, em relação a algumas questões, profeta.

Por fim, embora tenha sem dúvida morrido, os livros do Novo Testamento afirmam que ele foi ressuscitado depois de três dias, havendo registro de que apareceu vivo a várias pessoas (embora em circunstâncias às vezes não inequívocas), e, finalmente, ascendeu aos céus onde continua vivo junto de Deus.

Até aí temos que Jesus foi um homem — mas um homem muito especial.

Os nomes que os escritores dos livros que vieram a se tornar parte do Novo Testamento aplicam a ele são diversos: Mestre talvez seja o mais comum. Os nomes que ele próprio aplica a si mesmo (segundo os escritores dos livros do Novo Testamento), Filho do Homem provavelmente sendo o mais comum.

Mas ele é chamado também de Cristo, Logos, Filho de David, Filho de Deus, Cordeiro de Deus, Rei dos Judeus (na cruz)…

Em nenhum lugar no Novo Testamento Jesus é chamado pura e simplesmente de Deus ou mesmo de divino.

Como é, então, que, a partir de toda essa diversidade, Jesus veio a ser considerado, no Credo de Calcedônia, de 451:

“Nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à [sua] divindade, e perfeito quanto à [sua] humanidade; verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo, consubstancial com o Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; em tudo semelhante a nós, excetuando o pecado; [mas] gerado segundo a divindade pelo Pai antes de todos os séculos, e nestes últimos dias, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria, mãe de Deus; um e só mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis; a distinção de naturezas de modo algum [sendo] anulada pela união, antes [sendo] preservada a propriedade de cada natureza, concorrendo para formar uma só pessoa e em uma subsistência; não separado nem dividido em duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho, o Unigênito, Verbo de Deus, o Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas desde o princípio acerca dele testemunharam, e o mesmo Senhor Jesus nos ensinou, e o Credo dos santos Pais nos transmitiu.”

[Vide http://pt.wikipedia.org/wiki/Credo_calcedoniano]

O processo foi gradativo, e, em sua maior parte, consistiu em negar a veracidade de determinadas afirmações que algumas pessoas e alguns grupos estavam fazendo.

A. Jesus de Nazaré é Mestre, Profeta, Ser Especial, mas é Menos do que Deus

a. Ebionismo (Ebionitismo)

Os Ebionitas, no segundo século, insistiam na necessidade de o Cristianismo observar a Lei e os costumes dos Judeus. Para eles, Jesus era o eleito ou escolhido de Deus, era um profeta verdadeiro (na linha dos profetas do Velho Testamento, mas não era um ser divino. Coerentemente, não aceitavam que ele fosse eterno, ou co-eterno com Deus, nem que tivesse nascido, miraculosamente, de uma virgem. Quem “incarnou” em Jesus foi um arcanjo celestial. Era admissível chama-lo de Messias e Cristo, porque ele cumpriu a Lei. Mas é a Lei que continua importante, não aquele, por mais honorável que seja, que a cumpriu.

[Cp. Leo Donald Davis, The First Seven Ecumenical Councils (325-787): Their History and Theology, 1983, p. 33]

b. Adocionismo

Teodoto de Roma (século II) e Paulo de Samosata (século III) foram dois pensadores que também negaram a plena divindade de Jesus, afirmando que ele era um homem que foi (por ocasião de seu batismo) adotado por Deus. Paulo de Samosata acreditava que o Verbo (Logos) havia se incorporado ao homem Jesus, mas sem torna-lo divino. É possível chama-lo, portanto, de Filho de Deus, segundo Teodoto, mas não se pode esquecer de que a filiação é por adoção, e que Jesus, portanto, não compartilha da substância, natureza, essência de Deus, embora tenha recebido poderes especiais quando de sua adoção. Paulo de Samosata admitia que se chamasse Jesus de Filho de Deus por causa do seu progresso moral, não porque ele fosse divino.

Paulo de Samosata, é bom que se registre, era um bispo em Antioquia (260-268) — embora seu comportamento fosse bizarro para um bispo.

c. Arianismo

Desafio maior do que o dos Ebionitas e dos Adocionistas foi o de Ário (nascido na Líbia, por volta de 256, mas que escreveu e atuou principalmente no século seguinte, isto é, no início do século IV. Ele era um cristão de Alexandria, na verdade um teólogo de primeira, com enorme capacidade de argumentação e que conhecia extremamente bem os escritos cristãos. A data do início da controvérsia ariana é geralmente tida como 318.

Ário era um padre sério, austero, de aparência acética. Aparentemente era alto e bonito, e fazia sucesso com as mulheres. Consta que tinha um séquito de 700 virgens consagradas que o acompanhavam.

Ário tinha Jesus em mui alta conta, admitindo que ele fosse melhor do que os demais homens, e mesmo que fosse, em alguns aspectos diferentes dos demais homens. Ou seja, Ário estava disposto a aceitar a tese de que Jesus era “mais do que humano”.

No entanto, não podia se convencer de que ele chegasse a ser Deus, ou divino, porque cria que Deus só há um. Se viesse a admitir que Jesus era Deus, ou divino, teria de, em seu modo de ver, abandonar sua crença no monoteísmo. Assim, embora pudesse admitir que Jesus fosse “mais do que humano”, insistia em que ele era “menos do que divino”.

Jesus ficava, portanto, para Ário, numa posição intermediária entre “plenamente humano” e “plenamente divino”, não sendo, na verdade, nenhuma das duas coisas, mas compartilhando características de ambas.

Para Ário, Deus é um só, e só esse Deus único é “ingênito” (agenneton, não gerado, e, portanto, autoexistente; só esse Deus não tem princípio (anarchon), nem fim, e, portanto, é eterno; só esse Deus é perfeitamente bom, todo-poderoso, onisciente, criador de tudo o que existe, etc. etc. etc.

Por mais elevado que fosse o status de Jesus, Ário não admitia que ele fosse descrito em termos que se aplicam exclusivamente a Deus. Logo, não se pode dizer que Jesus fosse “ingênito”; mas pode-se dizer que ele era unigênito de Deus — o único gerado por Deus. A tese de Ário a esse respeito é compatível com João 3:16, em que Jesus é chamado de filho “unigênito” de Deus [vide também Rom 8:29 e Col 1:15, em que ele é chamado de “primogênito”), bem como com a linguagem de que Deus é Pai e Jesus, Filho (só que, para Ário, Jesus não é “Deus Filho”). Para Ário, dizer que Jesus foi gerado equivale a dizer que ele foi criado, isto é, faz parte da criação, como todas as outras coisas que existem (fora Deus).

A lógica do pensamento de Ário deveria ter levado a concluir que houve um tempo em que o Filho “não era”, não existia — e que ele só tivesse começado a existir a partir do momento em que Deus o gerou (criou). Contudo, Ário estava disposto a admitir que Jesus tivesse sido gerado (criado) “antes da criação do tempo” — sem que, entretanto, isso o tornasse eterno. . .

De qualquer forma, como gerado, ou como criatura, independentemente de ter sido gerado ou criado antes da criação do tempo, Jesus era claramente menos do que Deus e subordinado a Deus. É por isso que ele diz, em João 14:28, que o Pai é “maior do que eu”. Sendo menor do que Deus, num sentido essencial, Jesus não poderia ter acesso aos desígnios de Deus, razão pela qual não podia entender tudo o que Deus estava fazendo, nem mesmo com ele e através dele, Jesus.

Ário, embora possuidor de uma lógica implacável, e apesar de ser um conhecedor profundo das Escrituras, que ele era capaz de citar de forma espertamente seletiva, omitindo passagens que pudessem ser usadas contra ele, foi considerado herege no Concílio de Nicéia, de 325 (considerado o Primeiro Concílio Ecumênico, de sete que aconteceram). Assim, desde então, o arianismo — que, convenhamos, embora decretado heresia, custou a desaparecer — foi rejeitado, e a ortodoxia se comprometeu a aceitar a tese de que Jesus é divino, totalmente igual a Deus, da mesma “substância”, “natureza”, ou “essência” de Deus, embora reconhecendo que Deus e Jesus sejam duas “pessoas” diferentes.

O arianismo é considerado uma variante, ou uma categoria, de outras doutrinas rejeitadas pela igreja, como, por exemplo, o monarquianismo, doutrina antitrinitária que enfatiza que Deus é um único princípio e uma única pessoa, não mais, e o “subordinacionismo”.

[Cp. Williston Walker, História da Igreja Cristã, pp. 156-173; Vide especialmente Mark A. Noll, Momentos Decisivos da História do Cristianismo, pp. 53-58].

B. A Afirmação da Divindade de Jesus no Concílio de Nicéia (325)

Eis o Credo de Nicéia, que incorpora as decisões do Concílio convocado pelo Imperador Constantino para resolver a questão da natureza de Jesus:

“Cremos em um só Deus, Pai todo poderoso, Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis; E em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus, gerado do Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial do Pai, por quem todas as coisas foram feitas no céu e na terra, o qual por causa de nós homens e por causa de nossa salvação desceu, se encarnou e se fez homem, padeceu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus e virá para julgar os vivos e os mortos; E no Espírito Santo. Mas quantos àqueles que dizem: ‘existiu [um tempo] quando [Jesus Cristo] não era’ e ‘antes que nascesse não era’ e ‘foi feito do nada’, ou àqueles que afirmam que o Filho de Deus é uma hipóstase ou substância diferente, ou foi criado, ou é sujeito à alteração e mudança, a estes a Igreja anatematiza”.

[http://pt.wikipedia.org/wiki/Primeiro_Conc%C3%ADlio_de_Niceia]

Como se vê, o Credo de Nicéia admite que Jesus foi gerado — mas nega que geração seja equivalente a criação e nega que tenha havido um tempo em que ele não estava, ou houvesse sido, gerado. Fica aberta a porta para a afirmação posterior de que sua geração pelo Pai foi eterna — isto é, o Pai, em sua eternidade, sempre esteve a gerar o Filho. A geração do Filho não significa, portanto, que ele fosse menor do que o Pai.

2. A Questão Trinitária

O Concílio de Nicéia afirmou que Jesus é da mesma substância que Deus, que é “consubstancial” de (com) Deus. Isso significa que ele tem a mesma natureza ou essência de Deus. Mas não negou que cada um fosse uma “pessoa” diferente. E afirma, meio en passant, a crença no Espírito Santo — que seria ainda uma outra pessoa. O desafio agora é explicar como essas três pessoas de uma mesma substância (natureza, essência) não são “três deuses”. O desafio, em outras palavras, é afirmar a Trindade e negar o Triteísmo.

Como disse G. L . Prestige,

“Como seria possível, dentro do sistema monoteísta que a Igreja herdou dos Judeus, que é claramente explicitado na Bíblia, e que vinha sendo proposto e defendido pertinazmente contra os pagãos, ainda manter a unidade de Deus e, ao mesmo tempo, insistir na plena divindade de alguém que era uma pessoa distinta de Deus, o Pai”.

[G. L. Prestige, God in Patristic Thought, 1936, apud Leo Donald Davis, The First Seven Ecumenical Councils (325-787): Their History and Theology, 1983, p. 33]

É evidente que o primeiro grande problema doutrinário da Igreja não foi a definição da Doutrina da Trindade, mas, sim, a definição da divindade de Jesus.

A. Patripassianismo

A doutrina (que veio a ser considerada herética) do Patripassianismo era uma doutrina antitrinitária, que paradoxalmente, reconhecia a divindade de Jesus, mas enfatizava a tal ponto a unidade de Deus que negava que o “Pai” e o “Filho” fossem pessoas diferentes, reconhecendo, assim, apenas um Deus. Para os patripassianistas, foi o próprio Pai que encarnou, nascendo da Virgem, e que sofreu e foi morto. Noeto de Smirna afirmou que “Cristo era o próprio Pai, e que foi o próprio Pai que nasceu, sofreu e morreu”. Daí vem o nome da doutrina: pater é pai, passionismo tendo que ver com paixão, sofrimento.

Sabellius, da Líbia, foi outro que defendeu uma doutrina, se não idêntica, muito parecida com o Patripassianismo — embora alguns autores a rotulem de Monarquianismo ou Modalismo: um princípio (ou divindade) só, mas que aparece em diversos “modos” ou “modalidades”. O que caracteriza todas essas heresias é a tentativa de não negar a real divindade de Jesus (como o Ebionismo, o Adocionismo, o Arianismo) e de, ao mesmo tempo, afirmar a unidade (não a triunidade) de Deus: Deus é uma pessoa só que se manifesta de diversos modos, como Pai, como Filho, como Espírito.

B. A Defesa do Trinitarismo

[A SER COMPLETADO]

Em São Paulo, 11 de Março de 2015

My Way

[NOTA: Republicação, em 5.3.2015, exatamente sete anos atrás, com pequenas alterações, em relação ao texto que originalmente publiquei em 9.12.2006, quando eu estava em Kuala Lumpur, Malásia. Hoje, em 5.3.2022, exatamente sete anos depois da primeira revisão, faço mais algumas pequenas alterações. ]

A vida de vez em quando dá umas porradas na gente, quando a gente menos espera. Minha irmã perdeu, recentemente, um atrás do outro, um cunhado e uma cunhada (não casados um com o outro). Ficou, naturalmente, meio abalada – quem não ficaria? Conversando com ela no Messenger do Facebook, mencionei uma de minhas canções favoritas: “My Way”, letra de Paul Anka (meio que versão do Francês para o Inglês de uma canção chamada “Comme d’Habitude”), interpretação inigualável de Frank Sinatra. Enquanto conversávamos, resolvi traduzi-la para o Português.

Não sou poeta: não consigo traduzir em verso, com rimas e métricas. Mas o resultado, apesar de literariamente precário, é, pelo menos, parece-me, fiel ao original.

A letra da canção é uma lição de vida.

Em Agosto passado (2006), quando estive em Perth, no Oeste da Austrália, fui convidado a participar de um talk show – uma entrevista longa, de uma hora, falando de tecnologia, educação, religião e a vida em geral – da ABC Radio da Austrália. A produção do show me contatou antes e me perguntou se eu tinha uma música favorita. Eles queriam começar o programa tocando a música. Indiquei “My Way”, com o Frank Sinatra. Começaram o programa assim – e me perguntaram, em seguida, por que eu havia escolhido essa música.

Respondi basicamente o seguinte:

Em primeiro lugar, porque que a canção é sobre “My Way” – não “The Way”. Não sou um relativista. Acredito que existam verdades e valores absolutos. Mas em relação ao tipo de vida que vamos viver, e como vamos viver essa nossa vida, cada um de nós é soberano – e temos o direito até mesmo de cometer erros, às vezes até uns erros meio bestas. Não raro, é assim que a gente aprende. Seria ótimo se a gente pudesse aprender sempre com os erros dos outros, sem ter de cometer os próprios. Mas não é assim que é a vida. Karl Popper até mesmo sugeriu que quanto mais cedo cometêssemos nossos erros, tanto melhor – mas não nos deu nenhuma garantia de que, se os cometêssemos cedo, não iríamos cometê-los também mais tarde…

Em segundo lugar, porque a canção reconhece que somos responsáveis pela escolha não só do conteúdo de nossas vidas (o que ser, o que fazer, com quem nos relacionar), mas também da nossa maneira de ser, de nossa maneira de fazer as coisas, de nossa maneira de nos relacionar com os outros – enfim, de nosso estilo. Cada um, afinal, tem “seu jeito” – e esse jeito é, ou pode ser, objeto de nossa escolha.

Em terceiro lugar, porque a canção reconhece o fato de que, não importa quanto planejamento a gente faça (“chart our course”, “carefully plan each step”), às vezes as coisas não acontecem como as planejamos. Não raro tentamos abocanhar mais do que conseguimos mastigar (“we bite off more than we can chew”)… Nesses casos, a melhor coisa a fazer é cuspir aquilo que foi mordido a mais, que está além de nossa capacidade de mastigar…

Em quarto lugar, porque a canção reconhece que na vida há imponderáveis, há sorte e azar, há coisas como aquelas que Woody Allen traz à tona em seu lindo filme (com a não menos linda Scarlett Johansson) “Match Point”…

Em quinto lugar, porque a canção reconhece que a vida é feita de amores, de alegrias, de risos – mas também de perdas, de tristezas, de lágrimas… Mas quando esses maus momentos chegam, devemos procurar ficar de pé (“stand tall”) e enfrentá-los (“take the blows”) – e fazer isso do nosso jeito.

Finalmente, em sexto lugar, por causa da mensagem final: o homem não tem nada, se não for dono de si mesmo. Quem se ajoelha diante dos outros, entrega o controle de sua vida a terceiros.

Aqui está a letra traduzida para o Português:

Do Meu Jeito (My Way)

(P. Anka, J. Revaux, G. Thibault, C. Frankois)

Agora, o fim está próximo, chegou a hora da última cortina.

Por isso, amigo, vou apresentar meu caso, do qual não tenho dúvidas.
Vivi uma vida plena, andei por tudo o que é caminho,
Mas, o que é mais importante, sempre fiz tudo do meu jeito.

Arrependimentos tive alguns, mas poucos para merecer menção.

Eu fiz o que tinha de fazer, fui até o fim, sem exceção.
Planejei meus caminhos, e, neles, escolhi meus passos,
Mas, o que é mais importante, sempre fiz tudo do meu jeito.

Vezes houve, você sabe, quando abocanhei mais do que pude mastigar.

Mas é que, em caso de dúvida, nunca hesitei:
Sempre mordi primeiro, ainda que pra cuspir depois.
Enfrentei tudo, sempre continuei de pé, e fiz tudo do meu jeito!

Eu amei, ri, chorei – de tudo tive minha cota, até de derrotas…

Mas agora, que as lágrimas já secaram, acho tudo até divertido!
Pensar que eu fiz isso tudo, e, se eu posso dizer, sem modéstia,
Ah, não! modéstia não é comigo… Eu fiz tudo do meu jeito!

Pois o que é o homem, no fundo o que é que ele tem?

Se não for dono de si mesmo, ele é pobre, nada tem.
Dono para dizer o que pensa e sente, não palavras de quem se ajoelha.
Os autos provam: levei porradas, sim, mas fiz tudo do meu jeito!

ORIGINAL:

(P. Anka, J. Revaux, G. Thibault, C. Frankois)

And now, the end is near,
and so I face the final curtain

My friend, I’ll make it clear, I’ll state my case, of which I’m certain
I’ve lived a life that’s full I traveled each and every highway;
And more, much more than this, I did it my way

Regrets I had a few,
but then, again, too few to mention

I did what I had to do and saw it through without exemption
I planned each charted course, each careful step along the byway
And more, much more than this, I did it my way

Yes, there were times,
I’m sure you knew,
when I bit off more than I could chew
But through it all, when there was doubt, I ate it up and spit it out
I faced it all and I stood tall and did it my way

I’ve loved, I’ve laughed and cried,
I’ve had my fill, my share of losing

And now, as tears subside, I find it all so amusing
To think I did all that, and, may I say, not in a shy way,
“Oh, no, oh, no, not me! I did it my way”

For what is a man, what has he got?

If not himself, then he has naught,
To say the things he truly feels, and not the words of one who kneels
The record shows, I took the blows, and did it my way!

Em Kuala Lumpur, Malásia, já no aeroporto para ir embora, 9 de dezembro de 2006, com revisões em 5.3.2015 e em 5.3.2022

Educação e Desenvolvimento Humano: O Foco no Aluno e na Aprendizagem

[Texto transcrito de uma palestra feita em 17 de Novembro de 2005, quase dez anos atrás, no IV Congresso Municipal de Educação de São Paulo, 2005, publicada nos Anais do Congresso, 2005, pp. 33-36]

É com prazer e satisfação que atendo ao convite do professor José Aristodemo Pinotti para falar sobre educação e desenvolvimento humano. Tive o privilégio de ser seu colega na UNICAMP durante vários anos e de trabalhar com ele, na década de oitenta, na Reitoria da UNICAMP e nas Secretarias Estaduais da Educação e da Saúde.

Como minha formação básica é em filosofia, vou concentrar minha atenção mais nas finalidades da educação do que nos meios que usamos para educar.

A educação é um processo histórico, econômico, social, político e cultural que tem lugar em sociedades específicas em momentos específicos da história. A educação que era apropriada na época de Ramsés II no Egito não é a educação que seria apropriada na época de Sócrates, Platão e Aristóteles. A educação que era adequada para os gregos certamente não é a educação que seria apropriada durante a Renascença, nos séculos XIV e XV. A educação adequada na Renascença certamente não é a que seria adequada durante a Revolução Industrial, nos séculos XVII e XVIII. E a educação que era adequada durante todo o período da Revolução Industrial não é, necessariamente, a mais adequada para a época em que vivemos, em pleno século XXI.

Esse é o primeiro ponto: se o contexto histórico, econômico, social, político e cultural em que a educação ocorre sofre mudanças radicais, é de esperar que a educação que se ministra naquele período, naquele lugar da história, também sofra mudanças.

O segundo ponto é o seguinte: aquilo que chamamos de educação é um fenômeno complexo. Ouvimos, dos palestrantes anteriores, em especial do ex-ministro da Educação e meu colega na UNICAMP, Paulo Renato Costa Souza, uma série de considerações importantes sobre educação, especialmente durante os oito anos do governo FHC, que descreveram programas de financiamento da educação, de aumento do salário dos professores, de formação e de aperfeiçoamento de professores, de melhoria do fluxo de alunos pela rede escolar, de distribuição de livros e tecnologia para as escolas, de recuperação da infraestrutura das escolas, etc. Tudo isso certamente tem relação com a educação, mas esses são apenas meios para que se possa educar as pessoas, especialmente as crianças, os adolescentes e os jovens.

Consta que Einstein teria dito que vivemos em uma época de meios cada vez mais aperfeiçoados e fins cada vez mais confusos. Vou, então, procurar concentrar minha fala na questão dos fins, deixando um pouco de lado a questão dos meios.

Atualmente, fala-se muito sobre a necessidade de melhorar a qualidade da educação, introduzir reformas na educação. Nos últimos anos vimos, aqui no Brasil, reformas que afetaram o ensino fundamental e o ensino médio, e está em curso um processo de reforma do ensino superior. Ouvimos, hoje, o tempo todo, falar na necessidade de melhorar a qualidade da educação. Parece-me que a razão principal para essa ênfase atual na necessidade de reformar a educação, melhorar a sua qualidade, se relaciona com o fato de que nosso mundo mudou, e mudou substancialmente, nesses últimos 60 anos, desde o final da 2a Guerra Mundial em 1945. Por isso, muitos analistas do cenário contemporâneo não hesitam em dizer que estamos vivendo numa nova era.

Peter Drucker, recém-falecido, escreveu o livro Novas Realidades, no qual comparou a época atual com a Renascença e afirmou que vivemos, no tempo atual, uma nova era, que ele denominou de uma segunda Renascença. Para ele, as mudanças que ocorreram nos últimos 60 anos, que não pararam de acontecer e que continuarão acontecendo, foram, são e serão tão drásticas, que os próximos anos serão mais diferentes dos anos da primeira metade do século XX do que o período moderno foi diferente da Idade Média.

Vários autores têm batizado essa nova era com nomes variados: Sociedade da Informação, Sociedade do Conhecimento, Sociedade Pós-Industrial ou até mesmo Sociedade Pós-Moderna. O nome não importa tanto quanto nosso entendimento da natureza dessa nova era em que estamos entrando, na qual já estamos vivendo.

A essência dessa nova era talvez seja captada pelo conceito de mudança. Em 1970, Alvin Toffler escreveu a obra Choque do Futuro na qual afirmava que mudança seria o fator essencial dos anos seguintes e, hoje, todos temos consciência do fato de que mudanças estão acontecendo em grande quantidade e em ritmo e intensidade cada vez mais acelerados. Elas estão afetando todo os aspectos de nossa vida: pessoal, lazer, trabalho, tudo está sendo afetado por uma onda gigantesca de mudanças que faz com que nossa maneira de ser, de trabalhar, de divertir-nos e, naturalmente, de aprender esteja sendo radicalmente alterada, sem que o percebamos, às vezes (porque estamos no meio do processo).

Gostaria de salientar quatro mudanças importantes que vêm ocorrendo nesses últimos 60 anos e que são relevantes para a educação.

Primeiro, a informação, que era escassa, tornou-se algo que talvez tenhamos em excesso. Eu frequentei a escola pública na década de 50 e me lembro de como era difícil, por vezes, encontrar informações sobre tópicos acerca dos quais tínhamos que escrever trabalhos. Cursei, no Segundo Grau [Ensino Médio], a modalidade “Clássico” e me lembro de que, em 1961, meu professor de literatura portuguesa solicitou que eu escrevesse um trabalho sobre as cartas de amor de sóror Mariana Alcoforado, de quem nunca ouvira falar. Não havia nada sobre sóror Mariana Alcoforado na biblioteca da escola, em Jandira. Encontrei somente na biblioteca pública de São Paulo um livro com suas cinco cartas, sem nenhum comentário sobre a autora ou a obra. Recentemente, encontrei meu trabalho, amarelado pelo tempo, na minha casa, e resolvi entrar na Internet para procurar referências sobre Mariana Alcoforado. Encontrei, no Google, a indicação de mais de 16.000 referências sobre ela.

Isto significa que, em 50 e poucos anos passamos de uma situação de total escassez de informações para uma situação em que há excesso de informações. Com esse excesso de informações, fica-se tão perdido quanto na situação em que há deficiência delas. O excesso de informações, às vezes, está produzindo grande ansiedade em nós.

Que relevância tem isso para a educação? Em 1950, quando entrei na escola, era perfeitamente justificável que a instituição concentrasse grande parte de seu esforço na transmissão, na disponibilização de informações para seus alunos, porque as informações eram escassas e o acesso a elas, difícil. Mas, 55 anos depois, não faz mais sentido que a escola concentre parte significativa de seu esforço no processo de transmitir informações aos alunos.

Tenho um amigo australiano, um grande educador, Bruce Dixon, que diz: “Se os alunos podem encontrar as informações relevantes no Google, não ensine. Deixe que eles procurem”.

A segunda grande mudança, relacionada à primeira, relaciona-se com a comunicação. Lembro-me de que, em 1950, para fazer um telefonema de Santo André a Campinas, onde morava minha avó materna, era preciso ir à central telefônica, pedir a ligação à telefonista, e esperar de duas a três horas para que ela se completasse – e, o que é pior, às vezes não se conseguia completar a ligação. Nestes últimos 50 anos, o processo de comunicação mudou de forma tão radical que nem percebemos como isso tem afetado nossa vida. Em 1950, nós tínhamos o costume de fazer visitas aos amigos e parentes. Nem avisávamos porque não havia como avisar. Hoje, perdeu-se o hábito de fazer visitas e, certamente perdeu-se o costume de fazer visitas sem avisar, porque podemos telefonar, mandar um e-mail; mantemo-nos em comunicação o tempo todo com pessoas que nos são importantes, e essa comunicação é, em geral, quase instantânea.

Qual o impacto que isso tem para a educação? O impacto é o seguinte: há 50, 60 anos, o professor era, em muitos locais o único especialista ao qual o aluno tinha acesso. O professor, supunha-se, devia saber a resposta de todas as perguntas que as crianças pudessem fazer. Hoje, através da tecnologia, temos acesso a inúmeros especialistas, podemos, através de grupos de discussão pela Internet, trocar informações o tempo todo, fazer perguntas até a notórios especialistas em suas respectivas áreas. Portanto, a tecnologia da comunicação fez com que se tornem facilmente disponíveis a todos as opiniões de especialistas, que podem ser contatados, em geral, do ponto de vista técnico, com grande facilidade. Isso certamente afeta, também, o tipo de trabalho que fazemos na escola.

Há, então duas mudanças relacionadas à tecnologia: uma relacionada à quantidade de informação e à facilidade de acesso a essa informação, outra relacionada à natureza de nossa comunicação com pessoas que nos são importantes.

Vou mencionar mais duas mudanças que não estão, necessariamente, relacionadas à tecnologia: a primeira tem a ver com nosso entendimento do conceito de conhecimento.

Fala-se muito, atualmente, em construtivismo. Há pouco consenso sobre o que seja construtivismo, mas parece-me que há um núcleo central importante nessa noção: conhecimento é diferente de informação. Informação pode ser armazenada em papel, disco, fita, transmitida a outras pessoas, transferida de um lugar para outro, mas conhecimento não, é um tipo de informação especial, privilegiada. Conhecimento tem que ver com modelos, estruturas e esquemas mentais que construímos e que nos permitem fazer sentido da realidade, que nos permitem fazer sentido da quantidade enorme de informação com a qual temos de lidar. Conhecimento é algo que existe dentro da nossa cabeça e cada um tem de construir seus próprios modelos, estruturas e esquemas: não há como transferir meus conhecimentos, nesse sentido, para outras pessoas. Posso tentar elucidá-los, explicá-los, mas cada um tem de construir os seus conhecimentos por si mesmo.

Assim, se no caso da informação não é necessário transmiti-la, porque ela está tão acessível, no caso do conhecimento não é possível transferi-lo, porque cada um tem de construí-lo por si próprio. Acho que essa mudança no nosso entendimento do conhecimento é muito significativa e vai alterar profundamente a nossa concepção e a nossa visão da educação.

A quarta e última mudança que quero destacar – e a segunda que não é relacionada à tecnologia – tem que ver com mais um conceito importante na área da educação: o conceito de aprendizagem. Tradicionalmente, aprender era tido como equivalente a assimilar, absorver informação, memorizar e, assim, reter informação por determinado período.

Atualmente, a maioria dos entendidos em aprendizagem nega que esse processo de mera absorção, de mera assimilação de informação, seja aprendizagem. Edgard Morin escreveu um livro no qual contrasta uma cabeça cheia com uma cabeça bem feita. Rubem Alves critica, em muitos de seus livros e em muitas de suas crônicas, o esforço das escolas de tentar enfiar informação na cabeça dos alunos, tornando-os mentalmente obesos. (A obesidade mental faz-nos perder a agilidade mental, da mesma forma que a obesidade física faz-nos perder a agilidade física). Parece-me que Paulo Freire, quando criticava a educação bancária, aquela educação que é vista como um processo de transferência de informações da cabeça do professor para a cabeça do aluno, estava criticando exatamente essa ideia de que aprender é assimilar, absorver informações.

Hoje, há razoável unanimidade em entender a aprendizagem como um processo de aquisição e expansão de capacidades, de construção e aperfeiçoamento de competências. Aprendo na medida em que me torno capaz de fazer aquilo que não era capaz de fazer antes. Aprendo na medida em que desenvolvo competências e as habilidades que lhes são vinculadas.

Destaquei quatro mudanças importantes que estão ocorrendo na nova era em que vivemos e que tornam imperativo um novo entendimento da educação. E quando tivermos um novo entendimento da educação deveremos, obrigatoriamente, rever todos os meios que temos usado para educar: a própria escola, o currículo, o livro, os materiais didáticos, a tecnologia — e o próprio professor.

Por essa razão, envolvi-me, nos últimos anos, com a tentativa de definir uma nova visão de educação, necessária para essa nova era. Venho chamando esse projeto, desenvolvido, em grande medida através de meu trabalho no Instituto Ayrton Senna, nos últimos oito anos, de “Educação para o Desenvolvimento Humano”.

Essa nova visão da educação parte do pressuposto de que educamos, não porque a sociedade precisa de pessoas educadas, não porque a economia digital precisa de pessoas cada vez mais bem preparadas, não porque sem educação o país não cresce do ponto de vista econômico: educamos porque o ser humano nasce incompetente e dependente, mas com uma incrível capacidade de aprender no sentido que realcei: de expandir capacidades, construir competências.

Portanto, a educação de que precisamos, hoje, é a que vai concentrar seus esforços no processo de transformar o ser humano, que nasce incompetente e dependente, num adulto competente e autônomo. Isso é importante, porque o ser humano, diferente de outros animais, também tem a possibilidade de definir o que quer da vida, que vida deseja para si próprio. A partir de um certo momento, ele pode definir um projeto de vida e procurar construir as competências necessárias para transformar seu projeto de vida em realidade — em vida vivida. E essa noção de educação, como um processo de desenvolvimento humano, e não como um processo de transmissão de herança cultural ou de perpetuação da estrutura social de uma geração para outra, vai colocar de cabeça para baixo tudo que fazemos na escola.

Entretanto, a julgar pelas críticas que a escola tem recebido nos últimos tempos, isso é não só necessário, mas bem-vindo. Quanto mais cedo tivermos consciência desse fato, melhores serão os resultados em termos da aprendizagem das crianças, dos adolescentes e dos jovens que hoje frequentam nossas escolas.

Transcrito aqui em 22 de Fevereiro de 2015

Indicados ao Oscar 2015 – Em Português

Melhor filme

 “Sniper americano”

 “Birdman”

 “Boyhood: Da infância à juventude”

 “O grande hotel Budapeste”

 “O jogo da imitação”

 “Selma”

 “A teoria de tudo”

 “Whiplash”

Melhor diretor

 Alejandro Gonzáles Iñárritu (“Birdman”)

 Richard Linklater (“Boyhood”)

 Bennett Miller (“Foxcatcher: Uma história que chocou o mundo”)

 Wes Anderson (“O grande hotel Budapeste”)

 Morten Tyldum (“O jogo da imitação”)

Melhor ator

 Steve Carell (“Foxcatcher”)

 Bradley Cooper (“Sniper americano”)

 Benedict Cumberbatch (“O jogo da imitação”)

 Michael Keaton (“Birdman”)

 Eddie Redmayne (“A teoria de tudo”)

Melhor ator coadjuvante

 Robert Duvall (“O juiz”)

 Ethan Hawke (“Boyhood”)

 Edward Norton (“Birdman”)

 Mark Ruffalo (“Foxcatcher”)

 JK Simmons (“Whiplash”)

Melhor atriz

 Marion Cotillard (“Dois dias, uma noite”)

 Felicity Jones (“A teoria de tudo”)

 Julianne Moore (“Para sempre Alice”)

 Rosamund Pike (“Garota exemplar”)

 Reese Witherspoon (“Livre”)

Melhor atriz coadjuvante

 Patricia Arquette (“Boyhood”)

 Laura Dern (“Livre”)

 Keira Knightley (“O jogo da imitação”)

 Emma Stone (“Birdman”)

 Meryl Streep (“Caminhos da floresta”)

Melhor filme em língua estrangeira

 “Ida” (Polônia)

 “Leviatã” (Rússia)

 “Tangerines” (Estônia)

 “Timbuktu” (Mauritânia)

 “Relatos selvagens” (Argentina)

Melhor documentário

 “O sal da terra”

 “CitizenFour”

 “Finding Vivian Maier”

 “Last days”

 “Virunga”

Melhor documentário em curta-metragem

 “Crisis Hotline: Veterans Press 1”

 “Joanna”

 “Our curse”

 “The reaper (La Parka)”

 “White earth”

Melhor animação

 “Operação Big Hero”

 “Como treinar o seu dragão 2”

 “Os Boxtrolls”

 “Song of the sea”

 “The Tale of the Princess Kaguya”

Melhor animação em curta-metragem

 “The bigger picture”

 “The dam keeper”

 “Feast”

 “Me and my moulton”

 “A single life”

Melhor curta-metragem em ‘live-action’

 “Aya”

 “Boogaloo and Graham”

 “Butter lamp (La lampe au beurre de Yak)”

 “Parvaneh”

 “The phone call”

Melhor roteiro original

 Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr. e Armando Bo (“Birdman”

 Richard Linklater (“Boyhood”)

 E. Max Frye e Dan Futterman (“Foxcatcher”)

 Wes Anderson e Hugo Guinness (“O grande hotel Budapeste”)

 Dan Gilroy (“O abutre”)

Melhor roteiro adaptado

 Jason Hall (“Sniper americano”)

 Graham Moore (“O jogo da imitação”)

 Paul Thomas Anderson (“Vício inerente”)

 Anthony McCarten (“A teoria de tudo”)

 Damien Chazelle (“Whiplash”)

Melhor fotografia

 Emmanuel Lubezki (“Birdman”)

 Robert Yeoman (“O grande hotel Budapeste”)

 Lukasz Zal e Ryszard Lenczewski (“Ida”)

 Dick Pope (“Sr. Turner”)

 Roger Deakins (“Invencível”)

Melhor montagem

 Joel Cox e Gary D. Roach (“Sniper americano”)

 Sandra Adair (“Boyhood”)

 Barney Pilling (“O grande hotel Budapeste”)

 William Goldenberg (“O jogo da imitação”)

 Tom Cross (“Whiplash”)

Melhor design de produção

 “O grande hotel Budapeste”

 “O jogo da imitação”

 “Interestelar”

 “Caminhos da floresta”

 “Sr. Turner”

Melhores efeitos visuais

 Dan DeLeeuw, Russell Earl, Bryan Grill e Dan Sudick (“Capitão América 2: O soldado invernal”)

 Joe Letteri, Dan Lemmon, Daniel Barrett e Erik Winquist (“Planeta dos macacos: O confronto”)

 Stephane Ceretti, Nicolas Aithadi, Jonathan Fawkner e Paul Corbould (“Guardiões da Galáxia”)

 Paul Franklin, Andrew Lockley, Ian Hunter e Scott Fisher (“Interestelar”)

 Richard Stammers, Lou Pecora, Tim Crosbie e Cameron Waldbauer (“X-Men: Dias de um futuro esquecido”)

Melhor figurino

 Milena Canonero (“O grande hotel Budapeste”)

 Mark Bridges (“Vício inerente”)

 Colleen Atwood (“Caminhos da floresta”)

 Anna B. Sheppard e Jane Clive (“Malévola”)

 Jacqueline Durran (“Sr. Turner”)

Melhor maquiagem e cabelo

 Bill Corso e Dennis Liddiard (“Foxcatcher”)

 Frances Hannon e Mark Coulier (“O grande hotel Budapeste”)

 Elizabeth Yianni-Georgiou e David White (“Guardiões da Galáxia”)

Melhor trilha sonora

 Alexandre Desplat (“O grande hotel Budapeste”)

 Alexandre Desplat (“O jogo da imitação”)

 Hans Zimmer (“Interestelar”)

 Gary Yershon (“Sr. Turner”)

 Jóhann Jóhannsson (“A teoria de tudo”)

Melhor canção

 “Everything is awesome”, de Shawn Patterson (“Uma aventura Lego”)

 “Glory”, de John Stephens e Lonnie Lynn (“Selma”)

 “Grateful”, de Diane Warren (“Além das luzes”)

 “I’m not gonna miss you”, de Glen Campbell e Julian Raymond (“Glen Campbell…I’ll be me”)

 “Lost Stars”, de Gregg Alexander e Danielle Brisebois (“Mesmo se nada der certo”)

Melhor edição de som

 Alan Robert Murray e Bub Asman (“Sniper americano”)

 Martín Hernández e Aaron Glascock (“Birdman”)

 Brent Burge e Jason Canovas (“O hobbit: A batalha dos cinco exércitos”)

 Richard King (“Interestelar”)

 Becky Sullivan e Andrew DeCristofaro (“Invencível”)

Melhor mixagem de som

 John Reitz, Gregg Rudloff e Walt Martin (“Sniper americano”)

 Jon Taylor, Frank A. Montaño e Thomas Varga (“Birdman”)

 Gary A. Rizzo, Gregg Landaker e Mark Weingarten (“Interestelar”)

 Jon Taylor, Frank A. Montaño e David Lee (“Invencível”)

 Craig Mann, Ben Wilkins e Thomas Curley (“Whiplash”)

http://g1.globo.com/pop-arte/oscar/2015/noticia/2015/01/veja-lista-de-indicados-ao-oscar-2015.html

Transcrito em 22 de Fevereiro de 2015