Por que se dividem as igrejas?

I. Introdução ao Tema

Desde que comecei a me interessar pela História da Igreja Cristã me fascinaram as chamadas cisões (também chamadas de cismas, termo masculino) dentro da igreja. Igrejas, sejam elas, nos extremos, igrejas locais ou a própria religião cristã, como tal, se dividem: separam-se, (geralmente) em duas, passando a existir, na melhor das hipóteses, em relações amistosas, como instituições irmãs, ou, na pior hipótese, como instituições inimigas, que combatem (ou pelo menos regularmente criticam) uma à outra.

O que se chama, genericamente, de Protestantismo é resultado de uma cisão dentro da Igreja Católica Apostólica Romana — até aquela ocasião o principal ramo do Cristianismo. Consumada a cisão, entre 1517 e 1530, criou-se um novo ramo do Cristianismo: o ramo reformado, que, logo, não era um ramo unificado, nem mesmo muito unido, dividindo-se em luterano, calvinista, anglicano, radical, etc. Outros surgiram rapidamente, mas no devido tempo. Curiosamente, foi o ramo calvinista, o segundo criado, e não o luterano, que herdou, em alguns países, o nome de “Igreja Reformada” (que especialmente nos Estados Unidos e no Brasil é predominantemente presbiteriano).

Mas a própria Igreja Católica Apostólica Romana, cindida em 1515-1530, já era resultado de uma cisão anterior que separara, de forma aparentemente definitiva (já vai fazer mil anos), em 1054, um Cristianismo até então unificado. Ali criaram-se “dois Cristianismos”: o Romano (com sede em Roma) e o Bizantino (com sede em Constantinopla, cujo nome era conhecido também como Bizâncio. A Igreja Bizantina é geralmente chamada hoje em dia de Ortodoxa, porque, com a queda de Constantinopla na mão dos árabes em 1453, a sede da Igreja Bizantina saiu de lá e perambulou por países mais ou menos próximos, ficando, finalmente, em Moscou. Por isso se fala, muitas vezes, em “Igreja Ortodoxa Russa”.

Mas sempre houve cisões dentro do Cristianismo — mesmo do Cristianismo nascente, cuja identidade não estava ainda plenamente estabelecida. Por volta do ano 50 ficou caracterizado, no chamado Concílio de Jerusalém, um evento descrito em Atos dos Apóstolos cap. 15 e comentado por Paulo na Epístola aos Gálatas cap. 2, o princípio de uma divisão entre Cristãos Judaizantes, com sede em Jerusalém, e Cristãos Gentios, com sede em Antioquia. Paulo era claramente o líder desta facção, a outra sendo liderada por Pedro ou por Tiago, irmão de Jesus. Essa divisão, segundo tudo indica, não se consumou, por uma razão simples. Os Cristãos Judaizantes viam o Cristianismo não como uma religião independente, mas como um ramo (uma seita) do Judaísmo. Ao concordarem, no Concílio de Jerusalém, com a validade do Cristianismo Gentio, estavam, na realidade, sacramentando uma cisão no Judaísmo — o que torna o próprio Cristianismo, originalmente, uma cisão dentro do Judaísmo. Os Cristãos Judaizantes acabaram sendo absorvidos pela nova religião (o Cristianismo Gentio virou apenas Cristianismo) ou foram reabsorvidos pelo Judaísmo.

Fui, virtualmente desde que nasci (1943) até os meus 24 anos (1967). membro da Igreja Presbiteriana do Brasil — criada, por volta de 1859, pela Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, ela própria, de certo modo, criada (oficialmente, em 1709) principalmente pela Igreja Reformada da Escócia, esta criada (em por volta de 1560) dentro do conjunto das Igrejas Reformadas (calvinistas), que passou a existir (a partir de cerca de 1536-1541) dentro das igrejas da Reforma, movimento que (a partir de cerca de 1517-1530) se separou da Igreja Católica Apostólica Romana, que, por sua vez, se separou da Igreja Católica Apostólica Bizantina (em 1054). Nesse período de 24 anos, fui membro menor da Igreja Presbiteriana de Lucélia, SP, de Irati, PR, de Marialva, PR, de Maringá, PR, de Santo André, SP, e de São Paulo (Igreja do Jardim das Oliveiras, na Alameda Jaú, hoje não mais parte da Igreja Presbiteriana do Brasil). Na Igreja Presbiteriana de Santo André (então havia apenas uma desse ramo das presbiterianas na cidade) fiz minha pública profissão de fé, em 1960, deixando de ser “membro menor”, para ser “membro comungante”. Na transição de 1966 para 1967, transferi-me da Igreja Presbiteriana de Santo André (da qual meu pai era pastor) para a Igreja Presbiteriana do Jardim das Oliveiras (da qual era pastor o Rev. José Borges dos Santos Júnior). A minha transferência se deu já dentro de um processo de cisão da Igreja Presbiteriana do Brasil, que acabou por se consumar apenas em 1978, com a criação da Igreja Presbiteriana Unida, à qual a Igreja do Jardim das Oliveiras passou a pertencer (com várias outras igrejas locais que, naquela ocasião, deixaram a Igreja Presbiteriana do Brasil.

De 1967 até 1972, enquanto estudei no Pittsburgh Theological Seminary e na University of Pittsburgh, nos Estados Unidos, e morei nas dependências do Seminário, frequentei a igreja que se chamava então United Presbyterian Church in the USA, e que se chama hoje Presbyterian Church – USA. Na verdade, durante esse período, preguei quase todo domingo, quase sempre em uma igreja diferente, através da “Preaching Association” do Seminário.

De 1972 a 2011, ou seja, durante longos 39 anos, não fui membro de nenhuma igreja.

Em Novembro de 2011, tornei-me membro da Primeira Igreja Presbiteriana Independente do Brasil de São Paulo, conhecida como a Catedral Evangélica de São Paulo, da qual sou membro até o presente. A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil é uma cisão, efetivada em 1903, da Igreja Presbiteriana do Brasil.

Essa breve introdução ao tema das cisões dentro do Cristianismo e da Igreja Presbiteriana já serve de explicação para o meu interesse no assunto.

II. As Principais Causas de Cisão

Analisando as cisões mais importantes que ocorreram dentro da História da Igreja Cristã, podemos concluir que os seguintes fatores tiveram um papel preponderante entre as causas das diversas divisões:

  • Divergências teóricas ou conceituais em relação às coisas em que se deve acreditar, às coisas em que não se deve acreditar, e as coisas em que há liberdade de acreditar ou não (divergência doutrinária é como vou rotular isso);
  • Divergências práticas ou comportamentais em relação a como se deve comportar, a como não se deve comportar, e às condutas que podem ser adotadas ou rejeitadas livremente (divergência prática é como vou rotular isso);
  • Divergências litúrgicas ou cultuais em relação a como se deve realizar os eventos comunitários de adoração a Deus, se ele deve se realizar em templos ou pode se realizar em qualquer lugar, se ele deve ser sério, solene, majestoso, ritualístico e programado em detalhe ou pode ser alegre, cheio de vida (avivado, vivificado, etc.), espontâneo, até certo ponto improvisado ao saber das circunstâncias e dos interesses (divergência litúrgica é como vou rotular isso);
  • Divergências na forma de organizar e administrar a igreja, incluindo, na forma de organização, se a igreja é organizada de forma mais “monárquica e hirarquizada” (com um líder central, arcebispos, bispos, etc.) ou mais “republicana e federativa” (mais horizontal, com líderes eleitos, alternância no poder, etc.), e até mesmo o estilo pessoal de gestão de alguns pastores (que podem ser autoritários e quase ditatoriais mesmo em igrejas organizadas de forma republicada e federalizada e que se imaginam democráticas), etc. (divergência quanto à organização e gestão é como vou rotular isso);
  • Divergências acerca do modo de ver o essencial ou fundamental no Cristianismo, se é conformidade da fé pessoal com as doutrinas aceitas como padrão, se é uma transformação na vida (conversão, regeneração, nascer de novo, tornar-se uma nova pessoa), se é o processo de condução da vida pessoal (santificação), se é um fluxo constante de experiências consideradas religiosas ou de relacionamento (comunhão) com Deus, se é a convivência dos crentes uns com os outros (a chamada comunhão dos santos), se é o amor e o serviço ao próximo (caridade), ou alguma outra coisa (divergência na forma de entender o essencial da religião é como vou rotular isso);
  • Divergências na forma de estruturar o processo de formação de clérigos e outras lideranças (divergência na forma de  formar lideranças é como vou rotular isso).
  • Divergências pessoais entre grupos de membros, líderes e liderados, incluindo divergências acerca de questões sociais e políticas (como a abolição da escravatura, no século 19, , aborto, divórcio, homossexualidade, busca de espaço e poder por parte de líderes ou aspirantes a líderes) e outras questões não necessariamente religiosas (divergência pessoal ou em questões externas é como vou rotular isso).

Espero, em artigos seguintes, analisar alguns cismas que foram (de alguma forma, direta ou indiretamente) importantes em minha vida, como cristão, protestante, presbiteriano, e presbiteriano independente.

Em São Paulo, 3 de Novembro de 2014, revisado em Salto em 6 de Abril de 2017

Educação, Aprendizagem e Ensinagem (Com Foco na Educação Superior)

1. Por Que Precisamos de Educação?

Embora o foco deste texto esteja na Educação de Nível Superior (disponibilizada em faculdades e universidades), vou começar lá atrás, antes mesmo de entrarmos no nível mais baixo da escola (disponibilizada, digamos, em creches): quando nós nascemos.

E vou começar comparando a condição humana com a condição de outras espécies animais, representadas, em caso paradigmático, pelas tartarugas marinhas.

Os bebês de várias espécies animais já nascem, em maior ou menor grau, basicamente prontos para a vida. Como vou usar as tartarugas marinhas como paradigma de outras espécies animais, é delas que vou falar. Uso-as como paradigma porque o caso delas, como o nosso, é extremo — só que os dois termos de comparação, elas e nós, estão em extremos opostos. O que direi delas, tartarugas marinhas, se aplica, mutatis mutandis, no mesmo ou em menor grau, a outras espécies animais — não se aplicando nem um pouco à nossa espécie animal: a espécie dos seres humanos.

2. As Tartarugas Marinhas

Uma tartaruga marinha fêmea e adulta, quando está na época de pôr seus ovos, procura uma praia, em geral aquela em que ela mesma nasceu, cava um buraco na areia, ali põe seus ovos, cobre os ovos com areia para que não sejam facilmente encontrados por predadores, e vai embora. Está terminado o papel da tartaruga-mãe — na verdade, o papel de qualquer tartaruga adulta — na formação de seus filhotes: ela apenas os gera dentro de seus ovos.

A tartaruga-mãe nem mesmo dá à luz os seus bebês. Quando chega a hora de os ovos racharem, as tartaruguinhas marinhas sabem que precisam sair deles, e o fazem sozinhas; elas também sabem que devem ou precisam ir “para cima”, isto é, para a superfície da areia (não havendo nenhum caso conhecido de uma que tenho cavado “para baixo”); elas ainda sabem construir o seu caminho por dentro da areia para chegar à superfície (a praia); mais surpreendentemente, elas também sabem que devem ou precisam ir para o mar (não terra adentro); sabem andar de modo a chegar até o mar; chegando ao mar, sabem que precisam ir mar a dentro; sabem nadar; no mar mais profundo, sabem o que devem ou precisam comer e o que não podem comer; comendo, de desenvolvem e, a menos que sejam devoradas por um animal maior, chegam à idade adulta, quando vão também gerar seus bebês e o ciclo se reinicia.

As tartaruguinhas marinhas não precisam de educação. Por isso não vivem em família, por isso não frequentam escola, por isso não têm professores. Elas nascem prontas para a vida.

Por já nascerem prontas para a vida, as tartaruguinhas marinhas nascem com reduzidíssima capacidade de aprender. Afinal de contas, elas já nascem sabendo basicamente tudo o que precisam fazer para viver sua vida: já nascem autônomas, portanto.

O tipo de vida que elas têm possibilidade de viver, porém, é limitado: elas vão todas ser tartaruguinhas marinhas “de um tipo só” e “de um jeito só” — da forma em que seu código genético foi programado. E o código genético de todas elas é fechado: programado com o mesmo conteúdo, e basicamente inalterável. Por isso, exceto pelo seu tamanho e alguns outros aspectos internos relativos ao seu desenvolvimento biológico, quando uma tartaruguinha marinha nasce ela já está pronta, já sabe fazer tudo aquilo de que precisa para viver sua vida: tem, portanto, total autonomia. Não precisa aprender mais nada — nem que queira. Mas o interessante é que ela não quer, porque não é dotada de liberdade de escolha, decisão e ação…

3. O Bebê Humano ao Nascer Requer Educação

O bebê humano, em contraste, nasce, segundo parece, totalmente despreparado para a vida. Ao sair do ventre materno, ele não sabe fazer literalmente nenhuma das coisas necessárias para que possa sobreviver. Na realidade, não sabe sequer identificar aquilo de que precisa para poder sobreviver. Não sabe o que pode e o que não pode comer. Não sabe se comunicar. Não sabe andar. Se está com frio, não sabe encontrar um lugar mais aquecido, ou buscar um agasalho, ou identificar quem possa prover-lhe calor. O bebê humano, ao nascer, é totalmente incapaz de cuidar de si próprio. Nasce, portanto, sem nenhuma autonomia — o que vale dizer que nasce totalmente dependente: se alguém não cuidar dele, ele morre.

O bebê humano leva pelo menos um ano para andar relativamente bem sobre as próprias pernas; pelo menos dois anos para se comunicar relativamente bem com seus semelhantes, através da linguagem verbal utilizada em seu meio; leva um bom tempo para escolher o que quer fazer de sua vida; tendo escolhido, leva vários anos para se capacitar para viver a vida que escolheu para si; leva ainda mais tempo para, capacitado, conseguir viver como um grau mínimo de autonomia a vida que escolheu; leva muitos anos (só Deus sabe quantos!) para se tornar suficientemente autônomo para cuidar de sua vida por si mesmo (seu sustento, seu abrigo, as coisas de que precisa ou que simplesmente deseja, seus filhos), sem depender o tempo todo dos outros; leva considerável tempo para poder ser responsabilizado (louvado ou punido, recompensado ou punido) por suas escolhas, decisões e ações.

Em tudo isso o bebê humano é muito diferente da tartaruguinha marinha. É por isso que o bebê humano precisa de educação, e a tartaruguinha marinha, não.

Mas ainda há algumas outras importantes diferenças entre o bebê humano e a tartaruguinha marinha — e essas diferenças são favoráveis ao bebê humano. Nós as veremos em seguida., depois de fazer uma primeira aproximação a uma definição de educação.

4. Educação: Uma Primeira Aproximação

Educação, nesse contexto, e em um sentido inicial, mínimo, é o processo pelo qual nos tornamos capazes de sobreviver sem ajuda permanente dos outros, vale dizer, o processo pelo qual adquirimos as competências que nos permitem viver com relativo, mas razoável, grau de autonomia.

5. O Bebê Humano Nasce com Grande Capacidade de Aprender

A segunda diferença entre a tartaruguinha marinha e o bebê humano está no fato de que, apesar de o ser humano nascer sem saber fazer nada que lhe permita sobreviver, ele nasce com uma incrível capacidade de aprender — e começa a aprender assim que nasce (segundo alguns, até mesmo antes). E vai aprender a vida inteira, até mesmo quando estiver velhinho.

Um exemplo importante: mesmo antes de aprender a entender a fala humana e a falar, o bebê humano realiza aprendizagens complexas e sofisticadas. Ele aprende, por exemplo, a reconhecer padrões visuais e sonoros que lhe permitem, ainda pequeno, reconhecer a voz e a fisionomia daqueles que convivem com ele — e, não raro, a estranhar as pessoas cuja voz e fisionomia ele não conhece. Esse é um feito fantástico — que ele consegue realizar sem que ninguém lhe ensine nada.

6. O Bebê Humano Nasce com Programação Genética Mínima e Aberta

Uma terceira diferença é a seguinte. Nos aspectos que vão além dos puramente biológicos, a programação genética efetiva do ser humano é mínima. Isso, que poderia parecer uma desvantagem, é, na realidade, uma grande vantagem.

O bebê humano tem, como visto na seção anterior, uma capacidade inata de aprender que é fantástica. Mas ele tem de aprender como é que ele vai colocar sua capacidade de aprender a funcionar. Assim, a “capacidade de colocar sua capacidade de aprender a funcionar” (aquilo que comumente se chama de “aprender a aprender”) é algo adquirido — apesar de a capacidade de aprender, em si, ser inata.

Por isso, algumas pessoas, que têm uma inacreditável capacidade de aprender, aprendem tão pouco, enquanto outras aprendem tanto.

7. O Ser Humano Nasce com Capacidade de Sonhar

Em quarto lugar, o ser humano também tem uma grande capacidade de imaginar e sonhar, de, em sua mente, construir mundos, em que se imagina isso ou aquilo, ou fazendo isso ou aquilo…

O ser humano sonha ser bombeiro, ou corredor de Fórmula 1, ou piloto de guerra; ou atriz, ou educadora, ou cientista; ou monarca, ou presidente da república, ou salvador da humanidade… E todos sonham ser felizes, ou seja, ser capazes de fazer alguma coisa que traga satisfação e realização dos mais íntimos, profundos, e até mesmo escondidos anseios de sua alma.

É por isso que se pergunta a uma criança o que ela quer fazer de sua vida, “o que ela quer ser quando crescer”. E nunca se faz essa pergunta a uma tartaruguinha marinha, ou a um cachorro, ou a um cavalo.

8. O Ser Humano Nasce com Capacidade de Escolher e Decidir

Em quinto lugar, o ser humo nasce com a capacidade de, dentre os vários sonhos que tem, escolher alguns para procurar transforma-los em realidade, decidindo investir nos meios necessários para que eles deixem de ser somente sonhos, nada mais. . .

Dificilmente conseguiremos ser tudo o que sonhamos ser, fazer tudo o que sonhamos fazer. Por isso, temos de escolher. O processo de escolha é, em última instância, o processo de hierarquizar nossos sonhos, nossas preferências, nossos objetivos para que possamos investir nossos recursos (sempre limitados e muitas vezes escassos: tempo, dinheiro, bens) naquilo que nos é mais importante.

9. Educação: Uma Aproximação Melhor

Educação, agora podemos dizer, em aproximação melhor, é o processo pelo qual nos tornamos capazes:

  1. de definir para nós um projeto de vida (liberdade);
  2. de criar condições para transformar nosso projeto de vida em realidade, desenvolvendo ou adquirindo, nesse processo, habilidades, atitudes, emoções, valores, conhecimentos e informações necessários (competência);
  3. de fazer com que a execução de nosso projeto de vida se torne fonte de sobrevivência, satisfação e realização para nós, e fonte de sustento para os que possam vir a depender de nós, enquanto eles de nós dependerem (autonomia).

10. Por que Precisamos de Educação?

Respondendo, de maneira mais sistemática, à pergunta da primeira seção, precisamos de educação porque nascemos incapazes até mesmo de sobreviver por conta própria, mas com uma grande capacidade de aprender, de sonhar, e de escolher e decidir, que é mister desenvolver. Essas capacidades fazem toda a diferença.

A tartaruguinha marinha não possui essas capacidades, que também não estão disponíveis a animais de outras espécies. Cavalos, por exemplo, podem, por talento natural ou treino, se tornar cavalos de carga, cavalos de circo, cavalos de corrida, cavalos de guerra, cavalos reprodutores, ou simples pangarés que carregam crianças nas costas em alguns lugares turísticos. Mas eles não sonham com essas coisas, nem, muito menos, escolhem e decidem o que vão ser. Alguém (um humano) faz isso por eles.

O objetivo maior de toda educação é, portanto, contribuir para que transcendamos (deixemos para trás) as fases de nosso desenvolvimento em que, porque carecemos de criatividade e competências, somos totalmente dependentes e, por isso, incapazes de autonomia e liberdade. A educação é uma busca constante de criatividade e competências para que possamos, de forma cada vez mais plena, viver a nossa autonomia e exercer a nossa liberdade.

Embora, nos níveis iniciais, a educação possa ter um elemento de diretividade, embora aí se possa esperar que alguém nos ensine alguma coisa, ou a fazer alguma coisa, nos níveis mais altos o foco na ensinagem e suas técnicas deve ser substituído pelo foco na aprendizagem como algo ativo, interativo, comunicativo, colaborativo — aprendizagem que só nessas condições é realmente significativa.

Na Educação de Nível Superior, em que supostamente já temos um projeto de vida e sabemos, ou facilmente podemos descobrir, do que precisamos para transformar esse projeto em realidade, é possível, e desejável, fazer todo uso possível dos espaços de (por um lado) autonomia e liberdade e de (por outro lado) interação e diálogo que nos são abertos.

Embora se admita que, no nível fundamental, e, talvez, no médio, e, quem sabe, especialmente em cursos preparatórios, totalmente apostilados, os alunos tenham a expectativa de que seus professores sejam “sages on the stage”, artistas didáticos que, do alto de um palco, despejam sabedoria em cima deles, no nível superior os alunos devem ter a expectativa de que seus professores operem, ora como facilitadores da aprendizagem, ora como problematizadores de aprendizagens já feitas; ora como quem combate o ceticismo, ora como quem desconstrói certezas; ora como quem acalma, contém e conforta; ora como quem instiga, força limites, incomoda…

Se, nos níveis iniciais da educação, o professor tem um papel mais significativo na aprendizagem do aluno, no nível superior a responsabilidade pela aprendizagem está, quase que totalmente, nas mãos dos alunos, que devem ir atrás de seus professores (e de quem quer mais que possa colaborar), levantar questões, questionar, não deixar barato — e nunca ficar quietos, passivos ou meramente reativos em sala de aula.

Aprender, em especial entre adultos, é um processo ativo de construção, não um processo passivo de recepção.

“Ninguém educa ninguém”, disse Paulo Freire, nosso educador maior. “Mas tampouco nos educamos sozinhos”, acrescentou. E explicou: “Nós nos educamos uns aos outros, em comunhão [interação, comunicação, colaboração], mediatizados pelo mundo”.

É isso, por hoje.

[ET: O termo “Ensinagem” tomei emprestado ao meu saudoso amigo Rubem Alves.]

Em São Paulo, 1 de Novembro de 2014

O NIED, o EduCom, e a UNICAMP

Em 17 de Maio de 1983 o Núcleo de Informática Aplicada à Educação (NIED) da UNICAMP foi criado, por proposta minha, aprovada pela Portaria GR 139 do então Reitor, Prof. José Aristodemo Pinotti, meu saudoso colega e amigo.

O NIED ficou subordinado, na época, diretamente à Reitoria da UNICAMP. Ele era, e continua sendo, até hoje, uma unidade de pesquisa interdisciplinar. Sua equipe foi, e continua sendo, até hoje, composta por docentes que pertencem a diferentes Institutos e Faculdades da Universidade, pesquisadores, profissionais da área de informática, e, naturalmente, pessoal da área administrativa.

Eis o texto da Portaria

Portaria GR-139/1983, de 17/05/1983

Reitor: José Aristodemo Pinotti

Cria o Núcleo Interdisciplinar de Informática Aplicada à Educação.

José Aristodemo Pinotti, Reitor da Universidade Estadual de Campinas, tendo em vista o disposto nos artigos 2º, nº II e V e 158 dos Estatutos, e considerando as justificativas constantes do Processo nº 2540/83, resolve:

Artigo 1º – É criado, junto à Reitoria, o Núcleo Interdisciplinar de Informática Aplicada à Educação.

§ Único – A implantação do Núcleo se fará de modo a evitar a duplicação de meios para o mesmo fim, obedecidos os princípios fixados no artigo 2º da Portaria GR-025/1982.

Artigo 2º – A coordenação dos atos e medidas de organização e implantação do Núcleo caberá a um membro do corpo docente designado pelo Reitor, que, no prazo de trinta (30) dias, submeterá à Reitoria o plano de estrutura e funcionamento do Núcleo e o elenco de seus objetivos e projetos.

Artigo 3º – Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

Artigo 4º – Ficam revogadas as disposições em contrário.

[Publicada no DOE em 24/05/1983 – Seção I – pag. 10]

Portaria interna baixada em seguida me designou como o docente a propor o plano de estruturação e funcionamento do NIED, e, uma vez aprovado este, seu Coordenador. 

Coordenei o NIED desde sua criação em Maio de 1983 até Maio de 1986, quando, acompanhando o Prof. Pinotti, fui ser Diretor do Centro de Informações e de Microinformática da Secretaria de Estado da Educação. 

Durante esses três anos, os participantes do NIED elaboraram, sob minha coordenação, o Projeto EDUCOM, para cujo texto completo coloco um link abaixo. O projeto foi submetido ao Ministério da Educação (MEC), e teve o apoio da Secretaria Especial de Informática (SEI) e da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). O projeto encaminhado pelo NIED foi um dos cinco aprovados (foram submetidos ao todo 26 projetos pelas universidades brasileiras). Além do projeto do NIED foram aprovados os das Universidades Federais do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro, de Minhas Gerais e de Pernambuco. Eu coordenei o Projeto EDUCOM do NIED até sair de sua coordenação, em Abril de 1986.

Voltando ao NIED, em Maio de 2013, portanto, o NIED celebrou seu trigésimo aniversário. Infelizmente, a mesquinharia e a pequenez humana, embora odiosas, são um fato, e o site do NIED, embora divulgando as informações prestadas acima, com exceção da referência ao meu papel e ao meu nome, nunca sequer me convidou para participar das festividades do décimo, vigésimo e trigésimo aniversário da Núcleo.

Que assim seja. 

A Faculdade de Educação da UNICAMP, onde eu entrei em 1974, com o doutorado já completado há dois anos, e onde fui Coordenador de Graduação, Coordenador de Pós-Graduação, e, depois, durante oito anos, Diretor (Diretor Associado de 1976 a 1980 e Diretor de 1980 a 1984), anos em que a Faculdade de Educação foi considerada mais de uma vez a melhor Faculdade de Educação do país, também prefere fazer de conta que eu não existo. 

Vide o texto completo do Projeto EDUCOM – UNICAMP – For NIED-UNICAMP 

Em São Paulo, 28 de Outubro de 2014.

Capa Imaginada de VEJA para 27/10/2014

[Capa imaginada de VEJA para a semana que vem, que se inicia em 27 de Outubro de 2014]

[Capa imaginada de VEJA para a semana que vem, que se inicia em 27 de Outubro de 2014]

“A capa da VEJA que todos os brasileiros DECENTES querem ver na semana que vem”.

[Texto de Rodrigo Constantino].

“O Brasil está livre! Vitória esmagadora de Aécio Neves liberta os brasileiros das garras corruptas do PT.

Sub-manchete exclusiva:

“Dilma e Lula são condenados e pedem asilo político em Cuba”.

[Foto também compartilhada de um post de Rodrigo Constantino]

Eduardo Chaves
26 de Outubro de 2014

Tecnologia, Inovação e Educação

Saiu o Vol. III do Crescer em Rede, do Instituto Crescer. Eu faço a Apresentação desse volume, com o seguinte texto:

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APRESENTAÇÃO

“A tecnologia é uma coisa fantástica.

O ser humano é dotado da capacidade criativa e técnica de inventar coisas que, de um lado, tornam nossa vida mais fácil, eficiente e agradável e, de outro lado, nos permitem realizar ações que, sem essas invenções, seria impossível – ou, pelo menos, muito difícil – realizar.

A tecnologia, em última instância, é isso: invenções humanas que, de um lado, nos permitem fazer melhor ou mais eficientemente (com mais qualidade, com mais rapidez, com mais alcance, com mais prazer, com menos recursos, com menos esforço, etc.) o que já fazemos, e, de outro lado, ampliam nossa capacidade (sensorial, motora, manipuladora, e mesmo mental) de modo a tornar possível que façamos coisas que, sem essas invenções, seria impossível, ou muito difícil, fazer. Nesse segundo sentido, a tecnologia estende a nossa capacidade de perceber o mundo, de nos locomover nele, de manipulá-lo, e até mesmo de pensá-lo ou de refletir sobre ele.

Sem dúvida qualquer tecnologia já é, em si própria, algo inovador. O prego e o martelo, o parafuso e a chave de fenda, o pincel e a tela, o papel e o lápis, todas essas tecnologias são, vistas em si mesmas, inovadoras, apesar de, quando vistas em retrospectiva e perspectiva, serem bastante simples e “baixas” (quando comparadas com as “altas tecnologias” de hoje).

Mas mais importante do que a inovação contida na própria tecnologia é a inovação que ela torna possível. Quem inventa uma tecnologia sabe que está fazendo algo inovador no primeiro sentido: o prego foi inventado para ser pregado em algum lugar e o martelo foi inventado para pregá-lo com maior facilidade. Contudo, quem inventa uma tecnologia muitas vezes não tem muita ideia de tudo o que poderá ser feito com ela, através dela, com a ajuda dela.

Cito um exemplo bem próximo das tecnologias que são objeto do documento que ora estou incumbido de apresentar: o computador. Inventado durante a Segunda Guerra Mundial, o computador era visto, por seus inventores, com uma gigantesca máquina de calcular, que permitiria que se calculassem, com maior rapidez e precisão, trajetórias balísticas. Deram-lhe o nome pomposo de ENIAC: Electronic Numeric Integrator and Calculator. Se os seus inventores houvessem sido indagados, em 1944, se achavam possível que, setenta anos depois, em 2014, todo mundo andaria com um equipamento daqueles no bolso ou na bolsa, só que o equipamento seria muitíssimo menor, mas, apesar disso, muitíssimo mais potente, e que, além de calcular trajetórias balísticas, o equipamento de 2014 permitiria que as pessoas fizessem chamadas telefônicas, se comunicassem também por texto e por vídeo, tirassem e vissem fotografias, fizessem e assistissem filmes, usassem o computador como relógio e despertador, como livro de endereços, como agenda de compromissos, como repositório de dados e informações, como leitor de livros, revistas e jornais eletrônicos, como brinquedo (videogame), etc. eles certamente diriam que não, que seria impossível que o computador que inventaram para ajudar no esforço de guerra dos Aliados pudesse se tornar tão pequeno, acessível e versátil de modo a fazer tudo isso que foi listado.

E, no entanto, foi exatamente isso que aconteceu.

Narra a história que a IBM, que fabricava equipamentos de escritório (business machines, a expressão faz parte do nome da empresa criada em 1911), como relógios de ponto e máquinas de calcular e de escrever, contratou, a peso de ouro, alguns dos mais importantes consultores da época para que lhe dissessem se ela deveria ou não investir na tecnologia recém inventada. A resposta deles foi de que a invenção não teria futuro, porque, quando ela “pegasse”, não iria haver lugar no mundo para mais do que uns quinze computadores, em enormes instituições de pesquisa avançada, cheias de cientistas e engenheiros. Felizmente, para a IBM e para nós, Thomas Watson, o grande chefe da IBM na época, desconsiderou a resposta dos consultores e investiu na tecnologia. . .

Por que estou dizendo isso? Porque nossa inclinação, ao ver uma nova tecnologia, em especial uma tecnologia fascinante como o computador ou o smartphone, é pensar apenas no seu uso para fazer aquilo que já fazemos, só que, agora, com a tecnologia, de uma maneira um pouco mais eficiente, quiçá mais prazerosa, e, quem sabe, com um pouco mais de qualidade e alcance.

Estamos sendo inovadores quando usamos a tecnologia desse jeito? Quando, em vez de escrever no quadro negro (verde, branco), projetamos algo numa tela? Quando, em vez de os alunos nos entregarem seus trabalhos nos costumeiros garranchos, nós exigimos que eles entreguem os trabalhos impressos, ou, quem sabe, os enviem por e-mail ou os depositem num servidor para que possamos lê-los na tela? Ou quando, em vez de fazermos experimentos em laboratórios convencionais, nós os fazemos em um laboratório digital que simula o outro? Quando, em vez de dar nossa aula numa sala de aula física, nós a gravamos e disponibilizamos em uma plataforma de ensino a distância, para muito mais gente se beneficiar com ela? Poderia me estender aqui, mas não é necessário.

Não nego que possa haver alguma inovação nesses usos da tecnologia que eu chamo de conservadores ou, na melhor das hipóteses, reformadores. Mas o computador não revolucionou o mundo por ter sido usado de forma conservadora e reformadora, quando comparada com a intenção e os propósitos de seus inventores. O computador revolucionou o mundo porque pessoas criativas, que não eram necessariamente técnicas (cientistas, engenheiros, etc.), decidiram dar novos usos a uma máquina inventada para fazer cálculos de trajetórias balísticas.

Jeff Bezos, o criador da Amazon, poderia ter criado uma grande livraria física para concorrer com as megalivrarias físicas existentes no mundo naquela época, usando a tecnologia para torná-la mais eficiente na captação de clientes, mais rápida no seu atendimento, menos onerosa na operação, de maior alcance. . . Mas não, ele usou a tecnologia para criar uma livraria virtual, que registrava não só o que os clientes compravam mas tudo o que eles viam na tela, e também vendia livros virtuais (e-books) que chegavam nas mãos dos clientes em menos de um minuto por um preço muito mais barato, permitia aos clientes criarem suas próprias livrarias virtuais ganhando um percentual do preço dos livros vendidos através delas, dava possibilidade aos clientes de avaliar a qualidade do serviço que havia lhes sido prestado e dos livros comprados, solicitava aos clientes que escrevessem resenhas críticas dos livros comprados e lidos. Não contente, Bezos começou a vender outras coisas além de livros físicos e virtuais: discos e filmes, por exemplo – que poderiam ser baixados no ato (como já era feito por um concorrente). A Amazon virou um verdadeiro shopping center online de presença global.

Estou convicto de que a fantástica tecnologia de que hoje dispomos estará sendo usada de forma realmente inovadora na educação quando os envolvidos na educação – alunos, professores, gestores, consultores, prestadores de serviço – estiverem dispostos a pensar “fora da caixa”, a encontrar novas e diferentes formas de aprender e facilitar a aprendizagem com a ajuda da tecnologia, de modo que cada um de nós possa, com o apoio da tecnologia, aprender sempre e a qualquer hora (anytime), a partir de qualquer lugar (anywhere), na forma e no estilo em que aprende melhor (anyway ou anyhow), ajudado e apoiado não só pelos facilitadores “oficiais”, os professores, mas por pares, colegas, e quaisquer outras pessoas, que passam a ser “parceiros na aprendizagem”; que aprendentes, facilitadores da aprendizagem, e parceiros de aprendizagem possam, quando a ocasião se fizer presente, trocar de lugar, para aprender outras coisas, o aprendente se tornando facilitador e este virando aprendente, mas todos continuando realmente parceiros na aprendizagem; que deixemos de criar escolas convencionais, muitas vezes verdadeiras prisões em que crianças e adolescentes são forçados a cumprir sentença, sem aprender o que lhes importa e interessa, e tornemos a vida, a sociedade, o mundo o ambiente de aprendizagem por excelência, em que a aprendizagem seja ativa, proativa, interativa, colaborativa, significativa, atrativa – o tempo todo.

Cumprimento o Instituto Crescer para a Cidadania pelo trabalho que vem fazendo, com seus diversos parceiros. Tenho o privilégio de fazer parte de seu Conselho Consultivo, desde que foi criado. É com enorme satisfação que faço a apresentação deste terceiro volume do Crescer em Rede, depois de acompanhar o lançamento dos dois primeiros. É um trabalho fantástico, porque é assim que devemos crescer: em rede. Mas é importante que não se perca de vista que não basta crescer: é preciso também transformar a educação, e transformar quer dizer “mudar com elevado grau de inovação”, de modo que a forma atual (o paradigma vigente) seja transcendida, deixada para trás, substituída por uma educação nova, inédita, que ninguém ainda sequer ousou pensar.

Para isso é preciso continuar olhando longe, só que mais longe ainda, é preciso pensar fora da caixa, só que mais fora ainda, olhar não só para o que existe e pensar de que maneira podemos fazê-lo melhor, mas pensar em coisas novas, que nunca fizemos ainda, olhar para o que ninguém ainda ousou sonhar e perguntar: “Por que não?” Uma educação totalmente diferente é possível.

São Paulo, 18 de Agosto de 2014

Eduardo Oscar Epprecht-Machado Campos-Chaves

O PT nos Roubou a Esperança

Dia 22/9/2014 escrevi no Facebook, enquanto preparava uma aula sobre teologia protestante no século 20:

“Jürgen Moltmann, teólogo alemão, escreveu algo interessante, no prefácio de um livro que foi editado com base em suas conferências nos EUA de Set-1967 (quando eu estava lá chegando) até Abr-1968 (quando o mundo meio que pegou fogo…), e que recebeu o título de Religion, Revolution and the Future. Ele se confessou admirado com o povo americano, que estava constantemente em movimento, “always on the go“, aparentemente “going places“… Mas ressaltou que, depois de muita observação, ficou com a nítida impressão de que o movimento não era em direção de algo (“toward something“) que se desejava e buscava, mas, sim, um movimento de fuga de algo (“away from“) que não se desejava mais e do qual se queria manter distância. . .”

Eu comentei que achei bonita a imagem. Fiquei pensando no Brasil de hoje… Às vezes a gente fica inquieto, com vontade de se mexer, de se mandar, mas não é mais porque algo nos inspire, chame, atraia, mas, sim, porque algo nos incomoda, revolta, repele. . . Estou me sentindo basicamente desse jeito em relação ao Brasil. Tenho vontade de me pôr em movimento, de me mandar daqui, mas não tanto para ir a algum outro lugar que me atraia, que me pareça muito melhor, mas porque o mau cheiro da política brasileira, que virou um chiqueiro moral, me incomoda terrivelmente.

Alguns amigos curtiram o que transcrevi e escrevi, outros, mais chegados, comentaram… Eis alguns dos comentários (retirados os nomes de quem os fez):

[1] “Acho que muitos — eu também entre eles — estamos desse mesmo jeito em relação ao Brasil. Mudam as gerações e não aprendemos a fazer política decente.”

[2] “Assino ‘in totum’. Gostei do texto. De observação inspirada. Eu me sinto em situação semelhante. Afinal, governados por desonestos que instalam quadrilhas em todos os espaços possíveis e, ainda, com grande parte da nossa população a apoiar o que aí está, só nos resta encontrar o meio de nos defender de uns e de outros. É desesperador. Não dá para ter esperança no momento. Talvez o Brasil tenha de se destruir para que, então, vejamos o que surgirá como sobrevivência.”

[3] “As duas coisas… O Brasil me espanta a cada dia e a Bélgica me chama mais e mais… Um passaporte com tempo maior de permanência seria muito bem vindo. Sem ser a Bélgica existe a opção Austrália — Nova Zelândia (vejam os artigos do Prof. Miguel Sacramento que esteve por lá numa pesquisa muito interessante) e o sempre objeto do desejo Canadá!”

[4] “Interessante que nos últimos dias tenho me sentido assim também. Parece que nosso “mundico” não tem jeito e a gente quer outro lugar em que a situação fosse mais propícia. E isso coincide com este período eleitoral, quando me sinto “encantoado”, sem grandes perspectivas.”

[5] “Me lembrei, de ‘Ora, destruídos os fundamentos, que poderá fazer o justo?’ Salmo, 11:3”.

Volto eu a falar, agora hoje [27/9/2014]…

Meus caros [1], [2], [3], [4], [5]… A cada dia fico mais persuadido de que o principal legado que esse maldito governo petista dos últimos doze anos vai deixar é uma descrença generalizada no ser humano e na democracia.

Mais do que apenas dinheiro, os petistas roubaram a crença, que a maioria dos brasileiros tinham, de que as pessoas são basicamente boas e honestas, de que a democracia, malgrado suas fraquezas, era uma forma viável de governo, que ela poderia funcionar, que a corrupção dos políticos, embora pudesse ocorrer aqui e ali, era algo excepcional e combatível, porque, no fundo, as pessoas que governam tem boa índole e boas intenções, que com educação o povo aprenderia a escolher governantes cada vez melhores, etc. etc. etc.

Essa crença, razoavelmente otimista, deixou de existir. O governo petista a destruiu. Ele mostrou que Agostinho, Lutero e Calvino estavam certos: a natureza humana é, de fato, um desastre: totalmente degradada. O PT mostrou que gente educada, culta, instruída e até já rica, rouba e se vende. Os políticos só querem se eleger para poder roubar. Não há nem um que se salve. Nem o Suplicy, com a campanha dele, que basicamente diz que ele é o único político honesto. E o povo se vende por qualquer boquinha, seja ela um emprego num órgão público, uma bolsa qualquer coisa, uma subvenção dada para uma ONG que eles criaram apenas para mamar nas tetas corruptas do governo.

Uns se corrompem pelo dinheiro, outros pelo poder. Os políticos querem se eleger para continuar a ter poder e grana; outros se corrompem apenas pela graninha que cai no bolso e chega em casa sem esforço. As diversas bolsas, instituídas para ajudar os mais pobres, se tornaram o maior esquema de compra de votos que este país já viu. Basta analisar o mapa de onde a maior parte das bolsas está e o mapa dos votos petistas. Mas não é só bolsa família, bolsa eletricidade, bolsa gás, bolsa banda larga: é a bolsa para fazer universidade privada, para viajar para o exterior, para fazer pesquisa, para criar uma empresinha, para se tornar empreendedor… Há bolsas para empreendedores, para empresários, para ricos, até para banqueiros.

E há o “emprego público”. Um emprego público se tornou o objeto de desejo da maioria dos brasileiros. Criou-se uma indústria de cursinhos e agências de viagem para ajudar o brasileiro a arrumar um emprego público. Ele quer ser um “servidor público”??? De jeito nenhum: ele quer ser um “servidor próprio”, ter garantia de renda sem precisar trabalhar muito, ou sem precisar trabalhar, com a certeza de que faz greve por mais de cem dias sem perder um dia de salário e benefício… E, quem sabe, no emprego público, consegue receber unzinho por fora…

O indivíduo se beneficia uma vez com esse sistema corrupto e não consegue largar mais. Duvido que haja alguém neste país que acredite que os petistas são honestos, que eles não roubam, que eles não desviam dinheiro para os próprios bolsos e para o caixa dos partidos.

Todo mundo sabe que isso acontece. Cada dia aparece um escândalo novo. Todo mundo sabe que o Lulla é corrupto e a Dillma uma besta quadrada.

Mas o povo comprado, com bolsa, com emprego, com boquinha, com ProUNI, com bolsa de estudos no exterior, com emprego público, com a promessa de transporte gratuito, de uma pista para andar de bicicleta (!!!), etc. quer continuar mamando nas tetas do governo petista, e, por isso, tapa o nariz e vota no PT. Alguns nem precisam tapar o nariz mais: já se acostumaram com o mau cheiro do chiqueiro moral em que vivemos. Disseminou-se a crença de que todo mundo, podendo, rouba, e os que não conseguem roubar mamam nas tetas do governo e comem na mão dos que conseguem roubar — e sonham poder continuar fazer isso per saecula saeculorum. Para muita gente, essa é a única visão do paraíso que eles conseguem ter.

Estou convicto de que o Comentarista [2] acertou em cheio quando disse, acima: “Governados por desonestos que instalam quadrilhas em todos os espaços possíveis e, ainda, com grande parte da nossa população a apoiar o que aí está, só nos resta encontrar o meio de nos defender de uns e de outros. É desesperador. Não dá para ter esperança no momento. Talvez o Brasil tenha de se destruir para que, então, vejamos o que surgirá como sobrevivência.” O comentário resume com perfeição a herança maldita do PT. É isso aí. A destruição de nossa crença razoavelmente otimista, ainda que com algumas reservas e ressalvas, de que a democracia poderia funcionar e fazer com que o Brasil tomasse jeito, e a sua substituição pela crença de que não tem jeito, não há esperança de mudança não traumática, que o único jeito de mudar alguma coisa é destruindo tudo para ver se, começando de novo do zero, a esperança ressurge…

A única esperança que sobrou talvez seja a esperança de um dia, de alguma forma, voltar a ter esperança…

Em São Paulo, 27 de Setembro de 2014

Estado, Governo, País, Nação…

Avatar de Eduardo ChavesHistória da Igreja

Menos de um ano atrás, em 2 de Novembro de 2013, publiquei um artigo no meu blog Liberal Space, com o título “Nós os Liberais e a Questão da Direita vs Esquerda de Novo”. Vide: http://liberalspace.net/2013/11/02/nos-os-liberais-e-a-questao-da-direita-vs-esquerda-de-novo/.

Nesse artigo discuti uma série de conceitos, como nação, país, governo, estado, sociedade e indivíduo. Não vou repetir tudo o que escrevi lá, porque meu objetivo aqui é outro, mas vou aproveitar algumas definições e um exemplo.

A discussão dos conceitos será feita na ordem inversa em que os listei aqui.

Indivíduo:

O menos problemático da série de conceitos, indivíduo é o ser humano considerado do ponto de vista de sua unidade, pessoalidade, e unicidade.

Sociedade:

Sociedade é um conjunto dos indivíduos que vivem em um determinado lugar, em um determinado momento, e que se reconhecem, de alguma forma, ainda que vaga, como parte de um todo. Nesse sentido, podemos considerar, num extremo, que…

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Fatos, Narrativas, e Novos Fatos (estes gerados, em parte, pelas Narrativas)

Transcrevo, abaixo, uma página e meia do livro Christianity’s Dangerous Idea, de Alister E. McGrath, publicado em 2007, pela Harper, nos Estados Unidos e comercializado também em e-book. O texto, infelizmente, está em Inglês, mas está disponível em Português nas pp. 67-68 da tradução brasileira, de Lena e Regina Aranha, sob o título A Revolução Protestante (Editora Palavra, Brasília, 2012).

A razão para a transcrição dessa pequena passagem de um livro que, em Português, chega a 532 páginas, está no fato de que ontem (25/8/2014) publiquei um artigo aqui no meu blog “Liberal Space” com o título de Verdade e Mito (http://liberalspace.net/2014/08/25/verdade-e-mito/). Nesse artigo comentei um artigo muito interessante de Denis Lerrer Rosenfield chamado “Verdade e Narrativa”, e foi publicado no Estadão naquele mesmo dia, ou seja, 25/8/2014. O artigo de Rosenfield está disponível em http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,verdade-e-narrativa-imp-,1549100/.

Hoje cedo (26/8/2014) estava me preparando para uma aula acerca da Reforma Protestante, em especial sobre a transição da Reforma Alemã de Lutero para a Reforma Suíça Francesa de Calvino, e encontrei a passagem abaixo transcrita, que é relevante para a discussão de ontem, embora com algumas diferenças significativas.

No texto McGrath argumenta que, no início, não existia algo que pudesse ser chamado de “A Reforma”, quanto mais “A Reforma Protestante”. Havia, isto sim, a partir do final do século 15 (ou mesmo antes, se a gente inclui Wycliff e Huss no quadro), uma série de movimentos e iniciativas individuais visando reformar aquilo que se chamava de Cristandade – uma síntese, ora confortável, ora atribulada, ora conflitante – entre o Cristianismo, chamado de “poder espiritual”, representado, homogenicamente, até então, pela Igreja Católica Romana, liderada pelo Papa, e os diversos “poderes temporais” ou “poderes seculares”, quais sejam, principados, estados e impérios existentes e em processo de consolidação na Europa que, a partir de 1519, encontravam na figura do jovem Carlos V (19 anos, apenas), o titular do chamado Sacro Império Romano (na verdade, uma macroentidade que abrangia a Alemanha e algumas regiões vizinhas na parte central da Europa, mas com ambições realmente imperiais), sua figura mais representativa. [Em geral se refere ao “império” nazista de 1939-1945 como sendo “O Terceiro Reich”. Bem, o Sacro Império Romano é, na visão de muitos alemães, o primeiro dos três “Reichs”. Vide sobre isso, inter alia, https://sites.google.com/site/caroluschess/medieval-history/charlemagne/list-of-holy-roman-emperors].

Voltando ao que mais importa.

Havia, portanto, no início do século 16, na Europa, uma série de movimentos e iniciativas individuais visando reformar a Cristandade – alguns com ênfases mais teológicas (doutrinárias e litúrgicas), outros com ênfases mais político-institucionais, outros com ênfases mais filosóficas e macro-políticas (visando, por exemplo, remover de vez a ingerência do chamado “poder espiritual” sobre o “poder temporal”, introduzindo, portanto, a ideia liberal de separação entre igreja e estado). Não nos esqueçamos de que, desde o Papa Inocêncio III, pelo menos, a Igreja Católica, o poder espiritual, pretendia ter ascendência sobre os poderes temporais, podendo até destituí-los. O fato de que os vários poderes temporais frequentemente resistissem a essa tese não impedia que a igreja a defendesse e lutasse para aplica-la.

Não havia, portanto, unidade entre os vários movimentos de reforma. Não raro eles se viam competindo entre si. Quando o movimento inspirado e, em parte, liderado por Calvino extravasou os limites territoriais de Genebra e da Suíça, e penetrou, entre outros locais, em terras alemães (no Palatinado, por exemplo), o movimento inspirado por Lutero reagiu, vendo, no Calvinismo, o inimigo.

Se os vários movimentos de reforma não conseguiam se ver, inicialmente, como parte de um movimento maior, derivando dele sua identidade, muito menos se enxergavam como um movimento de reforma Protestante – o nome nem existindo ainda, até mais tarde.

A tese de McGrath, que ele parece ter absorvido, em parte, de Dorothea Wendebourg (citada na Nota 3 do texto transcrito), é que esses diversos movimentos foram se considerando parte de um movimento que tinha como intenção não só reformar a Igreja Católica, mas criar um novo conjunto de igrejas (as Igrejas Protestantes), assim redesenhando o mapa religioso da Europa, e, ainda mais, produzir até mesmo um novo modelo de organização política da sociedade, com a separação entre estado e igreja, tolerância religiosa, e, por conseguinte, pluralismo religioso dentro de um mesmo estado, etc. tudo isso demorou muito para acontecer e, de certo modo, só se pode dizer que aconteceu em retrospectiva, como a narrativa dominante (assumida pelos Protestantes) do que teria acontecido, à medida que foram se caracterizando, para os Protestantes, dois inimigos perigosos: primeiro, a Igreja Católica, o inimigo original; segundo, o Estado (que, no entanto, inicialmente, foi aliado dos Protestantes na lita contra a Igreja Católica em muitos casos). Neste segundo caso, não houve uniformidade. Por um bom tempo, e em muitos lugares, as Igrejas Protestantes, tendo ganho a luta com a Igreja Católica, se tornaram igrejas estatais – em alguns casos tentando reprimir não só a Igreja Católica como Igrejas Protestantes concorrentes. Isso se deu, em grande medida, na Alemanha, mas, principalmente, na Inglaterra. E o grande mérito da Reforma Protestante que aconteceu nos Estados Unidos está no fato de que ela, apesar de idas e vindas (porque ela foi da Inglaterra e da Holanda para o continente americano no Norte), ela foi bem sucedida em separar a igreja do estado.

De qualquer forma, é importante registrar que uma narrativa, que não corresponde muito bem aos fatos históricos “wie sie eigentlich gewesen sind” (como eles de fato e verdadeiramente ocorreram), acabou por gerar fatos históricos novos, estes sim, acontecidos de fato e verdadeiramente.

Aqui está o texto do McGrath – que está rapidamente se tornando meu historiador da Igreja favorito.

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Alternatives to Luther

1. Diversification of the Reformation

The name of Martin Luther dominates most popular accounts of the origins and development of Protestantism. By 1519 Luther’s name was beginning to be known more widely, especially within humanist circles. Luther himself was somewhat despondent about the outcome of the debate with Johann Eck at Leipzig, feeling that he had been outwitted and outmaneuvered by the canny theologian from Ingolstadt. Yet humanist networks were buzzing with the news of a hitherto unknown Augustinian monk who had laid down a formidable challenge to papal authority. Luther was about to be hailed as a leading representative of the case for reform of the church and would attract support from even such a luminary as Erasmus of Rotterdam.

Yet other reforming movements were springing up elsewhere in Europe around this time, initially without any knowledge of Luther’s activities and aspirations. It is now clear that uncoordinated reforming initiatives were breaking out in many parts of Europe in the 1510s, often in response to local situations or inspired by local heroes. Many of Europe’s great cities became epicenters of reforming movements that responded to and addressed their local situations. Recent scholarship, in stressing the intellectual and sociological heterogeneity of the first phase of the Reformation, has made it virtually impossible to think of it as a single, coherent movement. [1]

2. The Heterogeneity of Early Protestantism

The Reformation is best conceived as a series of initially independent reforming movements with quite distinct agendas and understandings of the nature of theology and its role in the life of the church. Through the complex networks of the interchange of people, correspondence, and publications that were characteristic of this age, these originally independent movements came to achieve at least a partial degree of alignment over the following decade. Yet this identity was not determined by the movement’s origins, as if this could be frozen in time and declared to be permanently normative. In a tangled and not fully understood process of reappraisal, reorientation, and reappropriation, it would emerge over time. [2]

The concept of “Protestantism” arose from an attempt to link a series of events in the early sixteenth century to form a common narrative of transformation. For the historian, there has never been a thing called “Protestantism”; rather, there were a number of movements, each with its own distinctive regional, theological, and cultural agendas. To speak of “the rise of Protestantism” is to offer a controlling narrative that links these potentially disparate events as part of a greater, more significant movement. So persuasive was this emerging narrative that many of the reforming groups scattered across Europe realigned their sense of identity and purpose to conform to it. As these movements began to locate themselves on a historical and conceptual map, each came increasingly to identify itself in terms of what was perceived as a greater overarching movement. A subtle process of realignment led to a growing sense of institutional and intellectual identity. Yet that identity was initially conceived primarily in terms of two movements—the Lutheran Reformation in northeastern Germany and the Zwinglian Reformation in eastern Switzerland. The idea that these two movements were as the two sides of the same Protestant coin represents a later retrojection by historians and Protestant apologists.

The suggestion that there exists a universal notion called “Protestantism” must therefore be viewed with considerable caution, as must the traditional idea that Luther’s personal religious views somehow define the essence of this putative “Protestantism.” As will become clear, Protestantism designates a family of religious movements that share certain historical roots and theological resources. Luther—admired and respected in some quarters, less so in others—is certainly one of those resources. As we shall see, Protestantism developed into a coherent entity through a complicated history of negotiations and compromises in the late 1520s and 1530s, during which time it was often unclear who was “in” and who was “out,” let alone what the final outcome might be. Everything was in a state of flux, and the various reforming movements of the era shared no clear sense of a common set of beliefs, values, or ways of interpreting the Bible.

In a highly insightful study on the unity of the Reformation, Dorothea Wendebourg argues that the “unity” of the Reformation emerged retrospectively, primarily in response to later Catholic criticisms of the movement [3]. Protestantism developed its sense of identity primarily in response to external threats and criticisms rather than as a result of shared beliefs. In one sense, the idea of “Protestantism” can be seen as the creation of its opponents rather than of its supporters. The history of Protestantism repeatedly demonstrates that a shared sense of identity that transcends denominational and confessional boundaries depends on there being a credible common enemy—a role that has been played, until very recently, by Catholicism. In this chapter, we explore some of the early alternatives to Luther that sprang up throughout western Europe during the 1520s and early 1530s and the negotiations that ensued to define the characteristics of the movement and maximize the potential for collaboration in the face of shared threats and foes. We begin by noting the tensions and disagreements within the original reforming faction at Wittenberg.

NOTES

[1] See Hans-Jürgen Goertz, “Eine ‘bewegte’ Epoche: Zur Heterogenität reformatorischer Bewegungen,” in Wegscheiden der Reformation: Alternatives Denken vom 16. bis zum 18. Jahrhundert, edited by Günter Vogler (Weimar: Bohlaus Nachfolger, 1994), 23–56; Alister E. McGrath, The Intellectual Origins of the European Reformation, 2nd ed. (Oxford: Blackwell, 2003), 182–89.

[2] For a collection of excellent attempts to make sense of what happened, see Bruce Gordon, ed., Protestant History and Identity in Sixteenth-Century Europe, 2 vols. (Aldershot, UK: Ashgate, 1996).

[3] Dorothea Wendebourg, “Die Einheit der Reformation als historisches Problem,” in Reformationstheorien: Ein kirchenhistorischer Disput über Einheit und Vielfalt der Reformation, edited by Berndt Hamm, Bernd Moeller, and Dorothea Wendebourg (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1995), 31–51.

[Emphases added]

Em São Paulo, 26 de Agosto de 2014

Verdade e Mito

Este artigo vai fazer um voo panorâmico sobre alguns assuntos da maior importância, aterrissando em dois ou três lugares importantes. 

1. Estalos de Vieira 

Começo com algo bastante pessoal. Todo mundo já ouviu falar do famoso “Estalo de Vieira”. Mesmo assim esclareço o significado da expressão. O Vieira do estalo é, naturalmente, o Padre Antonio Vieira (1608-1609). Consta — se fato ou não, pouco vem ao caso — que o Padre Vieira era de entendimento meio limitado, até que, um dia, deu-se-lhe algo como um “estalo” em sua mente e ele passou a compreender com clareza aquilo que antes tinha extrema dificuldade para entender. Desde então, toda vez que alguém, meio que de repente, e de forma um pouco misteriosa, quase miraculosa, pelo menos muito coincidentosa, compreende claramente algo que, até aquele momento, lhe era meio confuso, ou de sentido pelo menos meio difuso, diz-se que teve um “Estalo de Vieira”. 

Pois bem. Hoje tive (mais) um Estalo de Vieira. Antes, já tive vários – o que é prova de que, no geral, sou meio tapado, estando a requerer esses tais estalos com certa frequência. Felizmente, tenho-os tido pela enorme generosidade de quem os controla (s’il y en a, como dizem os franceses: se é que existe que os controle). 

Só que meu estalo de hoje não foi, em si, muito misterioso ou miraculoso — embora tenha envolvido uma boa dose de coincidência (ou daquilo que eu já chamei de “provincidência”, que é uma mistura de providência e coincidência que não se compromete com definir o quanto, ali, é providência, o quanto é coincidência). Tive meu estalo lendo o artigo de Denis Lerrer Rosenfield no Estadão de hoje. Denis é um brilhante filósofo que trabalha na UFRGS e é, entre outras coisas, colunista do Estadão. Tive o privilégio de conviver com ele durante três dias num colóquio do Liberty Fund numa deliciosa pousada em São Roque, SP, em Julho de 2008.  Esse mês é, para mim, cheio de lembranças muito agradáveis e importantes, que peço vênia para não detalhar. 

2. A História-Verdade e a História-Narrativa (ou: Verdade e Mito)

O artigo do Denis, para voltar ao que aqui importa, tem o título de “Verdade e Narrativa” (http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,verdade-e-narrativa-imp-,1549100/). É um artigo fantástico. Minha atenção foi chamada para ele por uma referência num artigo de Rodrigo Constantino, no blog da VEJA, que também é um artigo muito bom, com o título “Os Mitos Históricos Seduzem mais do que os Fatos: É a Narrativa que Importa!“. O artigo do Rodrigo está disponível em http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/democracia/os-mitos-historicos-seduzem-mais-do-que-os-fatos-e-a-narrativa-que-importa/. 

Vou resumir o artigo do Denis, embora o título do artigo do Rodrigo já quase faça isso… 🙂 

Ele começa fazendo referência ao excelente filme de Clint Eastwood chamado Flags of Our Fathers, que em Português recebeu o título A Conquista da Honra – gosto mais do título original, que eu teria traduzido por Bandeiras de Luta dos Nossos Pais. (Vide http://www.imdb.com/title/tt0418689/?ref_=nm_flmg_dr_9). [Em colchetes, esclareço que acho todos os filmes de Clint Eastwood excelentes: para mim, ele é o melhor diretor vivo de Hollywood.]. 

No filme, um velho soldado, ex-combatente da batalha de Iwo Jima, uma batalha crucial para o desfecho da Segunda Guerra na sua frente no Pacífico, narra como ele e cinco companheiros tiraram uma foto, ao lado da bandeira americana, para comprovar a vitória americana na batalha. Essa foto se tornou um ícone – sendo considerada o símbolo da “virada” americana na guerra contra o Japão. Aquela foto regimentou a opinião pública e, com o seu apoio, os Estados Unidos acabaram ganhando a guerra. 

Acontece que a foto dos seis soldados com a bandeira foi tirada quando a guerra já estava basicamente ganha. A foto original, tirada pelos soldados que realmente ganharam a batalha, se perdeu, e o que a substituiu foi uma foto “fake“, de quem levou a fama sem ter sido responsável pelo sucesso no campo de batalha. Mas foi a “narrativa”, vale dizer, o “mito” que se tornou a “história”, não no sentido de a história real, vivida, mas no sentido de a história narrada. 

O ponto do artigo de Denis é que, infelizmente, no fundo, é a história narrada que prevalece — enquanto a história real se perde no esquecimento. Por essa razão é que historiadores e pretensos historiadores lutam tanto para controlar qual é a história-narrativa que vai prevalecer e, no futuro, contar como se fosse a história-verdade, a história realmente vivida. 

Ele toma como exemplo a nefasta Comissão da Verdade, que, na realidade, é uma Comissão da Inverdade, que tenta reescrever a história, procurando mostrar que os terroristas, assaltantes de bancos, assassinos do período da Ditadura Militar foram heróis democráticos a quem a Pátria deve honrar e celebrar. Ela quer impor a sua narrativa como verdade, fazer de conta que a sua história-narrativa é a história-verdade. [Essa crítica à assim chamada “Comissão da Verdade” tem sido pisada e repisada por Percival Puggina em seu blog “Conservadores e Liberais”, que merece ser visitado: http://www.puggina.org/.%5D

Em resumo: a narrativa (história-narrativa) que, por qualquer meio, ainda que cheio de invenções, inverdades e meias verdades (que, na realidade, são meias mentiras) é capaz de conquistar a opinião pública acaba prevalecendo e passando por história, como se fosse a história-verdade. Os palestinos dominam essa arte como ninguém, lembra-nos o Rodrigo. 

A distinção entre História-Narrativa e História-Verdade nada mais é do que a distinção entre Mito e Verdade. 

3. Rudolf Bultmann 

Como disse atrás, o meu “estalo” de hoje não é misterioso ou miraculoso, é apenas “coincidentoso”. 

Nos últimos dias, desde quinta-feira à noite, tenho revisitado (como se diz hoje em dia) o pensamento de Rudolf Bultmann, teólogo que comecei a ler há cinquenta anos e que, desde então, nunca parou de me influenciar de alguma forma. É aí que está a coincidência (ou, como disse acima, provincidência: a leitura do artigo do Denis e a releitura de Bultmann se tocaram e, em vez de produzir um curto-circuito, produziram o meu estalo de hoje – ajudaram-me a reinterpretar Bultmann.

Para o cristão comum, leigo em teologia e nas sofisticações do pensamento acadêmico, o Novo Testamento da Bíblia cristã (vamos nos ater a ele) contém vários gêneros literários: ficção inspiradora (as parábolas), preces (o Pai Nosso), ensinamentos morais (as Bem-Aventuranças), e, naturalmente, história — entendida pelo cristão comum como história-verdade. 

O que, para esse cristão comum, é história-verdade no Novo Testamento? Os três primeiros evangelhos, chamados de Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), parte do quarto evangelho (João), o livro de Atos dos Apóstolos (supostamente escrito pelo mesmo autor do Evangelho de Lucas), etc. Nos evangelhos sinóticos está contida basicamente a história de Jesus de Nazareth, desde seu nascimento até sua morte, ressurreição e ascensão aos céus. Tudo isso, para o cristão comum, é história-verdade, isto é, fato histórico inegável. 

Bultmann nega que aquilo que os evangelhos sinóticos relatam sejam fatos históricos, “wie sie eigentlich gewesen sind” (como eles de fato aconteceram — a frase era muito usada pelos historiadores científicos do século 19, todos positivistas, que, mirabile dictu, realmente acreditavam que o historiador consegue descobrir o que de fato aconteceu na história). Para ele, o que temos nos evangelhos, inclusive nos sinóticos, é kerygma – termo que pode ser traduzido como “narrativa daqueles que vieram a acreditar que Jesus de Nazareth era o Messias prometido a Israel, ou, num contexto menos judaizante, o Filho de Deus”. Em outras palavras: o que os evangelhos sinóticos relatam não é história-verdade, mas, sim, história-narrativa, esforço de quem acredita em algo e quer, através de sua narrativa, persuadir os demais a acreditar também…

O surpreendente é que Bultmann não chega a essa conclusão para denunciar a substituição da história-verdade pela história-narrativa no caso dos evangelhos sinóticos. Para ele, o que importa não é a verdade histórica (que os historiadores científicos positivistas ingenuamente imaginavam poder descobrir), mas, sim, a verdade-narrada, a verdade-confessada, a verdade-proclamada. 

Por isso, Bultmann, que se considera cristã, sem maiores qualificativos, não tem o menos problema em admitir que, pelo menos no entender dele, nada se alteraria, em relação à fé cristã, se, per impossibile, se demonstrasse que Jesus de Nazaré nunca viveu e morreu como todo mundo, nunca ressuscitou e subiu aos céus. Para ele a ressurreição de Jesus de Nazaré é algo que não aconteceu dois mil anos atrás na Palestina, mas, sim, algo que acontece hoje (como vem acontecendo desde o início do Cristianismo) na pregação da igreja cristã, sempre que alguém, em decorrência da pregação da igreja, tem a experiência existencial de realmente encontrar, na figura de Jesus de Nazaré, o Messias, o Cristo e o Senhor de sua vida. 

O “Jesus da História”, para Bultmann, não importa. Não importa nem mesmo se houve um Jesus histórico (isto é, que verdadeiramente existiu em algum momento no primeiro século de nossa era na Palestina). O que importa é o “Cristo da Fé”, proclamado na narrativa do Novo Testamento. Uma vez admitido isso, nada impede, pelo contrário, que se faça uma distinção “clara e distinta” entre os livros históricos e os livros confessionais do Novo Testamento, como é o caso das cartas paulinas. 

4. Conclusão do Estalo 

Na minha leitura de Bultmann, até hoje, sempre considerei como mais importante o fato de que ele mostra que a visão de mundo do Novo Testamento é, basicamente, uma visão mítica, não uma visão científica, enquanto que a visão de mundo do homem moderna é, basicamente,  uma visão científica. Nessa leitura, a visão mítica do mundo se contrasta com a visão científica do mundo, vale dizer, com a verdade científica; e a verdade científica é verdade real, não uma construção narrativa… E, nessa leitura, seria preciso reinterpretar a visão mítica do mundo encontrada no Novo Testamento. Segundo essa visão mítica, seres espirituais “do andar de cima do mundo”, isto é, que habitam o céu (Deus, os anjos e outros espíritos “do bem”), lutam, incessantemente, com seres espirituais “do andar de baixo do mundo”, isto é, seres que habitam o inferno (Diabo, anjos caídos e outros espíritos “do mal”), para controlar a nossa vida aqui “no andar térreo” e, por esse controle, determinar se, um dia, depois de nossa morte, vamos habitar no céu ou no inferno (para sempre). A proposta de Bultmann seria procurar reinterpretar essa visão mítica, de acordo com os cânones da ciência (e da filosofia) moderna,  para chegar a um relato sério e honesto do que acontece com nossa vida aqui na Terra (que é o único local que conhecemos), em que nos vemos atraídos, ora para o bem, ora para o mal, em que, embora convencidos de que devemos fazer o bem (ou viver “segundo o espírito”), nos vemos lamentavelmente atraídos para fazer o mal (para viver “segundo a carne”), que possa nos oferecer uma saída para esse dilema e nos permita alcançar um viver autêntico e realizado… 

O problema com essa leitura bultmanniana é que ela desconsidera o fato de que, segundo ele, a forma de passar de uma existência inautêntica para uma existência autêntica tem, necessariamente, que ver com o “evento da salvação” (Heilsgeschehen), que, por sua vez tem que ver com a morte de Jesus de Nazareth e sua ressurreição como o Cristo em quem devemos acreditar e ao qual devemos dedicar a nossa vida, para que ela se torne autêntica e realizada… MAS, nada disso é verdade histórica, ou história-verdade, mas, sim, história-narrativa, ou seja, mito — um outro mito, mais palatável ao homem moderno, mas, apesar disso, um mito, nevertheless (que quer dizer never the less…).  

O esforço de Bultmann, em outras palavras, está no mesmo plano que o esforço da “Comissão da (in)Verdade”. 

Em São Paulo, 25 de Agosto de 2014

Quietude e Solitude — Quieto e Só Entre os Amigos Livros

Estava com saudades de ficar aqui no meu cantinho, na biblioteca do sítio (chamada de “Akston Lounge – I” — a biblioteca de casa é a “Akston Lounge – II”), escrevendo, lendo, contemplando os meus principais amigos: os meus livros. De vez em quando me levanto da confortável poltrona, tiro um livro da estante, dou uma olhada nele, aliso-o com carinho, tiro o pó, e o ponho de volta. Outras vezes apenas mudo um livro de lugar, porque estava num lugar não muito adequado, dado o assunto… Ou acerto o alinhamento deles: parece que eles se mexem sozinhos, preferindo ficar desalinhados, ou de alguma forma protestando contra o alinhamento militar que sempre pretendo lhes impingir. . . 

Sou meio maníaco com essas coisas, com esses arranjos. Não só com o alinhamento, of course. Eles são secundários. Mais importante é o agrupamento e ordenamento. . . Livros podem se perder se fora de seu grupo (categoria) ou se fora de ordem. Bibliotecários sabem disso. Por isso, nas bibliotecas de livre acesso, pedem que a gente não coloque os livros de volta nas estantes, deixando-os nos carrinhos. Um livro colocado no lugar errado em uma biblioteca grande é um livro perdido. Como tenho bem mais de 20 mil livros aqui no sítio, cuido muito disso — apesar de, em regra, só eu e a Paloma mexermos neles.

Em geral agrupo e ordeno meus livros por categoria, começando com grandes áreas: Filosofia, Teologia e Religião, Política (incluindo FIlosofia Política, Teoria Política e Ciência Política — não a prática da política), Economia, Administração, História, Psicologia, Educação… Tenho uma seção grande de livros de Lógica, porque dei aula de Lógica por dois anos nos Estados Unidos. (Política e Lógica são, para mim, parte da Filosofia, mas eu agrupo essas áreas separadamente, por ter muitos livros em cada uma delas). 

Dentro de cada categoria maior, agrupo os livros por assunto e por autor… Em Filosofia, há um agrupamento natural, cronológico, por período da História da Filosofia: Filosofia Grega, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna, Filosofia Contemporânea. . . Dentro da Filosofia Moderna, ordeno os livros por sub-período, mas agrupando os autores principais: Século 17, Século 18, Século 19, Século 20… No Século 17, Descartes, Spinoza, Leibniz, Hobbes, Locke… No Século 18, Deístas, Adam Smith, Hume, Kant, Rousseau, Voltaire, os demais Iluministas Franceses (os Philosophes)… No Século 19, Schopenhauer, Nietszche, Kierkegaard, John Stuart Mill… No Século 20, Bertrand Russell, Wittgenstein, Popper, Ayn Rand.

Dentro da Filosofia Contemporânea (lato senso), ordeno os livros por tema: Metafísica, Epistemologia, Lógica, Ética, Política, Estética (já falei na Política e na Lógica).

Em Teologia e Religião, História do Cristianismo (incluindo História do Pensamento Cristão), Teologia Sistemática, Teologia Prática, Velho Testamento, Novo Testamento, Línguas Bíblicas. . . Não tenho muitos livros sobre religiões não cristãs, com exceção do Judaísmo, por razões óbvias: o Judaísmo é a religião-mãe do Cristianismo…  Às vezes há dúvidas sobre onde colocar um autor, se entre os teólogos ou entre os filósofos… Tomás de Aquino está, para mim, entre os filósofos. 

Os autores dos quais ou sobre os quais tenho mais livros são David Hume (disparado o número 1: fiz minha tese de doutorado sobre ele, mais de 200 livros nessa categoria), Ayn Rand (minha autora favorita, vem em segundo lugar, destacado), Karl Popper (em terceiro lugar, com seus discípulos, amigos, defensores e críticos — meu orientador, W. W. Bartley, III, está aqui, como aluno, amigo, defensor e crítico respeitoso), e, pela ordem, Bertrand Russell, Adam Smith, Tomás de Aquino, João Calvino, Rudolf Bultmann, Karl Barth, Paul Tillich, C S Lewis, Agostinho, Platão e Aristóteles, John Dewey, Jean Piaget, etc.

Faz quase um mês que não ficava quietinho aqui… Sinto falta dos meus amigos livros… Não preciso nem lê-los (embora o faça o tempo todo): basta estar ao lado deles… 

Em Salto, 23 de Agosto de 2014