Que será de nossos pertences digitais quando morrermos?

Inicialmente publicado no Blog das Editoras Ática e Scipione.

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Quando meu pai morreu, já lá vão mais de vinte anos, meus irmãos e eu decidimos, no dia mesmo em que ele foi enterrado, dar um destino aos seus pertences pessoais, poupando nossa mãe da incumbência. Na verdade, os filhos a assumiram porque duvidaram que a mãe fosse capaz de executá-la, dada a ligação afetiva que tinha com muitos desses pertences que, embora pessoais, também foram dela, pelo menos em algum sentido. Refiro-me a coisas como roupas, livros, revistas, discos, instrumentos musicais (ele tinha vários: violão, flauta transversal, teclado, acordeão…), etc. E, naturalmente, havia o que chamo genericamente de papéis: cartas recebidas, rascunhos de artigos que pensava publicar um dia, cópias datilografadas ou duplicadas de artigos publicados, esboços de sermões que ele pregou ou pretendia pregar, anotações sobre coisas que precisava fazer, endereços, números de telefone, etc. Encontrei até rascunhos de cartas que ele pretendeu me enviar mas, por alguma razão, não enviou, num período difícil em que ficamos quase dois anos sem falar um com o outro.

Meu pai não era um cidadão do mundo digital. Na verdade, em 1991 pouca gente era. Por isso, ele não tinha nenhum bem digital ao qual precisássemos dar destino.

Abrindo um parêntese, eu mesmo, na verdade, em 1991, estava apenas no vestíbulo desse universo. Comecei a ter acesso a ele quando, em 1987, assumi a direção do Centro de Informações em Saúde (CIS) da Secretaria de Estado da Saúde (SES) e tive de me comunicar com freqüência com a Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra, Suiça, para transmitir os relatórios mensais de incidência e prevalência de moléstias infecciosas e outras informações que a OMS requeria (ainda requer) de cada estado membro das Nações Unidas. Dr. Salah S. Mandil, diretor da área de Suporte a Sistemas de Informação da OMS, me arrumou um e-mail no sistema das Nações Unidas e eu tive de achar um jeito de conseguir acesso aos computadores do International Computer Centre (ICC) da sede européia das Nações Unidas, no Palais des Nations, em Genebra, antiga sede da Liga das Nações, nos quais os sistemas da OMS eram hospedados. Foi assim que me iniciei ao mundo digital, com bem mais de quarenta anos. Um perfeito imigrante digital. Fim do parêntese.

Hoje, quase todo mundo que vive em uma cidade é (em grau maior ou menor) cidadão do mundo digital — e, por isso, possui algum bem digital. Chamo de bem digital coisas como:

· Contas de E-mail, com a respectiva senha (é díficil encontrar quem não tenha pelo menos uma hoje — muita gente tem várias, eu sendo culpado reincidente desse sério desvio de conduta…).

· Caixas Postais, acessíveis por uma conta de e-mail, que armazenam uma quantidade significativa de e-mails, localmente (isto é, nos computadores da própria pessoa) ou remotamente (em algum site de WebMail na Web, como HotMail, GMail, Yahoo! Mail, UOL Mail, etc.).

· Nomes de Usuário, Senhas, Tokens, Cartões com Codigos Numéricos, etc. que dão acesso a sites diversos (inclusive a contas bancárias, a serviços de telefonia pela Web, como Skype, a serviços de mensagens instantâneas, como Messenger, etc.).

· Áreas (às vezes chamadas de perfis) em sites de mídia social (como FaceBook, Orkut, LinkedIn, WordPress, Blogger, Twitter, YouTube, Flickr, Picasa, Slideshare, etc.), acessíveis mediante nomes de usuário (ou e-mails) e senhas, que armazenam uma quantidade significativa de fotografias, vídeos, slides, mensagens, conversas instantâneas, comentários, artigos, registros de onde a pessoa esteve ou do que estava fazendo em determinado momento, relatos de seu estado mental em determinadas ocasiões, curtições, elogios, protestos, brigas pessoais (na frente de todo mundo), etc.

Arquivos digitais, em geral não protegidos, contendo textos, fotografias, imagens, vídeos, músicas, etc., armazenados em discos rígidos ou “memória flash” de computadores, telefones digitais, tocadores de música, câmeras de fotografia ou de vídeo, reprodutores de vídeo, etc. da própria pessoa ou de terceiros, ou, alternativamente, em discos rígidos portáteis, CDs, CD-ROMs, DVDs, “memory cards”, “pen drives, disquetes, etc. (facilmente perdíveis, acessíveis e copiáveis).

· Áreas em espaços virtuais fornecidos gratuitamente (como Windows Live SkyDrive, GoogleDocs ou iCloud) ou alugados, e acessíveis por nomes de usuários (ou e-mails) e senhas, que armazenam “na nuvem” (como se diz hoje) toda sorte de documentos pessoais ou mesmo profissionais dos usuários.

· Direito sobre domínios em sites que registram domínios, aqui no pais ou no exterior (como, por exemplo, registro.br, mydomain.com, name.com, dominios.pt, etc.).

Pode haver mais bens digitais – mas parece-me que esses são os principais.

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Antes de discutir que será desses nossos bens digitais quando morrermos, é bom ressaltar alguns fatos acerca deles, relevantes para o seu uso enquanto estamos vivos, que muitas pessoas desconhecem ou não consideram importantes.

1) BENS DIGITAIS TÊM DONO, ISTO É, PERTENCEM A ALGUÉM

Em primeiro lugar, bens digitais, embora intangíveis (porque são bens no espaço virtual), certamente têm dono — embora, em alguns casos, possa ser difícil definir quem é dono de determinada coisa.

Porque bens digitais têm dono, eles pertecem a alguém. Por isso, daqui em diante vou falar em “pertences digitais” em vez de “bens digitais”.

Vamos começar com um exemplo fácil de entender.

FaceBook, hoje usado por mais de um décimo dos sete bilhões de habitantes do planeta, é um ambiente (que alguns preferem chamar de plataforma) criado na Web por um pequeno grupo de rapazes liderado por Mark Zuckerberg (vejam http://www.facebook.com/zuck). Como FaceBook ainda não colocou ações na Bolsa de Valores, esse ambiente pertence aos proprietários originais (embora possa ter havido, por exclusão ou inclusão, modificação no grupo).

Agora, o conteúdo que os usuários colocam no FaceBook é, em princípio, propriedade de quem o colocou lá.

Embora você seja dono das informações que coloca no FaceBook, você, ao colocar essas informações lá, dentro das sofisticadas regras de privacidade que governam cada item ali colocado, você concede o direito às pessoas autorizadas de compartilhar aquelas informações com os seus contatos (lá chamados de amigos), com contatos de seus contatos, ou com o público em geral (sempre sendo possível “bloquear” o acesso a elas de pessoas que você não quer que as vejam).

Se FaceBook um dia fechar, ou resolver não mais permitir que os usuários deixem lá suas informações sem alguma forma de pagamento, provavelmente você será informado com antecedência para que tenha tempo para tomar as providências que julgar cabíveis. Espero que isso nunca aconteça, porque tenho uma quantidade enorme de informações lá. Fico grato a FaceBook por me permitir fazer uma cópia de tudo que tenho lá, para guardar nos meus discos rígidos. De vez em quando atualizo essa cópia — ou melhor, faço outra, atualizada.

2) OS DONOS SÃO RESPONSÁVEIS PELO USO DE SEUS PERTENCES DIGITAIS

Em segundo lugar, os proprietários de pertences digitais (como os proprietários de pertences não-digitais, como automóveis) são responsáveis pela seu uso, inclusive por parte de terceiros, podendo ser responsabilizados civil e criminalmente por mau uso desses pertences que infrinja direitos de terceiros.

Se você coloca lá no seu perfil uma afirmação que é injuriosa ou caluniosa para com uma outra pessoa, você, não o FaceBook, será chamado a responder pelo que disse (embora, como imagino que o FaceBook tem mais dinheiro do que você, o suposto injuriado vai provavelmente tentar colocar o FaceBook também como réu de um eventual processo).

Artigo recente no jornal A Folha de S. Paulo mostrou que tudo que você tuitar pode ser usado contra você no tribunal… Veja-se http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3001201116.htm. E os tribunais já registram vários divórcios baseados em conteúdo de e-mails ou até mesmo SMS. Portanto, cuidado com tuitadas , e-mails e SMS inconsequentes…

E, em outro exemplo, se você cria uma conta no FaceBook com um perfil fictício: nome e demais dados falsos? Neste caso, você, que criou a conta, continua responsável por ela, mesmo que seja uma pessoa diferente daquela que está caracterizada no perfil. Eles têm jeito de descobrir quem fez o que lá.

3) OS DONOS SÃO RESPONSÁVEIS PELA CONSERVAÇÃO DE SEUS PERTENCES DIGITAIS

Em terceiro lugar, entre as responsabilidades que os proprietários de pertences digitais têm, especialmente quando esses pertences são importantes, está a de mantê-los em perfeito estado de conservação e de fazer backups (cópias de segurança) regulares deles. Isso deveria ser óbvio, mas nem sempre é.

Saiba, porém, que o FaceBook também mantém backups de tudo que aparece lá. Assim, é bom que você saiba que, mesmo que você elimine algo de seu perfil, provelmente FaceBook mantém uma cópia do que apareceu no seu perfil, ainda que tenha ficado lá por muito pouco tempo, e pode oportunamente (ou mesmo inoportunamente) ressuscitar.

4) OS DONOS SÃO RESPONSÁVEIS PELO DESTINO QUE DEVEM TER OS SEUS PERTENCES DIGITAIS DEPOIS DE SUA MORTE

Em quarto lugar, e aqui chegamos ao nosso assunto, entre as responsabilidades que os proprietários de pertences digitais têm está a de dispor o que será feito deles quando eles, os proprietários, morrerem.

O jornal Folha de S. Paulo, em sua edição de 2/11/2011, discutiu esse assunto. Eis uma matéria:

“HERANÇA DIGITAL EM TESTAMENTOS

A. Qual é o procedimento para fazer um testamento com dados digitais?

O usuário faz um levantamento de todos os bens digitais que tem. Depois de produzir um documento detalhado, ele estipula o que deve ser transmitido para quem no testamento.

B. Se eu não fizer um testamento, quem poderá se apossar dos meus bens digitais?

Caso o testamento não seja feito, muitos dos direitos vão ser transmitidos automaticamente. Os herdeiros naturais são os familiares mais próximos. O Código Civil estipula que os filhos de uma pessoa são os primeiros na sucessão.

C. Nesse caso, o serviço digital é obrigado a fornecer dados digitais para os herdeiros?

Se houver uma ordem judicial nesse sentido, sim, mesmo que os termos de uso do site estipulem que a privacidade do usuário seja mantida. ‘Contratos, em geral, servem só para complementar o que a lei não dispõe’, diz o advogado Renato Ópice Blum.”

(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/tec/tc0211201104.htm. Vejam-se também as matérias correlatas em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/tec/tc0211201102.htm e http://www1.folha.uol.com.br/fsp/tec/tc0211201103.htm).

Isso significa que, os nossos pertences digitais são valiosos, e nós queremos que sejam preservados, precisamos nos preocupar com quem vai receber a (em alguns casos difícil) incumbência de herdá-los.

Disse que essa incumbência pode vir a ser difícil em alguns casos, porque penso no meu caso: só de artigos de blog, tenho, em meus vários blogs, para lá de 750. Pago, anualmente, para a WordPress, um certo valor para poder usar o endereço http://liberalspace.net no meu blog principal. Além disso, possuo mais de 150 domínios, registrados em vários registradores. O registro de cada um desses domínios precisa ser renovado anualmente, e eles vencem quase todos em datas diferentes… A maior parte deles está em renovação automática. Para mudar isso, quem herdar meus domínios terá de saber qual meu nome de usuário, qual a minha senha, etc…

Em 21/8/2006 escrevi sobre esse assunto em meu blog pessoal. O artigo se chamava “O que será dos meus hard disks?”. Veja-se http://liberalspace.net/2006/08/21/o-que-sera-dos-meus-hard-disks/.

Ali especulo o seguinte:

“Se os nossos herdeiros resolverem, em respeito à nossa privacidade, simplesmente reformatar tudo, sem ler nada, nossos segredos estarão preservados mas, além de morrermos fisicamente, a maior parte do que pensamos e sentimos (e que deixamos registrado em arquivos .doc de Microsoft Word, .ppt de Microsoft PowerPoint, .pst de Microsoft Outlook, ou então na história preservada de nossos papos pelo (agora) Windows Live Messenger (ex MSN Messenger), nas fotos .jpg que tiramos, nos filminhos .wmf ou .mpg que produzimos ou simplesmente guardamos) também se perderá… A reformatação de tudo isso deixará ferido para sempre o nosso orgulho: ninguém se interessou o suficiente pelo que fomos, pensamos e sentimos, pelas coisas que achávamos importantes, para querer preservar alguma coisa do estava armazenado em nossos hard disks.

Por outro lado, se resolverem fuxicar a nossa vida, podem encontrar coisas que os deixarão surpresos – quando não indignados. É incrível quão pouco os nossos parceiros, os nossos filhos, os nossos netos, os nossos outros parentes, conhecem da gente. Fazemos blogs – mas poucos dos parentes os lêem sistematicamente. O meu está no Live Spaces (antigo MSN Spaces) [agora no WordPress]. Mas também escrevemos uma quantidade enorme de textos que não colocamos em blogs. Escrevi livros, capítulos de livros, artigos, prefácios, posfácios, etc. que ninguém de minha família jamais leu. Tenho milhares e milhares de slides, correspondentes a palestras que ministrei, em arquivos de Microsoft PowerPoint que ninguém de minha família jamais viu. Participo de dezenas de listas de discussão, nas quais escrevo, diariamente, dezenas de mensagens, de que ninguém de minha família jamais tomou conhecimento. Envolvi-me em brigas homéricas em algumas dessas listas, e nessas brigas nem sempre me comportei de forma impecável (em termos de elegância no trato e na linguagem) – e minha família nunca ficou sabendo delas. Troquei e-mails pessoais com gente que ninguém de minha família conhece – e com gente que minha família nem imagina que exista e que seja importante para mim. O mesmo vale pelos papos pelo Windows Live Messenger.  Se minha família fosse fuxicar os meus hard disks, quanta surpresa teria… Seria um redescobrir do marido, do pai, do avô – na verdade, um descobrir, porque nunca tomaram conhecimento desse meu eu, para eles, desconhecido, mas que é conhecido, às vezes bem conhecido, por meus companheiros de listas, de e-mails, de papos no Messenger… E que em muitos aspectos é o meu eu mais íntimo!”

Enfim, é isso.

Escrito em São Paulo, 17 de Novembro de 2011, e transcrito aqui em 28 de Dezembro de 2011

Desabafo

Originalmente publicado no Blog das Editoras Ática e Scipione.

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Este artigo é um desabafo. Um desabafo a propósito de um vídeo de um rapaz português de quinze anos, prestes a completar dezesseis, chamado Marco, que vi no Youtube. O vídeo me foi recomendado por um amigo meu, de Odivelas, perto de Lisboa. Fiquei revoltado com o que vi — e com o que não vi, mas sei que existe. Por isso o desabafo.

O que me revoltou mais foi saber que coisas assim acontecem também aqui no Brasil, em números absolutos bem maiores e, talvez, em números percentuais também superiores aos de Portugal: jovens que chegam aos quinze ou dezesseis anos totalmente analfabetos (e não só analfabetos funcionais), apesar de haverem frequentado a escola desde os sete anos, ou seja, durante pelo menos oito anos.

A imprensa brasileira de vez em quando relata fatos semelhantes. Mas a leitura de uma reportagem de jornal ou do resumo comentado de uma pesquisa parece que não comunica a tragédia que os fatos representam. O relato escrito parece não chocar tanto como um vídeo em que parte da tragédia tem rosto, tem voz…

Quando a gente vê o vídeo que mostra, de forma clara e inequívoca, que oito anos de escolaridade não valeram absolutamente nada para um rapaz, porque durante esse tempo todo ele não aprendeu nada, absolutamente nada, na escola, nem mesmo a ler e escrever, nem a dizer a data em que nasceu, nem a indicar quais são as outras cidades de sua terra natal, Portugal (outras em relação àquela, perto da qual vive), a gente só pode concluir que alguma coisa está errada, muito errada.

Como a escolaridade básica é obrigatória em Portugal, mais ou menos como aqui, podemos dizer que os anos passados por Marco na escola, sem que ele nada aprendesse, simplesmente foram oito anos de vida que ele perdeu: roubaram-lhe esses anos ao obriga-lo a frequentar uma escola em que ele nada aprendeu.

Alguém deveria ter visto, na escola, pelo menos ao final do primeiro semestre de frequência do menino, que ele não estava aprendendo nada. Se ele era deficiente mental, incapaz de aprender o que a escola esperava que seus alunos aprendessem, deveria ter sido encaminhado para uma escola especial. Se era um caso extremo de deficiência, um menino que não iria aprender nada nem mesmo com a ajuda de profissionais especializados em uma escola especial, alguém deveria ter percebido isso, decidido que ele era inescolarizável, requerido a um juiz qualquer que o dispensasse da escola, e enviado o menino para casa. Lá ele certamente teria sido, pelo menos, mais feliz. Teria brincado, uma parte do tempo. Teria ajudado sua família em tarefas simples, na outra parte. Brincando ou trabalhando, quem sabe teria aprendido alguma coisa que lhe interessasse ou que lhe fosse útil.

Vejam o vídeo e me digam se concordam ou não concordam comigo:

http://youtu.be/OnINSyWX1yU

o O o

O que dizer de uma tragédia dessas? Por onde começar?

Começo ressaltando que, na minha maneira de ver a coisa, há pelo menos três tragédias aqui — talvez mais.

Há, primeiro, a tragédia pessoal do rapaz. Trata-se de um rapaz evidentemente infeliz. Talvez com problemas sérios de aprendizagem. Uma coisa é clara: ele detesta a escola. Fica apenas sentado lá. Não aprende nada e ninguém parece se preocupar com isso. Marco claramente preferiria trabalhar a estar na escola.

Há, segundo, a tragédia representada pela escola. O que se passa numa escola, como a que foi frequentada por Marco, que um menino (depois adolescente) passa oito anos lá, sem aprender nada, e ninguém toma uma providência? (Minha mulher levanta a hipótese mais trágica ainda de que talvez a professora e a diretora da escola nem estivessem cientes de que o menino / rapaz não estava aprendendo nada…). Do ponto de vista da repercussão e do alcance, essa tragédia, em qualquer de suas versões, é maior ainda do que a tragédia individual do aluno.

E há, terceiro, a tragédia representada por uma sociedade que vê um sistema escolar em que alunos não aprendem nada, ou aprendem muito pouco, em que não aprendem a ler e escrever, ou não aprendem a ler e escrever direito, durante oito longos anos, e que concorda em manter esses alunos, inocentes de qualquer crime, institucionalizados, presos na escola, sem poder sair de lá até que tenham cumprido sua sentença…

Repetindo: Marco conseguiu chegar aos quinze ou dezesseis anos, nos quais frequentou a escola durante oito, sem aprender a ler e escrever, sem ficar sabendo direito quando nasceu, sem conseguir dizer se conhece alguma outra cidade de Portugal (ele diz que conhece um pouco da França, mas fica em dúvida se essa “cidade” está localizada em Portugal). A escola parece concluir que nada tem que ver com isso… E a sociedade não parece concluir que uma injustiça está sendo cometida, porque um menino (depois adolescente) está sendo mantido preso sem ter cometido nenhum crime…

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O mais ridículo — na verdade, revoltante — é ver a professora do aluno (ou diretora da escola) tentando explicar como é que um analfabeto total pode chegar até o oitavo ano da escola. Ela diz apenas que o aluno “tem tido alguma satisfação com a escola”, e cita como prova o fato de que ele ultimamente tem faltado menos do que antes… Ou seja, ela tenta jogar a culpa no próprio aluno, ao apelar para suas faltas… Ela nem sequer tenta especular por que o aluno faltou (aparentemente) bastante.

O aluno desmente a afirmação da professora de que ele tem tido alguma satisfação com a escola. Diz, taxativamente, que não gosta da escola — talvez seja por isso que falte tanto? Ele esclarece à repórter que, na escola, não faz nada: só fica sentado lá.

A escola (aparentemente) não o molesta. O aluno diz que prefere trabalhar a ir à escola. Pelo jeito a escola também preferiria isso, se não fosse ilegal mandá-lo embora da escola, por incapacidade ou inapetência para aprender

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É compreensível que o aluno prefira trabalhar a frequentar uma escola que lhe é totalmente inútil. Mas não pode, porque a frequência à escola, em Portugal, como aqui no Brasil, é obrigatória, pelo menos até uma certa idade (que, é bom que se diga, pretende-se aumentar aqui no Brasil, tornando o Ensino Médio também obrigatório). Seus pais poderiam ser punidos caso ele desistisse, por decisão pessoal, da escola.

A “ideologia escolária” que é hegemônica em Portugal, no Brasil e no mundo não só quer aumentar a idade de escolaridade obrigatória (hoje de 6 a 14 anos), mas quer também aumentar o número de dias letivos (de 200 para 220) e o número de horas diárias que o aluno é obrigado a permanecer na escola (havendo os proponentes da escola de tempo integral, em que o aluno fica na escola simplesmente o dia inteiro). Além disso, há propostas para que o tempo escolar seja mais bem aproveitado com o ensino, reduzindo-se o tempo usado para a gestão da sala de aula, para o lazer, e para qualquer outra coisa que não seja ensino…

Isso resolve o problema? É evidente que não adianta nada, se o resultado é algo parecido com o que vemos no caso de Marco, o aluno do filme. Ele detesta a escola, não porque a escola lhe exige que aprenda coisas difíceis ou chatas. Ele detesta a escola porque ali perde o seu tempo, não faz nada o tempo todo, além de ficar sentado à sua carteira. Faz bem em detestá-la, porque esse tipo de escola é uma perda total e absoluta de tempo. O fato de que é capaz de concluir isso é prova de que alguma inteligência ele tem, que nem os oito anos de escola conseguiram destruir…

Esse vídeo me evocou algumas observações sobre a escola feitas por autores famosos. Primeiro, uma de Karl Popper, que disse:

“Tem-se dito, e com verdade, que Platão foi o inventor tanto de nossas escolas secundárias como de nossas universidades. Não conheço melhor argumento para uma visão otimista da humanidade, nem melhor prova de seu amor indestrutível pela verdade e pela decência, de sua originalidade, de sua teimosia e de sua saúde, do que o fato de que esse devastador sistema educacional não tenha até hoje sido capaz de arruiná-la completamente“.

(The Open Society and Its Enemies, Vol. I: “The Spell of Plato” [Princeton University Press, Princeton, NJ, 1962, 1966, 1971], p. 136 – ênfase acrescentada. A tradução é minha.)

A outra passagem é de Samuel Butler, que disse:

“Fico às vezes imaginando como é que o mal causado pela escola às crianças e jovens não deixa, a maior parte das vezes, marcas mais claramente perceptíveis, e como é que moços e moças conseguem crescer tão sensatos e bons, a despeito das deliberadas tentativas feitas pela escola de entortar ou mesmo interromper o seu desenvolvimento. Alguns, sem dúvida, sofrem danos de tal monta que sentem seus efeitos até o fim da vida. Mas muitos parecem não se deixar afetar pela vida da escola e uns poucos até se saem bem. A razão disso me parece ser que o instinto natural dos jovens se rebela de forma tão absoluta contra a formação que recebem na escola que, não importa o que possam fazer os professores, nunca conseguem que seus alunos os levem suficientemente a sério”.

(Samuel Butler, em Erewhon, passagem citada por Karl Popper como moto de uma seção de “Replies to My Critics”, in The Philosophy of Karl Popper, org. por Paul Arthur Schilpp [Open Court, La Salle, IL, 1974], Vol. II, p. 1174 – ênfase acrescentada. A tradução é minha.)

Mas a passagem mais relevante à espécie (como dizem os advogados) nos vem de Leon Tolstói. É uma passagem longa, mas vale a pena citá-la por inteiro:

“As crianças, em todos os lugares do mundo, são obrigadas, pela força, a frequentar a escola. Na verdade, os pais são obrigados a enviar seus filhos à escola, seja pela severidade da lei, seja porque se lhes prometem vantagens, seja por uma retórica que os ludibria. Fora da escola, as pessoas, em geral, em todos os lugares do mundo, aprendem e estudam por vontade e iniciativa própria e consideram a educação como algo bom. Como é que isso se dá? A necessidade da educação é sentida por todos os homens. As pessoas adoram aprender, amam a educação e a buscam, da mesma forma que amam e buscam o ar que respiram. O governo e a sociedade têm enorme desejo de educar o povo. E, todavia, a despeito do uso da força, da persistência do governo e da sociedade, e de todas tentativas de ludibriar o povo a aceitar a importância da escola, as pessoas do povo constantemente manifestam insatisfação com a educação que lhes é fornecida na escola e só se submetem a ela pela força, quando a escolarização é tornada obrigatória. É possível provar a justeza do método atual de escolaridade compulsória? É difícil descobrir se há métodos melhores, porque até aqui as escolas nunca foram realmente livres. É verdade que no nível mais alto do processo de escolarização – a universidade – se tenta implantar um regime mais livre. Será que, talvez, nos níveis inferiores a escolarização deva ser realmente obrigatória? Será que, talvez, a experiência um dia ainda nos vá provar que escolas de frequência compulsória são boas? Vamos examinar essas escolas, não pela consulta às tabelas estatísticas que nos são fornecidas, mas tentando descobrir o que elas realmente são e fazem e qual o seu real impacto sobre as crianças do povo. Quando voltamos nosso olhar para as escolas de frequência obrigatória, é isto que a realidade nos mostra: as escolas se apresentam às crianças como uma instituição destinada a torturá-las – uma instituição em que elas são privadas de seu principal prazer e necessidade: a movimentação livre; em que obediência e silêncio são exigidos como condição de permanência; em que elas precisam de autorização especial para ‘sair um minutinho’ da sala de aula; em que qualquer ação errada é de pronto punida. Quanto aos resultados da ação da escola sobre as crianças do povo, se atentarmos para a realidade e não para as tabelas estatísticas, somos forçados a concluir: nove décimos da população escolar retiram da escola apenas um conhecimento mecânico da leitura e da escrita; por outro lado, saem da escola com uma aversão tão grande para com os caminhos do conhecimento que foram obrigados a trilhar que nunca mais na vida botam as mãos em um livro. A escola não apenas consegue inculcar nos alunos a aversão para com a educação, ela também os induz a praticar a hipocrisia e a trapaça, em decorrência da posição não-natural em que os coloca. A educação deve ser apenas uma busca de resposta às questões que a vida nos coloca. Mas a escola não só não permite que os alunos ali levantem questões que lhes interessam como se nega a tentar ajudar os alunos a responder as questões que a vida fora da escola os força a confrontar. Ela fica eternamente respondendo às mesmas questões – mas essas são questões que não são levantadas pela mente das crianças. Basta olhar para uma mesma criança, de um lado, em casa e na rua, e, de outro lado, na escola. Em casa e na rua você observa uma criança vivaz, curiosa, com um sorriso nos lábios, explorando e tentando aprender tudo, da mesma forma que explora e busca prazeres, expressando seus pensamentos em suas próprias palavras, com clareza e, freqüentemente, com força e eloqüência. Na escola, você observa um ser como que aposentado da vida, cansado e com uma expressão de fatiga, tédio, enfado e por vezes terror, repetindo palavras estranhas em uma língua estranha – um ser cuja alma, como num caracol, se esconde dentro da própria casa. Basta comparar essas duas condições em que podemos observar a criança para constatar, sem sombra de dúvida, qual delas é mais vantajosa para o seu desenvolvimento. A natureza compulsória da freqüência à escola impede que a criança ali se eduque.”

(Leon Tolstói, “Sobre Educação Popular”, em Artigos Pedagógicos, 1862, traduzido do Russo para o Inglês por Leo Wiener [Dana Estes & Co., Boston, 1904], passagens retiradas das pp. 7-18 [ênfases acrescentadas]. Citado apud Daniel Greenberg, Announcing a New School: A Personal Account of the Beginnings of the Sudbury Valley School [The Sudbury Valley School Press, Framingham, MA, 1973, p. 175]. A tradução é minha.)

Forte, não? Mas será que quem vê o vídeo tem condições de argumentar que há alguma coisa errada naquilo que diz Tolstói?

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Alguma coisa está seriamente errada, sim, mas não com o que Tolstói diz, nem necessariamente com o menino do vídeo, e nem só com a escola, mas com toda uma sociedade que valoriza a escolaridade independentemente da qualidade da aprendizagem que ali tem lugar (se é que alguma aprendizagem importante ocorre ali), e que acha bom aplicar a crianças inocentes, que não cometeram nenhum crime, uma sentença de prisão de nove a doze anos em que um rapaz como esse não aprende nada, perde seu tempo, tempo esse que poderia estar sendo gasto em alguma atividade produtiva que lhe rendesse algo e na qual ele aprendesse a fazer coisas úteis que lhe permitissem oportunamente melhorar de vida.

É isso que faz a obrigatoriedade da frequência à escola, mesmo que a escola seja ruim, mesmo que o aluno nada aprenda ali e, em decorrência disso, deteste ficar ali, preferindo até trabalhar a ficar sem fazer nada dentro da sala de aula: a obrigatoriedade da frequência a uma escola ruim faz com que o aluno deixe de acreditar na importância e no valor da aprendizagem e da educação. É esse o principal recado de Tolstói.

Vivemos, como disse, sob o jugo de uma “ideologia escolária”, uma ideologia que promove a escolarização — quando deveríamos estar promovendo a aprendizagem ativa, interativa, significativa e, por conseguinte, a educação incorporada (embedded) na vida, vale dizer, uma aprendizagem e uma educação que a gente constrói no lazer, enquanto brinca, e no trabalho, enquanto faz alguma coisa útil. No gueto escolar típico nem se brinca, nem se trabalha, e, por isso, não se aprende grande coisa de útil.

Como já disse em artigo anterior neste blog, Cristóvam Buarque, que me parece uma pessoa honesta e bem intencionada, uma vez disse, quando era Ministro da Educação, que qualquer escola é melhor do que nenhuma escola. Para ser franco e sincero, nunca ouvi uma bobagem pedagógica tão grande. Queria ver Cristóvam Buarque responder por que é que os oito anos desperdiçados na escola por Marco, o rapaz do vídeo, representam algo melhor do que oito anos em que o rapaz brincasse e curtisse a vida, ou trabalhasse e ganhasse algum dinheiro para si e para seus pais (fatalmente aprendendo alguma coisa útil, seja no brinquedo, seja no trabalho)…

Repito: escola ruim, além de representar desperdício de tempo e de dinheiro, causa um mal ainda pior do que esse desperdício: convence as pessoas de que a aprendizagem e a educação não valem nada, de nada servem para o seu desenvolvimento, não fazem diferença em sua vida…

A “ideologia escolária”, quando aplicada a uma escola ruim, prega um verdadeiro conto do vigário, de que são vítimas especialmente os pobres. A escola é obrigatória. Todo mundo parece achar isso bom. Nunca encontrei alguém aqui no Brasil que fosse contra a obrigatoriedade da escola para quem está na faixa etária de 6 a 14 anos. O governo, no caso do Brasil, ainda paga aos pobres para que enviem seus filhos à escola. O fato de a escola ser obrigatória não é suficiente para que as pessoas enviem seus filhos a ela: eles ainda precisam ser subornados a fazê-lo com uma esmola monetária do governo. Tudo isso porque, como se alega, a escola vai mudar para melhor a vida das crianças sentenciadas a frequentá-la durante longos anos.

Mas, como Tolstói deixa claro, é mentira que a mera frequência à escola, ainda que ela seja ruim, vá melhorar a vida dos pobres alunos… A escola ruim, a escola em que não aprende, não muda a vida de ninguém. Só entedia e revolta os alunos. Só os leva a crer que a aprendizagem e a educação, tal qual a escola, também não servem de nada.

Mas quando os alunos acabam por acreditar nisso, que a aprendizagem e a educação não lhes serve para nada, eles passam a acreditar em outra mentira, porque a aprendizagem e a educação são úteis — na verdade, são indispensáveis — para o desenvolvimento humano, no plano pessoal, social e profissional. O problema é uma escola que não educa, em que não se aprende, em que o potencial dos alunos não se desenvolve. Uma escola que faz dos que passam por ela perpétuos bonsais humanos — não do ponto de vista do tamanho físico, mas do ponto de vista do ser, do conviver, do empreender, do aprender.

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Mas resta uma pergunta, que não quer calar… E a escola em que o aluno aprende um bocado de coisas, daquelas que conseguem que o aluno, ao sair delas, saiba o suficiente para entrar numa universidade (quem sabe uma universidade particular, através do ProUni) e para obter, um dia, um diploma universitário? Essa escola é útil?

Bom… esse tipo de escola admitidamente é útil para que seus alunos entrem na universidade. Mas entrar na universidade é necessariamente bom? Bom para todos? A resposta correta talvez seja: Talvez… Dois talvezes intencionais, porque depende da universidade, depende da pessoa… Esse é um outro problema de nossa sociedade: ela sugere que todos devem ir para a universidade, incentiva todos a fazerem isso… Será que a universidade é para todo mundo, independente de seus interesses e capacidades? Será, no espírito de Cristóvam Buarque, que qualquer universidade é melhor do que nenhuma universidade?

Muita escola de Ensino Básico no Brasil é considerada boa apenas porque permite que o aluno continue a frequentar a escola depois de sair dela, agora em nível mais alto… Mas nem ela, nem a universidade que o aluno irá frequentar, necessariamente preparam o aluno para a vida, no plano pessoal, interpessoal e profissional. Nem ela nem a universidade ajudam o aluno a alcançar auto-realização…

A situação, portanto, é complicada.

Uma simples reforma, uma mera “melhorada” nesse sistema escolar não vai ser suficiente para torná-lo realmente valioso, em termos de aprendizagem, educação, e desenvolvimento humano.

Hoje se fala muito em dar uma “repaginada” em alguma coisa. Repaginar parece ser o verbo da moda, prestigiado por escritores afetados: o Carrefour está “repaginando” suas lojas, diz um jornalzinho distribuído de graça no ABC; a prefeitura de Barcelona deu uma boa “repaginada” na cidade com apenas 22 bilhões de Euros quando dos Jogos Olímpicos de Barcelona, diz alguém em entrevista na CBN… Uma “repaginada” era o que a gente antigamente chamava de uma “guaribada” e que mais recentemente se chamou de um “tapa”… Qualquer que seja o nome, uma melhorada, uma guaribada, um tapa, uma repaginada não bastam para tornar a escola útil para a a aprendizagem, para a educação, para o desenvolvimento humano, para a vida.

Falo aqui não da escola admitidamente ruim, mas da escola considerada relativamente boa (aquela que ajuda o aluno a entrar pelo menos anuma universidade conveniada com o ProUni). A escola reconhecidamente ruim é inutil, como vimos, até mesmo para ajudar o aluno a aprender a ler e escrever — algo admitidamente útil para a sua educação, para o seu desenvolvimento humano, para a sua vida — mas esse básico do básico é muito pouco para justificar tanto gasto, tanto discurso, tanto faz-de-conta.

Precisamos, não “repaginar” a escola, mas reinventá-la, a partir do zero. É indispensável inventar ambientes de aprendizagem novos. A tecnologia nos ajudará a fazer isso, mas só a tecnologia não basta: a tecnologia, deixada a si mesma, ou deixada exclusivamente na mão de engenheiros, cria réplicas fiéis de ambientes de aprendizagem tipicamente escolares, nos quais, por paradoxal que pareça, não se aprende muita coisa de útil.

Até que essa reinvenção aconteça, precisamos encontrar formas de colocar um basta nesse desperdício de tempo (do aluno) e de dinheiro (do país, do aluno, de seus pais, mesmo que o aluno e os pais não paguem nada, porque o rapaz está deixando de ganhar dinheiro enquanto frequenta uma escola em que não aprende nada) que são as escolas ruins, em que nada se aprende.

Quem sabe um Código do Aprendente, que responsabilize e puna a escola, na pessoa de seus gestores e professores, quando seus alunos não aprendem?

Escrito em São Paulo, 17 de outubro de 2011, transcrito aqui neste blog em 28 de Dezembro de 2011

A Igreja como Comunidade Virtual dos Crentes (short)

Versão mais curta do artigo anterior, publicada na Revista Visão, da Catedral Evangélica de São Paulo (Primeira Igreja Presbiteriana Independente)

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Frequentamos a igreja, em regra, uma vez por semana, com vários objetivos: adorar a Deus, fortalecer a fé, aprender mais sobre a Bíblia, ter comunhão com os irmãos.

Vou me concentrar inicialmente na comunhão entre os irmãos.

A tecnologia atual nos permite ver a igreja como uma comunidade também virtual, sem limitações espaço-temporais. Nessa visão, a igreja (diferentemente do templo) deixa de ser um lugar físico que se frequenta uma vez por semana para se tornar a comunidade daqueles que comungam uma mesma fé e prática e consideram importante estar em comunhão uns com os outros.

A comunhão presencial que acontece na visita semanal ao templo é muito limitada: a igreja deveria estar presente na vida das crentes também nas horas que passam longe do templo. Na verdade, o tempo todo.

As tecnologias hoje disponíveis tornam isso possível.

Em seu livro The Church of Facebook Jesse Rice sugere que as tecnologias atuais estão abalando a ideia tradicional de comunidade. Hoje milhões de pessoas se conectam umas com as outras através das redes sociais, trocam informações, fazem amizades, cultivam relacionamentos, até mesmo se apaixonam, apoiam os que estão deprimidos, discutem, aprendem… As redes sociais nos permitem estar o tempo todo sintonizados com nossos amigos, acompanhando suas ações, compartilhando suas alegrias e tristezas… Elas tornam possível um nível de comunhão entre amigos inimaginável até há pouco tempo…

Irmãos na fé são mais do que amigos, não é mesmo?

Se Martin Buber estava minimamente certo ao dizer que Deus não está aqui ou ali, mas entre um e outro, a comunhão com o próximo é a principal forma de nos aproximarmos de Deus.

É possível também agregar ao virtual os demais objetivos da frequência ao templo, como, por exemplo, a adoração a Deus. Hoje, na Primeira Igreja, já temos irmãos que nunca vemos presencialmente: os que de longe assistem aos nossos cultos pela Internet. Eles poderiam se integrar a essa comunidade virtual de comunhão e, também, de adoração. Os muito idosos, os doentes, os presos ao leito ou à casa, poderiam também se sentir visitados diariamente pela presença envolvente da igreja…

Também a educação cristã se beneficiaria dessa igreja virtual. Numa comunidade assim poderíamos aprender, não tanto pela via do ensino e da instrução, mas, sim, pelo compartilhamento de ideias, do diálogo que nos faz crescer e propicia o nosso desenvolvimento como seres humanos, da discussão que aprofunda o nosso entendimento, porque nos permite compreender melhor o mundo, a vida, a nós mesmos, quiçá a Deus.

A igreja, assim redefinida, seria igualmente um ambiente de crescimento, se não na fé, em si, pelo menos na sua compreensão, na sua articulação com a vida diária, nas suas implicações para a conduta no trabalho, no lazer, na vida doméstica.

Quem sabe a criação, para a Primeira Igreja, de uma comunidade virtual seria um primeiro passo para o surgimento de uma igreja que transcenda os limites do centro histórico da cidade, e mesmo, pioneiramente, os da cidade em si, e se torne um ambiente amplo de comunhão, adoração e formação, 24 horas por dia, 7 dias por semana?

Para que isso aconteça, não basta criar uma comunidade virtual num site da Internet. É preciso ver a participação no site como parte integrante de nossa vida cristã e ver a coordenação do site como um ministério da igreja — ou como uma outra plataforma em que os atuais ministérios podem desenvolver o seu trabalho. O acolhimento de novos membros, de visitantes, dos que assistem ao culto pela Internet, poderia ser feito também nesse espaço virtual. Ali também poderiam ser divulgadas notícias e informações acerca de eventos que acontecerão na igreja e fora dela, aniversários, casamentos, doenças, falecimentos, trabalhos dos diversos ministérios, sociedades e fundações da igreja, etc.

Por último, mas não menos importante, a comunidade virtual poderia ser um posto avançado de evangelização que leva em conta o fato de que as pessoas, hoje, passam cada vez mais tempo no espaço virtual.

(*) Eduardo Chaves, professor aposentado de Filosofia da UNICAMP, é, com sua mulher Paloma Machado, membro da Primeira Igreja.

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Escrito em 6 de Dezembro de 2011 e publicado aqui em 28 de Dezembro de 2011

A Igreja como Comunidade Virtual dos Crentes

Antes de entrar no assunto central deste artigo e começar a falar na igreja como comunidade virtual, vou falar rapidamente sobre a escola e a aprendizagem. Esse incursão na filosofia da educação servirá de introdução ao tema.

o O o

A escola é uma instituição social que todos conhecemos, no mínimo por termos passado por ela. Hoje em dia as pessoas são obrigadas a frequentar uma escola durante um determinado tempo (no Brasil, durante nove anos, período correspondente ao chamado Ensino Fundamental), na infância e adolescência (dos seis aos quatorze anos). Durante esse período de escolarização obrigatória, a frequência à escola é intensiva: pelo menos quatro a seis horas por dia, cinco dias por semana, ao longo de pelo menos duzentos dias por ano. Diversos instrumentos legais proíbem que crianças e adolescentes nessa faixa etária trabalhem, para que possam dedicar à escola sua atenção integral. No Brasil, várias iniciativas buscam fazer com que a frequência à escola obrigatória se dê em período integral (o dia inteiro) — e também se cogita de aumentar em dez por cento o número de dias letivos.

A obrigatoriedade da frequência à escola nessa faixa etária é hoje exigida em virtualmente todos os países desenvolvidos porque se concluiu, em algum momento, que o confinamento que ela impõe é propício para que as pessoas aprendam o mínimo indispensável para viver suas vidas (no plano pessoal, profissional e social) com certo nível de autonomia e competência. Na verdade, mesmo sem obrigatoriedade, alguns optam por continuar a frequentar a escola depois dos quatorze anos, por bem mais tempo (fazendo nela o Ensino Médio, o Ensino Superior, a Pós-Graduação, etc.).

O principal objetivo da frequência à escola é a construção da aprendizagem. No entanto, sabe-se que as pessoas podem e devem aprender, e de fato aprendem, ao longo de toda a vida, desde o nascimento (talvez até mesmo no útero materno) até a morte. Por causa disso, instituições como a UNESCO enfatizam hoje a importância do que chamam de “aprendizagem ao longo da vida toda” (lifelong learning) e “aprendizagem em qualquer momento e em qualquer lugar (“anytime, anywhere learning“). Na verdade, reconhece-se que a maior parte das coisas importantes que aprendemos, nós as aprendemos fora da escola: no lar, na comunidade, na igreja, no trabalho, nos momentos de lazer. Hoje em dia, dada a evolução das tecnologias de informação e comunicação, a educação a distância, em que a aprendizagem é mediada pela tecnologia, está se tornando cada vez mais difundida. Por meio da tecnologia, podemos aprender o tempo todo, interagindo com outras pessoas (mesmo que elas estejam fisicamente distantes) e acedendo às informações de que precisamos para fazer o que queremos.

As propostas atuais de reinvenção da escola partem do pressuposto que a escola é muito mais do que um lugar físico que se frequenta por um tempo. A escola, reinventada, seria um ambiente de permanente e constante aprendizagem, que englobaria tanto o plano presencial como o plano virtual (neste caso, mediado pela tecnologia).

o O o

A igreja, como a escola, é uma instituição social. Nenhuma lei nos obriga a frequentar uma igreja por um determinado número de anos numa determinada fase de nossa vida. Mesmo assim, sem obrigatoriedade, muitos o fazem – pelo menos por umas duas horas, um dia por semana, em regra aos domingos, durante a vida toda.

O principal objetivo da frequência à escola é a aprendizagem. E o principal objetivo da frequência à igreja, qual é? Sem pretender elaborar uma listagem exaustiva, creio que podemos dizer que, neste caso, há vários objetivos: adoração a Deus, formação cristã, fortalecimento da fé, comunhão com os irmãos, etc.

Vou deixar de lado, por um momento, os três primeiros objetivos citados para me concentrar no quarto: comunhão entre os irmãos.

Se pensarmos sobre a igreja em termos análogos àqueles em que se vem pensando sobre a escola, poderíamos cogitar da reinvenção da igreja. Nessa visão, a igreja (diferentemente do templo) deixa de ser um lugar físico que se frequenta durante duas horas aos domingos e passa a ser a comunidade dos crentes, isto é, daqueles que comungam os aspectos centrais de uma determinada fé e prática e consideram importante viver em comunhão uns com os outros. Talvez seja mais ou menos isso que os teólogos de antigamente entendiam pela expressão “igreja invisível” (ecclesia invisibilis). Nessa linha, a comunhão que acontece numa visita semanal ao templo é muito limitada: a igreja (devidamente reinventada) precisaria estar presente na vida das pessoas durante a maior parte de suas vidas — isto é, também nas horas que elas passam longe do templo. Enfim, o tempo todo.

Isso quer dizer que, levando a ideia adiante, precisamos de algo não só semelhante a “lifelong churching” — isso, até certo ponto, já existe hoje — mas semelhante a comunhão em qualquer momento e em qualquer lugar (“anytime, anywhere, communion“). Isso hoje pode ser feito com o apoio das mesmas tecnologias que permitem a reinvenção da escola. As tecnologias de informação e comunicação hoje disponíveis viabilizam essa ideia.

Em seu livro The Church of Facebook: How the Hyperconnected are Redefining Community, Jesse Rice, da Igreja Presbiteriana de Menlo Park, CA, no coração do Vale do Silício, sugere que as tecnologias que revolucionaram a forma pela qual nos relacionamos uns com os outros e acedemos às informações de que precisamos para viver nossas vidas estão também provocando um abalo sísmico na nossa ideia de comunidade. Cada dia que passa milhões de pessoas se conectam umas com as outras através das redes sociais, trocam informações, fazem amizades, cultivam esses relacionamentos, até mesmo se apaixonam, apoiam os que estão deprimidos, aprendem… As redes sociais nos permitem estar o tempo todo sintonizados com nossos amigos, acompanhar suas ações, compartilhar suas alegrias e tristezas… Elas tornam possível um nível de comunhão entre amigos inimaginável até pouco tempo…

Irmãos na fé são mais do que amigos, não são?

o O o

Se Martin Buber estava minimamente certo ao dizer que Deus não está aqui ou ali, mas entre um e outro, a comunhão com o próximo é a principal forma de nos aproximarmos de Deus.

Na verdade, até aqui encarei apenas a função “comunhão com os irmãos” da frequência à igreja. Mas é possível agregar também as demais funções, como, por exemplo, a adoração a Deus. Hoje, na Catedral Evangélica, já temos irmãos que nunca vemos presencialmente: os que de longe assistem aos nossos cultos pela Internet. Eles poderiam se integrar a essa igreja reinventada, a essa comunidade virtual de comunhão e, também, de adoração. Os muito idosos, os doentes, os presos ao leito ou à casa, poderiam também se sentir visitados diariamente pela presença envolvente da igreja…

Como estou convicto de que (a) a educação é a principal forma de desenvolvimento humano; (b) a educação é fruto da aprendizagem, muito mais do que do ensino ou da instrução; e (c) a aprendizagem é, eminentemente, colaborativa, e, portanto, tem lugar na interação, no relacionamento, na comunhão… — como estou convicto disso sou forçado a reconhecer que a igreja, assim reinventada como comunidade virtual, teria, no fundo, também uma função fundamentalmente educativa (formativa). Mas ela seria educativa, não tanto pela via do ensino e da instrução, mas, sim, pela via do compartilhamento de ideias e até mesmo de dúvidas, do diálogo que nos faz crescer e propicia o nosso desenvolvimento como seres humanos, da discussão e do embate de ideias que aprofundam o nosso entendimento, porque nos permitem compreender melhor o mundo, a vida, a nós mesmos, quiçá a Deus.

Creio que uma das frases mais felizes de Paulo Freire, o mais conhecido dos educadores brasileiros, é: “Ninguém educa ninguém, mas tampouco alguém se educa sozinho: nós nos educamos uns aos outros, em comunhão, mediatizados pelo mundo” (Pedagogia do Oprimido).

A igreja, assim redefinida e virtualizada, seria um ambiente também de crescimento, se não na fé, em si, pelo menos na sua compreensão, na sua articulação com a vida diária, nas suas implicações para a conduta no trabalho, no lazer, na vida doméstica.

Quem sabe a criação, para a Catedral Evangélica, de uma comunidade virtual (parecida com um site de relacionamento, como FaceBook) seria um primeiro passo para a criação de uma igreja que transcenda os limites do centro histórico da cidade, e mesmo da cidade em si, e se torne um ambiente de comunhão, adoração e formação, 24/7: 24 horas por dia, 7 dias por semana?

Para que isso aconteça, não basta criar uma comunidade virtual num site da Internet. É preciso ver a participação no site como parte integrante de nossa vida cristã e ver a coordenação (ou animação) do site como um ministério da igreja — ou como uma outra plataforma (além da presencial) em que os atuais ministérios podem desenvolver o seu trabalho. O acolhimento de novos membros, de visitantes, dos que assistem ao culto pela Internet, poderia ser feito também nesse espaço virtual. Ali também poderiam ser divulgadas notícias e informações acerca de: eventos que acontecerão na própria igreja e fora dela (neste caso, palestras, concertos, cursos, etc.); aniversários, casamentos, doenças, falecimentos; trabalhos dos diversos ministérios, sociedades e fundações da igreja; campanhas (como a de assinatura de O Estandarte, recolhimento de mantimentos ou agasalhos, etc.); sugestão e venda de livros; etc. Além disso, pedidos de oração poderiam ser feitos ali, orientação e apoio pastoral também poderiam ser em parte fornecidos ali, com respostas ou orientações rápidas sobre questões levantadas pelos membros acerca de doutrina, exegese, hermenêutica, conduta, etc.

Por último, mas não menos importante, a comunidade virtual poderia ser um posto avançado de evangelização que leva em conta o fato de que as pessoas, hoje, passam cada vez mais tempo conectadas ao virtual.

(*) Eduardo Chaves, é Bacharel e Mestre em Teologia pelo Pittsburgh Theological Seminary, de Pittsburgh, PA, EUA, e Doutor em Filosofia pela University of Pittsburgh, da mesma cidade. Ele é professor aposentado da UNICAMP, onde lecionou filosofia da educação e filosofia política durante quase 33 anos, de 1974 a 2007. Ao mudar para São Paulo, em 2008, passou a frequentar a Primeira Igreja, da qual é membro desde 2010, com sua mulher Paloma Chaves.

Escrito em 14 de Novembro de 2011 e transcrito aqui em 28 de Dezembro de 2011.

Campeonatos Mundiais de Futebol Interclubes (1960-2011)

Alguma forma de campeonato mundial interclubes existe desde 1960. Já mudou de nome e mesmo de natureza duas vezes, desde então. No início era apenas uma disputa, em dois jogos, entre o Campeão da Europa e o Campeão das Américas. Hoje os campeõs da Ásia, do Oriente Médio e da África também participam.

Nestes 52 anos houve 50 campeonatos — e, portanto, 50 campeões. Em dois anos não houve campeonato.

O pretenso campeonato de 2000 no Brasil, com apoio da FIFA, considero uma excrescência e, portanto, não o levo em conta. O campeão de 2000 é o Boca Juniors, que ganhou a legítima Copa Européia – Sul Americana Toyota daquele ano, que, por sinal, continuou a ser a Copa do Mundo de Futebol Interclubes nos anos de 2001, 2002, 2003 e 2004, em que essa brincadeira da FIFA não teve continuidade. Em 2005 a Copa Toyota foi sacrementada pela FIFA, com as mudanças indicadas atrás, e, naquele ano, sagrou-se campeão o São Paulo — que, assim, é o primeiro legítimo campeão da Copa do Mundo de Clubes da FIFA.

Outra excrescência é o suposto campeonato mundial (Copa Rio) que o Palmeiras ganhou  em 1951 e que a FIFA teria reconhecido como o primeiro Campeonato Mundial Interclubes. Um absurdo. Depois viriam oito anos sem campeonatos.

Dá pra gente até acreditar que dinheiro anda correndo por aí para reconhecimento de títulos.

Copa do Mundo de Clubes FIFA (2005-hoje: 7 anos e 7 campeonatos)

2011 Barcelona
2011 Internationale – Milano
2009 Barcelona
2008 Manchester United
2007 Milan
2006 Internacional – Porto Alegre
2005 São Paulo

Copa Européia – Sul Americana Toyota (1980-2004: 25 anos e campeonatos)

2004 Porto
2003 Boca Juniors
2002 Real Madrid
2001 Bayern – München
2000 Boca Juniors
1999 Manchester United
1998 Real Madrid
1997 Borussia – Dotmund
1996 Juventus
1995 Ajax
1994 Velez Sarsfield
1993 São Paulo
1992 São Paulo
1991 Estrela Vermelha
1990 Milan
1989 Milan
1988 Nacional – Montivideo
1987 Porto
1986 River Plate
1985 Juventus
1984 Independiente
1983 Gremio – Porto Alegre
1982 Peñarol
1981 Flamengo
1980 Nacional – Montividéo

Copa Interamericana (1960-1979: 20 anos, 18 campeonatos)

1979 Olympia – Assunción
1978 Não houve
1977 Boca Juniors
1976 Bayern – München
1975 Não houve
1974 Atlético – Madrid
1973 Independiente
1972 Ajax
1971 Nacional – Montividéo
1970 Feyenoord
1969 Milan
1968 Estudiantes
1967 Racing
1966 Peñarol
1965 Internazionale – Milano
1964 Internazionale – Milano
1963 Santos
1962 Santos
1961 Peñarol
1960 Real Madrid

Times mais ganhadores

4 Milan
3 Internazionale – Milano
3 Real Madrid
3 São Paulo
3 Boca Juniors
3 Peñarol
3 Nacional – Montividéo
2 Barcelona
2 Manchester United
2 Bayern – München
2 Juventus
2 Ajax
2 Porto
2 Santos
2 Independiente
1 Borussia
1 Estrela Vermelha
1 Atletico – Madrid
1 Feyenoord
1 Velez Sarsfield
1 River Plate
1 Gremio
1 Flamengo
1 Internacional – Porto Alegre
1 Olympia
1 Estudiantes
1 Racing

50 TÍTULOS (7+25+18)

Em São Paulo, 18 de Dezembro de 2011

Sete anos deste blog!

Hoje faz sete anos que, por sugestão de minha amiga Marcia Teixeira, da Microsoft, abri uma conta no então Spaces, também da Microsoft, com o título de Liberal Space, para fazer um blog. A data era 2/12/2004. Eu estava, na hora que ela me chamou no Messenger, em Bothel, WA, perto da Microsoft e perto de Bellevue, para onde a Marcia acaba de mudar.

Hoje o blog está hospedado aqui no WordPress, por decisão da Microsoft, e contém mais de 700 artigos. Ultimamente não tenho escrito tanto nele porque tenho escrito no Blog das Editoras Ática e Scipione (http://blog.aticascipione.com.br). Mas este é o meu blog pessoal, pelo qual tenho enorme carinho.

Sete velinhas.

Em São Paulo, 2 de Dezembro de 2011

Steve Jobs (1955-2011)

Post que publiquei no Blog das Editoras Ática e Scipione em 10 de Outubro de 2011, no URL http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/steve-jobs.

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Talvez nem seja necessária uma justificativa para escrever sobre Steve Jobs, neste momento em que ele acaba de partir, num blog em que trato essencialmente de educação e tecnologia. Ainda assim, esboço uma justificativa: em seu ciclo inicial, a empresa que Jobs fundou considerou a educação o seu principal mercado – entre 1977 e 1984, por exemplo, o Apple II (principal produto da casa) provocou o surgimento de uma quantidade enorme de softwares educacionais. Ao longo de sua trajetória, a Apple fez parcerias com um grande número de Distritos Educacionais na Califórnia (onde estava sua sede) e em outros estados; implantou, ainda, descontos substantivos para professores e alunos (como, de resto, faz até hoje).

Apple Jobs Silhouette

Apple Crying

Fotos: Divulgação/Apple

Meu primeiro contato com um microcomputador remonta a estes tempos: conheci um Apple II por volta de 1979, através de um colega da Unicamp, especialista em Linguística Computacional (algo que eu nem sabia que existia). O equipamento em si me chamou a atenção, mas quando ele me demonstrou as aplicações da linguagem de programação ProLog (Programming in Language) para o aprendizado de Lógica, eu me encantei. Ali na hora tomei a decisão de comprar um equipamento daqueles quando pudesse… Até hoje, cerca de 30 anos depois, ainda guardo o meu clone brasileiro do aparelho, fabricado pela Unitron.

Depois travei contato com a linguagem de programação Logo, desenvolvida no MIT – Massachusetts Institute of Technology, por Seymour Papert, para uso na educação, em especial pelas crianças. Havia, para o Apple II, pelo menos duas implementações de Logo: a da LCSI – Logo Computer Systems International, chamada Apple Logo, de Toronto, e a da Terrapin Logo, de Cambridge (MA), que era, segundo constava, a implementação mais próxima das diretrizes de Papert.

Enfim, apenas estas breves linhas justificam minha decisão de escrever sobre Steve aqui. Mas há mais. Muito mais. Em seu discurso de paraninfo na Universidade de Stanford, em 12 de junho de 2005, Steve diz uma série de coisas importantes em que eu venho insistindo neste blog. Vou especificar algumas.

A primeira é que a escola às vezes atrapalha – e quando ajuda, frequentemente o faz sem querer. No discurso, Jobs diz que aos 17 anos foi enviado para a universidade (Reed College, uma instituição realmente cara), conforme promessa solene que seus pais adotivos fizeram à sua mãe biológica. O rapaz cursou apenas um semestre e desistiu. Ele explica:

“Depois de seis meses, eu não conseguia ver nenhum valor no que eu estava fazendo. Eu não tinha a menor ideia do que eu queria fazer com a minha vida nem de como a universidade poderia me ajudar a descobrir. E eu estava lá gastando toda a poupança que meus pais haviam feito durante sua vida inteira. Assim, decidi abandonar o curso na confiança de que as coisas de alguma forma iriam dar certo. Foi bastante assustador, na época, mas, olhando no retrovisor, aquela foi uma das melhores decisões que tomei em toda minha vida.”

Steve desistiu do curso, mas ficou durante um ano e meio rodando pelo campus universitário. Sem dinheiro, dormia em colchões no chão do quarto de seus amigos. Recolhia e devolvia garrafas para receber cinco centavos por cada uma, assim ganhando o dinheiro com o qual se alimentava (em geral, mal). No fim de semana andava mais de dez quilômetros para ir a um templo Hare Krishna para ganhar sua única refeição decente da semana.

O que fazia ele perambulando pelo campus?

“Tendo desistido da Universidade, eu não tinha a obrigação de frequentar as aulas de nenhum curso que não me interessava, e podia aparecer em aulas de cursos que pareciam interessantes. (…) Isso eu amava fazer. E muito daquilo em que tropecei enquanto seguia minha curiosidade e intuição, acabou por se tornar inestimável mais tarde em minha vida.”

Uma universidade sem dúvida é um lugar onde existem coisas interessantes. Às vezes é preciso procurar bastante, mas no final a gente geralmente acha. Steve achou. O quê? Um curso de caligrafia!

“O Reed College naquela época oferecia o que possivelmente era o melhor curso de caligrafia do país. Todos os posters existentes no campus, toda etiqueta de gaveta, tudo era maravilhosamente caligrafado à mão. Porque eu havia desistido do meu curso e não tinha de frequentar as aulas regulares, decidi fazer o curso de caligrafia para aprender a escrever de maneira assim tão linda. Aprendi sobre fontes com serifa e sem serifa, sobre a variação no espaço entre diferentes combinações de letras – tudo aquilo que torna a melhor tipografia um lugar fantástico. Era lindo, histórico, artisticamente sutil de uma forma que a ciência não tem jeito de capturar. E eu achei tudo fascinante. Mas nada daquilo parecia, nem mesmo de longe, ter qualquer utilidade para minha vida.”

O belo e o útil… A caixa de brinquedos e a caixa de ferramentas de Rubem Alves. Aqui está a diferença que Edgar Morin apontou, entre a prosa, que nos permite dizer o que precisamos ou queremos dizer, e a poesia, que nos dá l

Só muito mais tarde Steve descobriu quão útil aquele curso de caligrafia lhe foi, quando descobriu a importância do design nos produtos da Apple: o design limpo (clean), simples, atraente, lindo mesmo, em que forma e função se integram. Foi por isso que decidiu dar uma interface gráfica ao Macintosh, com tipos gráficos na tela que faziam lembrar o seu curso de caligrafia, deixando para trás, definitivamente, aquelas letras feias com espaço fixo entre elas que apareciam na tela dos outros computadores. Assim, Reed College acabou sendo útil para Steve – embora sem querer…

Agora, a explicitação da segunda grande lição que Steve nos dá no seu discurso de paraninfo. Ele já havia mencionado que, no seu único semestre como aluno regular da Universidade, “não tinha a menor ideia do que eu queria fazer com a minha vida nem de como a universidade poderia me ajudar a descobrir”, mas adiante diz: “Eu tive sorte: descobri o que eu amava fazer cedo na vida. Woz [Steve Wozniak] e eu fundamos a Apple na garagem da casa dos meus pais quando eu tinha 20 anos”.

Três anos depois de perceber que não tinha a menor ideia do que queria fazer da vida, Steve descobriu que queria projetar computadores. E projetou. O primeiro (o Apple I) e o segundo (o Apple II) não foram lá uma beleza em termos de design, mas este último se tornou um sucesso, mesmo assim. Foi ele que me atraiu (também) para a área de informática.

A lição de Steve é que o sucesso eventualmente chega para quem ama o que faz. E que quanto mais cedo a gente descobre o que é que a gente ama fazer, maiores são as chances de sucesso. Como é que Steve descobriu o que é que ele amava fazer? Ele não nos diz.

Ele reconhece que, quando desistiu da universidade, o fez por si mesmo e por consideração aos pais: estava perdendo seu tempo ali e desperdiçando o dinheiro deles. Sentiu-se perdido. No entanto, não perdeu a confiança de que “as coisas de alguma forma iriam dar certo”. Sabia que em algum momento descobriria o que queria fazer da vida. “A fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de coisas que se não veem”, já dissera São Paulo.

Foi só em retrospectiva que Steve conseguiu “unir os pontos” e enxergar com clareza como sua vida posterior se ligou com aqueles acontecimentos dos seus 17, 18 anos.

“Ninguém é capaz de conectar os pontos do passado para o futuro. Mas é possível conectá-los do presente para o passado, olhando no retrovisor. Assim, lá atrás, você tem de confiar que os pontos vão de alguma forma se conectar no futuro. Você precisa confiar em algo – seu instinto, seu destino, seu carma, seja o que for. Esta maneira de ver as coisas nunca me deixou na mão, e fez toda a diferença em minha vida.”

Steve não nos conta como descobriu o que amava fazer na vida, mas nos revela onde está a chave do segredo.

Às vezes pode parecer que as coisas não vão dar certo. Em 1985, Steve foi mandado embora da companhia que ele mesmo havia criado. Parecia que um desastre havia acontecido no caminho de seu encontro com o seu destino.

“Eu não conseguia ver, então. Mas as coisas acabaram acontecendo de tal maneira que ter sido mandado embora da Apple foi a melhor coisa que jamais podia ter acontecido comigo. O peso de ser bem sucedido foi substituído pela leveza de ser novamente um iniciante, agora menos certo acerca de tudo. Esse fato me libertou e me permitiu entrar num dos períodos mais criativos de minha vida.”

A insustentável leveza de ser capaz de começar de novo, sem o peso do passado. Mas, diz ele, não foi fácil:

“O remédio foi terrível, mas creio que o paciente precisava dele. Às vezes a vida acerta uma tijolada na cabeça da gente. Nunca perca a fé. Estou convencido de que a única coisa que me manteve em pé, disposto a continuar, foi o fato de que eu amava o que eu fazia. Você tem de encontrar o que você ama. Isso é verdade em relação ao seu trabalho, mas é verdade também em relação aos seus amores. Seu trabalho vai preencher um espaço grande de sua vida, e o único jeito de ficar satisfeito com o seu trabalho é fazendo aquilo que você considera um trabalho excelente. E o único jeito de fazer um trabalho excelente é amando o que você faz. Se você ainda não descobriu o que você ama fazer, continue procurando. Não se acomode. Como tudo o que diz respeito ao coração, você vai saber quando você encontrar aquilo que você ama fazer. E, como em qualquer relacionamento amoroso genuíno, as coisas só ficam melhores, a partir daí, com o passar do tempo. Assim sendo, continue a procurar, até que você ache. Não se acomode.”

É porque ele fazia o que amava fazer que Steve foi capaz de construir tantos produtos tão desejados por nós hoje. No entanto, em outro lugar, não no discurso de paraninfo, ele demonstra que o que o movia a fazer esses produtos não era um desejo altruísta de agradar o consumidor, nem mesmo o desejo egoísta de ganhar dinheiro: era a satisfação, talvez mais egoísta ainda, de saber que ele fez simplesmente o melhor que podia — e que podia fazer coisas da mais alta qualidade e beleza.

Eis o que disse, logo depois de lançar o Macintosh:

“Sabemos que o Mac vai vender zilhões, mas nós não o construímos para ninguém mais: nós o construímos para nós mesmos. Nós, que o construímos, seríamos o grupo que iria julgar e decidir se o Mac era fantástico ou não. Nós não iríamos sair de onde estávamos para fazer pesquisa de mercado. Nós simplesmente queríamos construir a melhor coisa que fôssemos capazes de construir.”

Em outras palavras, o Mac poderia ser um fracasso de mercado (como o Lisa, antes dele, o foi) – mas esse fato não os levaria a considerá-lo menos fantástico. Eis outra citação magnífica:

“Quando você é um carpinteiro fazendo uma linda cômoda, você não usa aglomerado na parte de trás, mesmo que aquela parte vá ficar grudada na parede e ninguém jamais a veja. Você sabe que a parte de trás da cômoda estará lá, em aglomerado. Para que você possa dormir bem à noite, a estética, a beleza, a qualidade têm de ser levadas ao extremo, em todos os aspectos”.

Termino com duas citações que me parecem ser as melhores de Steve, estas novamente retiradas do discurso de paraninfo:

“O tempo de sua vida é limitado. Por isso, não o desperdice vivendo uma vida ditada por terceiros. Não se deixe pegar na armadilha do dogma que lhe diz para viver com o resultado dos pensamentos de outrem. Não deixe que o barulho das opiniões dos outros abafe o som de sua própria voz interior. E, mais importante de tudo, tenha coragem para seguir a sua intuição, o seu coração. Eles de alguma forma já sabem o que você realmente quer se tornar. Tudo o mais é secundário.”

A segunda citação nos dá uma pista acerca do que pode ter levado Steve a encarar a vida tão a sério e a descobrir, depois de sair da Universidade, aos 17 anos, mas antes dos 20 anos, o que queria fazer de sua vida.

“Quando eu tinha 17 anos, li uma citação que dizia algo assim: ‘Se você viver cada dia como se fosse o último dia de sua vida, um dia qualquer você certamente estará certo’. Essa citação causou profundo impacto sobre mim. Desde então, nos 33 anos que decorreram de lá para cá, eu me olho no espelho toda manhã e me pergunto: ‘Se hoje fosse o último dia da minha vida, eu iria querer fazer o que estou prestes a fazer hoje?’ E sempre que a resposta foi ‘não’ por um número demasiadamente grande de dias seguidos, eu soube que precisava mudar alguma coisa”.

Que bela lição de educação. Que bela lição de vida. Estou convicto de que Steve só conseguiu nos legar essas lições porque abandonou a universidade.

Em São Paulo, 10 de Outubro de 2011, transcrito aqui em 11 de Outubro de 2011

O Desafio da Formação do Professor na Sociedade da Informação

Post que publiquei no Blog das Editoras Ática e Scipione em 03 de Outubro de 2011, no URL http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/o-desafio-da-formacao-do-professor-na-sociedade-da-informacao.

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No contexto atual da sociedade da informação – em que o professor não é um especialista em determinada área de conteúdo curricular, mas, sim, um facilitador da aprendizagem –, é possível questionar: pode alguém que não é um especialista em Física facilitar o aprendizado da Física, por exemplo?

1. A sociedade industrial, a divisão do trabalho e a especialização

A sociedade industrial surgiu, no fim do século 17 e início do século 18, com a divisão do trabalho. Adam Smith, em A Riqueza das Nações, publicado em 1776, deixa isso bastante claro. Com a divisão do trabalho foram inventadas as especialidades e, acompanhando-as, a figura do profissional especializado.

Até há cerca de cinquenta anos, éramos uma sociedade tipicamente de especialistas. Os generalistas eram mal vistos. Mesmo na filosofia, onde os profissionais em geral dão pitaco sobre toda e qualquer coisa, a especialização começou a surgir. O indivíduo não era mais filósofo, puro e simples. Ele passou a ser filósofo da ciência, da política, da religião… Na filosofia da ciência, subespecializações surgiram: filosofia das ciências naturais, filosofia das ciências humanas etc. Dentro da filosofia das ciências naturais, filosofia da física – quando não da mecânica quântica e de outras subáreas.

A situação ficou tão séria que o maior filósofo do século 20, Karl Popper, ele próprio um generalista inveterado (dentro e fora da filosofia), sentiu-se na obrigação de advertir que, em outras áreas, a especialização pode ser um pecado venial necessário e, portanto, desculpável, mas na filosofia é um pecado mortal, imperdoável como tal…

Na sociedade industrial o ideal (colocando a questão no plano caricatural) passou a ser saber cada vez mais sobre cada vez menos. Seus profissionais foram, aos poucos, se tornando ultraespecializados. Lembro-me de ter visto, na Unicamp, uma tese de uma aluna que se especializava em Letras (subespecialização Literatura, “sub-subespecialização” Literatura Brasileira) que tinha um título mais ou menos assim: “O uso da partícula ‘ora’ na prosa de Guimarães Rosa”. Tese mais especializada do que essa é difícil de imaginar.

2. A escola da sociedade industrial

Como mais que sabido, a escola moderna surgiu com a sociedade industrial. Inicialmente, ela era pequena e simples, seus cursos não duravam mais de cerca de quatro anos (Escola Primária ou Elementar) e os professores eram polivalentes. O professor polivalente é um profissional especializado, quando comparado com outros profissionais: o médico, o engenheiro, o advogado. Mas, dentro da área da educação, o professor polivalente é um generalista: ele cuida da alfabetização de seus alunos e, depois, da leitura, da escrita, do cálculo, dos estudos sociais, das ciências, das artes e até mesmo da educação física. Em alguns contextos pouco heterogêneos do ponto de vista religioso, esse professor se ocupava até mesmo da educação religiosa dos alunos.

À medida que a escola cresceu, o ensino diferenciou-se e as séries foram se estendendo além do nível primário. E, numa sociedade cada vez mais complexa, o professor começou a virar especialista. É verdade que, ainda hoje, o professor da Educação Infantil e das séries iniciais da Educação Fundamental é, em muitos contextos, polivalente: um generalista. Mas mesmo aí a especialização já coloca a sua cara. O professor alfabetizador se especializa em conseguir que a criança aprenda a ler e escrever. O professor de Matemática e Ciências se especializa em ajudar a criança adquirir as competências básicas dessas áreas. O professor de Estudos Sociais e Meio Ambiente faz o mesmo com suas áreas. Professores de Educação Artística e de Educação Física completam o quadro. São vários especialistas, ainda dentro da Educação Fundamental, onde havia antes apenas um professor polivalente e generalista.

3. A sociedade da informação

Hoje em dia, com o aparecimento da sociedade da informação, a figura do generalista está readquirindo prestígio. Algum nível de especialização parece inevitável, especialmente em profissões liberais como engenharia, medicina, direito. Dentro destas áreas, porém, a sociedade da informação começa a esperar que seus profissionais sejam cada vez mais polivalentes, vale dizer, generalistas. No trabalho empresarial, então, mais do que nunca.

Espera-se do profissional de marketing, por exemplo, que entenda dos produtos e do core business da empresa, do profissional de treinamento que entenda dos processos básicos para os quais precisa organizar formações, do profissional de vendas que entenda dos produtos e processos e, mais, que entenda de psicologia e de relações interpessoais. Aqueles que transitam com facilidade de uma área para outra da empresa são os mais credenciados a subir na escada do sucesso.

Nesse contexto, dados os condicionamentos que nos fazem esperar especialidades, caímos na tentação de definir especializações híbridas, bidisciplinares, ou multi ou pluridisciplinares: Engenharia Biomédica, Sociobiologia, Psicolinguística. Ou, ainda melhor, especializações transdisciplinares, que seriam especializações literalmente não especializadas.

4. A escola na sociedade da informação

A escola, como sempre, resiste a essas inovações. Os professores, na visão da educação tradicional, seriam, na melhor das hipóteses, biespecialistas: especialistas numa área de conteúdo curricular (Língua Portuguesa, Matemática, Ciências etc.) e especialistas na ciência (ou quem sabe arte) de transmitir a outrem o conteúdo de sua área de especialização: Pedagogia. (É por isso que professores são sempre professores de alguma coisa, e que se espera que eles tenham alguma formação pedagógica).

Há quem ache que alguns professores – os de Didática Geral, por exemplo – seriam uniespecialistas: sua especialidade seria a arte de ensinar ou transmitir conteúdos de qualquer natureza. Os professores de Didática Específica (Didática da Língua Portuguesa, Didática da Matemática, Didática da Física etc.) seriam, entretanto, biespecialistas. E os professores de Língua Portuguesa, Matemática, Física, idem: também biespecialistas.

No contexto atual da sociedade da informação – em que o professor não é um especialista em determinada área de conteúdo curricular, mas, sim, um facilitador da aprendizagem –, é possível perguntar: pode alguém que não é um especialista em Física facilitar o aprendizado da Física, por exemplo? Eu tendo a crer que sim, embora reconheça que a resposta a essa questão esteja longe de ser simples e dificilmente poderá ser discutida adequadamente aqui.

No centro de pesquisas da Microsoft em Redmond, nos Estados Unidos, encontrei por várias vezes um especialista em facilitação de interação em reuniões. Ele não era especializado em facilitar qualquer coisa – a aprendizagem, por exemplo –, mas era um genuíno expert em propiciar, ao longo de uma reunião, a discussão sobre qualquer assunto, ainda que fossem temas sobre os quais ele pouco ou mesmo nada entendia.

Todas vezes que o vi e fui (literalmente) vítima de sua ação implacável, ele mostrou-se altamente competente no processo de articular debates, inclusive quando a pauta soava bizantina. Ele se concentrava no processo: quem falava muito, quem falava pouco, quem ficava calado, quem queria controlar o fluxo ou a direção da discussão… E aplicava regras: nenhuma fala podia ultrapassar dois minutos, por exemplo; ou ninguém podia falar pela segunda vez até que todos tivessem contribuído ao menos uma vez; ou era preciso parar a discussão se alguém não tivesse entendido algum conceito ou afirmação proposta (a discussão, contudo, não era parada, nem a ordem do discurso alterada, simplesmente porque alguém discordara dos demais).

O professor do futuro será alguém assim? Um facilitador, um mediador, uma mistura de mentor e coach? Alguém que sabe ouvir, que sabe fazer perguntas (de esclarecimento e de sondagem, como diria meu amigo Les Foltos), que sabe argumentar, deixar de lado os acessórios e chegar direto ao essencial? Será ele o sujeito que, além de facilitar, também problematizará, questionará, levará os outros a pensar? Um maieuta? Uma parteira intelectual que ajuda os outros a conceber e a parir ideias, explicações, formas interessantes de ver o mundo?

As faculdades de Educação não têm a menor ideia do que está envolvido na formação de um professor diferente do tradicional – aquele biespecialista meio capenga, “3×1”, que cursa três anos de conteúdo em algum Instituto (Física, Química, Biologia, Matemática, Letras, Ciências Humanas) e, numa faculdade de Educação, um ano de matérias pedagógicas (Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia da Aprendizagem, Didática), de uma perspectiva, a maior parte das vezes, totalmente anacrônica e ineficiente para o ofício do professor (tradicional ou moderno).

Está na hora de pensarmos na formação do professor sob a ótica de um paradigma diferente: um professor para a sociedade da informação, cuja formação não seja, necessariamente, a de um especialista em alguma fração do currículo, mas aquela que lhe permita mediar e facilitar o desenvolvimento de competências por parte de seus alunos, ainda que ele próprio não as domine.

Em São Paulo, 3 de Outubro de 2011, transcrito aqui em 11 de Outubro de 2011

Escola e Ensino não são Sinônimos de Educação

Post que publiquei no Blog das Editoras Ática e Scipione em 26 de Setembro de 2011 no URL http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/escola-e-ensino-nao-sao-sinonimos-de-educacao.

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Por que a escolarização é obrigatória, e não a educação? A maior parte das pessoas considera escola e educação como conceitos basicamente equivalentes, e, portanto, nem sequer lhes ocorre que poderiam educar seus filhos em casa, sem precisar enviá-los à escola.

1. Paradigmas

Paradigmas são construídos à medida que um determinado conjunto de ideias passa a ser aceito de forma tácita pela maior parte de um grupo – o grupo para o qual essas ideias são especialmente relevantes e importantes (ou o foram, em uma determinada fase de sua história).

Na realidade, para que se construa um paradigma é necessário que as ideias que compõem esse conjunto sejam consideradas não só verdadeiras, mas evidentes – para dizer a verdade, tão evidentes que se acredite ser desnecessário explicitá-las e demonstrar que há evidência e bons argumentos que as sustentam (se é que há).

Para quebrar um paradigma é necessário desconstruí-lo. Para desconstruir um paradigma bem firmado na mente de um grupo de pessoas, é necessário frequentemente mostrar suas falhas – até que alguém se disponha a prestar atenção. Quando alguém mais é convencido, serão dois a repetir as falhas do paradigma. Assim, o movimento prosseguirá até que o grupo dos que se opõem cresça e ameace seriamente a estabilidade dele. Neste momento, os que lhe eram favoráveis começam a considerar o grupo de críticos como visionários, românticos ou simplesmente loucos.

Thomas Kuhn descreveu esse processo de forma bastante interessante no âmbito da ciência. Seu livro The Structure of Scientific Revolutions (A Estrutura das Revoluções Científicas), de 1962, argumenta que verdadeiras revoluções científicas são raras, mas acontecem. Durante a maior parte do tempo os cientistas simplesmente dão por pressuposto que o paradigma sob o qual trabalham está acima de qualquer suspeita e, por isso, não o questionam e simplesmente ignoram críticas feitas a ele. Em geral, os pesquisadores mais velhos investiram muito nas concepções vigentes (quem sabe escreveram vários livros e artigos defendendo-as), o que os leva a raramente admitirem falhas.

No entanto, há um ponto em que as críticas são tantas, e tão fortes, que aqueles que ainda não estão tão “apegados” ao velho paradigma passam a observá-lo com certo ceticismo e a contemplar a possibilidade de adotar, ou mesmo criar, um novo modelo. É assim que as coisas acontecem na ciência. Paradigmas se sucedem vagarosamente e não sem muitas dificuldades, já que algumas pessoas preferem morrer a mudar de ponto de vista.

Se isso acontece na ciência, que seria a prática mais racional existente entre os humanos, é de esperar que os paradigmas tenham vida relativamente segura entre os componentes dos grupos que os aceitam na política, na religião e, como procurarei mostrar, na educação.

Na política, se alguém é de direita, ou socialista, ou de esquerda ou, alternativamente, liberal, em geral considera esse paradigma como dado e simplesmente ignora comentários adversos. Na religião, se alguém é judeu, ou cristão, ou muçulmano, faz a mesma coisa. Por isso a maioria das pessoas morre na mesma religião em que nasceu. Mudança de religião ou abandono total de qualquer religião são fenômenos relativamente raros – embora nos últimos tempos pareçam mais comuns.

A situação na educação é parecida. Embora para quem estude a área com mais cuidado esteja claro que educação é uma coisa, ensino outra, e escola ainda uma outra, na cabeça da maior parte das pessoas esses termos são basicamente sinônimos, ou, pelo menos, equivalentes.

Nossa lei maior da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, deixa claro no primeiro parágrafo de seu primeiro artigo que disciplina “a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias” – ou seja, em escolas.

No entanto, nem mesmo adotando como foco a educação que tem lugar através do ensino em escolas, a lei deixa de mencionar, em seu segundo artigo, que “a educação é dever da família e do Estado”. Tal especificação é curiosa, vindo, como vem, no artigo seguinte ao que esclarece que a norma disciplinará apenas a educação escolar, pois a educação provida no lar não parece se exaurir naquela fornecida nas salas de aula… Mas deixemos isso para lá.

Em parte porque a lei foca a educação que tem lugar através do ensino escolar, ela parece considerar os termos educação, ensino e escola de forma quase intercambiável em alguns lugares. Isso contribui para reforçar a ideia, que é parte do paradigma, que esses conceitos se referem, todos, à mesma coisa. Para alterar este senso comum, precisamos descontruir essa equivalência. É isso que venho tentando fazer neste blog.

2. A educação em casa (Home Education)

No momento, estou relendo um livro instigante, que conheci há alguns anos. Trata-se de Teach Your Own: The John Holt Book of Homeschooling (Ensine os seus: O livro de Educação em Casa de John Holt), autorado por John Holt e Pat Farenga (Perseus Publishing, 2003).

A obra é uma revisão, por Pat Farenga, de dois livros anteriores:Teach Your Own: A Hopeful Path for Education (Ensine os seus: Um caminho que traz esperança para a Educação), de John Holt, publicado em 1981, e The Beginner’s Guide to Homeschooling (Guia de Educação em Casa para o iniciante), do próprio Pat Farenga, publicado em 2000.

Nos Estados Unidos e em alguns outros países mais desenvolvidos a opção da Educação em Casa, ou Home Education, com a consequente desescolarização das crianças, já virou um movimento digno de nota há algum tempo.

Hoje, acho difícil que a proposta de que os pais eduquem os filhos em casa, em vez de enviá-los à escola, encontre eco no Brasil – até porque a lei proíbe que isso se dê no caso da Educação (ou seria Ensino?) para as crianças e adolescentes na faixa de 6 a 14 anos.

Aqui no Brasil, alguns pais já realizaram tentativas nesse sentido. Pediram permissão ao MEC e se comprometeram a levar os filhos para fazerem as provas oficiais etc., mas a permissão não apenas foi negada como alguns foram processados pelas autoridades educacionais (embora fossem professores competentes que certamente fariam um bom trabalho – talvez até melhor do que aquele que se realizaria na escola). No fim, tiveram de desistir, porque no Brasil não é a educação que é obrigatória: é a escolarização – na verdade, o Ensino Fundamental para crianças e adolescentes. O que eu acho um absurdo.

Por que a escolarização é obrigatória, e não a educação? Acredito que isso se dê em grande parte porque a maior parte das pessoas considera escola e educação como conceitos basicamente equivalentes, e, portanto, nem sequer lhes ocorre que poderiam educar seus filhos em casa, sem precisar enviá-los à escola – e que os resultados, em muitos casos, seriam até mesmo melhores. O livro de John Holt elabora essa tese que deveria ser ou se tornar evidente: um novo paradigma.

Por muito tempo as pessoas se educaram fora da escola porque simplesmente não havia escolas, ou não havia escolas para todos. Mesmo quando passou a haver escolas para quase todos, elas só cobriam uma fase limitada da vida, em geral a infância – a faixa etária de 7 a 10 anos, especificamente. Antes dessa idade, as crianças eram educadas em casa. Depois dessa idade – e pelo resto de suas vidas – continuavam a se educar fora da escola, através do trabalho, do lazer e ao simplesmente viverem suas vidas.

O processo de se preparar para uma profissão era um estágio de educação não-formal, para o qual não havia escolas. O sujeito se tornava um aprendiz, que trabalhava junto de um mestre e oportunamente se graduava e assumia, de forma desassistida, o exercício da profissão.

A escola que hoje temos é uma instituição criada na era industrial, que persiste em adotar várias das características dos processos industriais de produção (manufatura) em massa. A escola pega crianças que são diferentes uma das outras em termos de talentos naturais, interesses, estilos de aprendizagem, níveis de curiosidade, motivações etc. e coloca todas numa mesma forma para que, ao final do processo, se tornem basicamente intercambiáveis. Todo mundo tem de aprender a mesma coisa, na mesma hora, do mesmo jeito. Isso, além de não fazer bem a ninguém, faz mal a muitas crianças que são obrigadas a se dedicar, por horas a fio, a atividades pelas quais não têm o menor interesse e, em muitos casos, o menor talento, com grande prejuízo para seu desenvolvimento.

Diante deste cenário, por que proibir que os pais que conhecem bem os seus filhos e têm condições e interesse em educá-los fora da escola possam fazê-lo? Numa sociedade como a nossa, em que a informação existe em grande quantidade e o acesso a ela é simples, e a comunicação, inclusive com especialistas, é relativamente fácil, as pessoas (jovens e adultas) já obtêm a maior parte de sua educação – pelo menos aquela que importa – fora da escola, através dos meios de comunicação, entre os quais se destacam a televisão, o rádio, as revistas e especialmente a internet (web, e-mail, mensagens instantâneas, fóruns, grupos de discussão, redes sociais).

Não há a menor dúvida de que um adolescente tem seus interesses próprios, não escolares, e se educa para cultivá-los e desenvolvê-los fora da escola. Nenhuma escola ensina crianças, adolescentes e jovens a jogar videogames, estejam eles em arcadas, em computadores, em telefones ou em consoles grandes ou pequenos.

Mas os meios de comunicação educam em outras áreas também: a área dos costumes, das atitudes e dos valores. Meu neto de seis anos esta semana me perguntou se eu achava que ele um dia teria filhos. Disse que achava que sim, caso ele encontrasse uma namorada de quem gostasse muito e com quem resolvesse se casar. Ele não se lembrou de dizer que há muita gente que tem filhos e não é casada, mas me retrucou que há muita gente casada que não tem nenhum filho, e eu tive de admitir que é verdade – mas acrescentei que a maioria tem um ou mais filhos, meninas ou meninos.

A isso ele observou: mas tem gente que também tem filho que é gay. Fui pego meio de surpresa, e tentei descobrir se ele realmente sabia o que estava dizendo. Sabia, sim. Conversei com o pai dele, depois, para entender porque ele havia dito aquilo. A resposta foi: “As novelas, Eduardo, as novelas. Ali aparecem, agora, todo dia, casos de pais que descobrem que os filhos são gays”. Independentemente do teor daquilo a que as crianças estão expostas na televisão, elas se educam no processo e passam a considerar o homossexualismo algo natural; passam a imaginar que, ao nascer, as crianças são meninos, meninas ou gays.

O mesmo neto me disse que, na escola nova que está frequentando, ele tem duas namoradas. Perguntei se isso era certo, ou “legal”, e a resposta foi que nas novelas um monte de gente tem mais de uma namorada… (Logo, deve ser certo, não é verdade?).

Apesar de ser realidade o fato de crianças como o meu neto estarem se educando pela televisão (que está fora da escola), caso os seus pais resolvam educá-las em casa (também fora da escola), eles poderão ser processados. Bem, como já comentei, acho isso um absurdo.

3. A Educação sem ensino

Já citei neste blog uma passagem de um outro livro de John Holt em que ele discute como as crianças – e as pessoas em geral – aprendem. Vale a pena retomá-la, agora neste contexto, para mostrar que a maior parte das coisas realmente importantes são aprendidas por processos diferentes do ensino formal:

Bill Hull uma vez disse a John Holt que “se a gente ensinasse as crianças a falar, elas nunca aprenderiam”. Vou transcrever a seguir a maior parte do artigo “Teaching Children How to Speak”, de Holt, no qual ele discorre sobre as implicações do que o outro lhe dissera. Mas antes devo dizer que Hull, Holt, Everett Reimer, A. S. Neill, Paulo Freire, e, por que não dizer, Ricardo Semler, são todos pássaros da mesma plumagem.

Eis o que diz John Holt no artigo:

“Vamos supor que tomemos a decisão de ‘ensinar’ as crianças a falar. Como é que a gente faria? Primeiro, um comitê de especialistas analisaria a fala e a quebraria em um certo número de ‘habilidades requeridas para a fala’. Provavelmente os especialistas diriam que, visto que a fala é composta de sons, seria necessário, primeiro, ensinar a criança a emitir todos os sons requeridos por sua língua materna. Sem isso não seria possível ensiná-la a falar… Sem dúvida eles classificariam os diversos sons dos mais fáceis e frequentes para os mais difíceis e raros. E o professor então começaria a ensinar à criança, primeiro os sons mais fáceis e frequentes, depois os mais difíceis e raros, até passar por toda a lista. Talvez, para não ‘confundir’ a criança, a gente a colocasse em um ambiente segregado, isolado da vida normal, para que ela não ouvisse a fala regular dos já falantes, mas apenas repetidamente ouvisse, em cada estágio, os sons que o professor está tentando ensinar a ela. Ao lado de uma lista de sons, os especialistas comporiam uma lista de sílabas que combinassem os sons, e uma lista de palavras selecionadas que combinassem as sílabas pertencentes à lista de sílabas. Num segundo estágio, o professor ensinaria a criança a combinar sons em sílabas, num terceiro, a combinar sílabas em palavras. Em estágio subsequente, o professor ensinaria a criança a combinar palavras em frases e sentenças. Mas, antes disso, teria de ensinar à criança as regras gramaticais que regem a formação de frases e sentenças. Tudo seria completa e meticulosamente planejado, nada sendo deixado ao acaso. Em cada estágio haveria uma grande quantidade de exercícios práticos, revisões, testes, para garantir que nenhuma criança esquecesse o que já lhe havia sido ensinado. Suponhamos que fizéssemos isso. O que aconteceria? O que aconteceria seria que a maior parte das crianças, antes de ir muito longe, ficaria confusa, frustrada, desencorajada, humilhada, temerosa – e provavelmente desistiria de aprender a falar. Se, fora da sala de aula, elas vivessem vidas normais de crianças, poderiam, sem prejuízo, simplesmente ignorar o ‘ensino’ e aprender a falar do jeito normal. Se, entretanto, a escola tivesse controle integral e completo de sua vida desde os primeiros meses de vida (o sonho de demasiados educadores), elas buscariam refúgio no silêncio e no fracasso deliberado, como tantas fazem, quando tentamos ensiná-las, não a falar, mas a ler e escrever…”.

4. Conclusão

É isso. Educação é uma coisa, ensino outra, e escola ainda uma outra. Quanto mais cedo a gente desimbricar esses conceitos e deixar de confundi-los e considerá-los equivalentes, ou quase sinônimos, melhor.

Em São Paulo, 26 de Setembro de 2011, transcrito aqui em 11 de Outubro de 2011.

A Questão das Políticas Públicas na Educação

Post que publiquei em 14 de Setembro de 2011 no Blog das Editoras Ática e Scipione no URL http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/a-questao-das-politicas-publicas-em-educacao.

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Erra quem afirma que “qualquer escola é melhor do que nenhuma escola”. Em tempos em que a sociedade sugere tantas formas de fazer política pública para a educação, por que não ousamos de fato transformá-la?

Lendo e ouvindo o que se escreve e diz sobre a educação no país, parece que chegamos a alguns consensos, ou quase-consensos, acerca da escola pública brasileira.

Primeiro, ela vai mal. Disso ninguém mais duvida (e está aí o último resultado do Enem para provar a afirmação). Segundo, é necessário fazer alguma coisa, urgentemente, para que sua qualidade melhore.

Terceiro, ela só vai melhorar se lhe destinarmos mais recursos e conseguirmos implantar “políticas públicas” adequadas que corrijam seus problemas mais graves. (“Políticas públicas” é a expressão-chave na qual todo discurso acaba chegando).

O problema, porém, é que, ao tentar melhorar a qualidade da escola pública brasileira, a maior parte das iniciativas, governamentais ou não, nacionais ou estrangeiras, tem buscado soluções de problemas segmentados e específicos que, mesmo que solucionados, não representarão necessariamente uma melhoria substantiva e significativa na qualidade da educação brasileira.

Ilustro com algumas políticas públicas desse tipo que têm sido sugeridas e, em alguns casos, até mesmo implementadas:

  • Políticas voltadas para o aumento do período de escolaridade obrigatória: era de 4 anos, passou a ser de 8, depois 9, e já se faz campanha para que seja de 12 anos e abranja o Ensino Fundamental e o Ensino Médio;
  • Políticas voltadas para o aumento do número mínimo de dias letivos: o ano escolar tinha 160 dias, passou a ser de 180, chegou a 200 e já se fala em aumentá-lo para 220;
  • Políticas voltadas para o aumento da duração dos turnos diários, chegando-se, no limite, à escola de tempo integral (que quase todo mundo parece considerar ideal);
  • Políticas voltadas para a garantia da presença e da permanência na escola da criança e do adolescente que, por alguma razão, estão fora dela;
  • Políticas voltadas para a redução da repetência e da evasão (ainda que se aplique a promoção automática);
  • Políticas voltadas à correção das defasagens idade/série;
  • Políticas voltadas à melhoria do salário dos professores ou à introdução de mecanismos de remuneração que privilegiem desempenho e mérito;
  • Políticas voltadas à extensão e melhoria da formação dos professores;
  • Políticas voltadas à introdução da tecnologia na escola e à implantação de programas de educação a distância (inclusive para a formação de professores).

Quando os políticos, a mídia ou a academia propõem essas medidas, raramente levantam questões pedagógicas básicas como, por exemplo:

  • A natureza da educação –> O que é educar?
  • A razão de ser da educação –> Por que educar?
  • O objetivo da educação –> Para que educar?
  • Os agentes da educação –> Quem educa?
  • A essência da aprendizagem –> O que é aprender?
  • O currículo –> O que as pessoas devem aprender?
  • A metodologia –> Como as pessoas aprendem?
  • A avaliação –> Como se afere se alguém aprendeu o que se propôs aprender ou o que se esperava que aprendesse?

No entanto, é a resposta a essas questões sobre a natureza, a razão de ser e o objetivo da educação e da aprendizagem que deve nortear, de forma tácita ou consciente, as decisões acerca da função da escola, do acesso a ela, da obrigatoriedade da permanência nela, ou acerca da formação do professor e da avaliação e remuneração do seu trabalho. Ou vejamos.

Políticas voltadas para garantir a presença e a permanência da criança na escola e aumentar seu tempo de permanência nela só fazem sentido se a experiência escolar for uma genuína experiência de aprendizagem. Há evidência incontestável, hoje, de que a mera permanência dos alunos na escola, ainda que em período integral e durante quase o ano inteiro, não produz, necessariamente, aprendizagem genuína daquilo que é essencial ou importante saber e saber fazer.

Na maior parte do tempo a experiência escolar é vista – pelo menos por suas vítimas, os alunos – como basicamente inútil (não serve para grande coisa) ou até mesmo desagradável (“chata” é o principal termo que se aplica à aula, que ainda hoje é a experiência pedagógica central no ambiente escolar). O resultado comprovado são crianças e adolescentes que passam oito anos na escola e não aprendem nem mesmo a ler e escrever decentemente na língua materna – quanto mais em língua estrangeira. As coisas interessantes que eventualmente aprendem, eles parecem aprender fora da escola.

(A situação me faz lembrar uma frase atribuída ao escritor norte-americano Mark Twain, que teria dito que nunca deixou que a escola interferisse na sua educação…).

Como ressaltei em 2003 em minha fala do congresso “Educação e Tecnologia para o Desenvolvimento Humano” (realizado pelo Instituto Ayrton Senna em parceria com a Microsoft Brasil), não é qualquer escola que serve. Erra quem afirma – como um dia afirmou o Senador Cristovam Buarque, quando Ministro da Educação – que “qualquer escola é melhor do que nenhuma escola”.

A escola ruim, além de não fazer bem, causa muitos males, como, por exemplo:

  • Desperdício de recursos de quem a cria e mantém e perda de tempo de quem a freqüenta;
  • Diminuição da curiosidade e da vontade natural de aprender por parte dos alunos, que passam a ver a aprendizagem, a educação e a escola como coisas chatas, não desafiadoras, que nada têm a ver com as coisas boas e interessantes da vida;
  • Fracasso escolar de alunos que poderiam aprender muito e com prazer em uma escola diferente mas que, em decorrência da experiência escolar, concluem que a causa do fracasso está em si mesmos e não na inadequação da escola.

É por isso que políticas públicas voltadas para a solução de problemas segmentados, ou específicos, não resolvem o desafio da qualidade na educação – em especial na educação pública. Precisamos de uma abordagem sistêmica, que olhe para a educação como um todo, formal e não-formal, e que seja radical, isto é: tenha por objetivo uma transformação radical e não pequenas mudanças que podem melhorar um pouquinho aqui e ali, que podem reformar um ou outro aspecto mais grave ou urgente, mas não afetam o todo de forma significativa.

Esse tipo de transformação radical e profunda precisa buscar real inovação, o claramente novo. Não basta melhorar, reformar o que já existe. Precisamos de transformação, não de reforma. Precisamos, na verdade, de uma nova educação, não de uma melhora na educação que temos.

No fundo, todos nós sabemos que é verdade o que diz Jay Allard (ex-vice-presidente da Microsoft Corporation) na revista Business Week, edição de 4 de dezembro de 2006:

“Para mudar o mundo, precisamos imaginá-lo diferente do que é hoje. Se, nessa visão, usarmos muito do conhecimento e da experiência que nos trouxeram até aqui, terminaremos exatamente onde começamos… Para ter um resultado diferente, temos de olhar as coisas de uma perspectiva radicalmente diferente.”

Uma frase atribuída a um monte de gente famosa diz que o cúmulo da estupidez é continuar a fazer exatamente a mesma coisa e esperar que o resultado venha a ser significativamente diferente.

Cito um exemplo do que boa parte da sociedade propõe como mudança na educação: todo mundo diz que o professor precisa ser melhor formado e remunerado porque ele é e continuará a ser o portão de entrada para a educação para a maioria das pessoas. Mas será que isso, ainda que verdade no passado, continuará a ser verdade no futuro? Quem garante que a escola do futuro, transformada, terá professores como os conhecemos? Na realidade, quem garante que a educação do futuro terá escolas como as que conhecemos hoje?

Ivan Illich vinha, já há muito tempo, insistindo na desescolarização da sociedade, como já falamos neste blog. E ele propôs isso muito antes de a tecnologia transformar a nossa sociedade em uma sociedade da informação, do conhecimento, da aprendizagem – na verdade, em uma sociedade aprendente (learning society). John Holt, amigo de Illich, escreveu em Freedom and Beyond:

“As pessoas, mesmo as crianças, são educadas muito mais por toda a sociedade em que vivem e pela qualidade geral da vida dessa sociedade do que por aquilo que lhes sucede na escola”.

Por que, então, a gente não ousa transformar o que passa por educação e reinventar a escola? Cito um exemplo agora de fora da área da educação, envolvendo o mercado livreiro, Jeff Bezos e a Amazon. Neste setor sim tem ocorrido uma real mudança de paradigma.

  • Os livros impressos, como os conhecemos, existem há cerca de 550 anos num mercado que era, até há pouco tempo, bastante estável.
  • Livrarias físicas eram a principal forma de distribuição dos livros aos usuários finais, e, por muito tempo, funcionário com pouca ou mesmo nenhuma tecnologia (usando cadernos e fichas para controle de estoque, cadernos ou simples máquinas de calcular ou caixas registradoras para controle de vendas e fluxo de caixa, folhas de cálculo para contabilidade e, se fosse o caso, folha de pagamento.
  • A chegada de tecnologia básica (computadores com planilhas eletrônicas ou programas comerciais integrados) permitiu que o livreiro continuasse a fazer a mesma coisa que já fazia, só que, agora, com pequenos ganhos de eficiência – uso conservador da tecnologia.
  • A chegada de tecnologia ainda básica, mas com acesso à internet, permitiu que o livreiro criasse um site para a livraria e que anunciasse seus livros nele, assim aumentando o alcance de sua comunicação e propaganda – uso levemente reformador da tecnologia.
  • A chegada de tecnologia um pouco mais avançada permitiu que o livreiro passasse a vender livros também online, acrescentando um subsite de venda ao site da livraria – uso bem mais reformador da tecnologia que estendeu o escopo do negócio, posto que qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, pode comprar um livro no site. Entra Jeff Bezos em cena e cria uma livraria que não tem estoque, só tem catálogo, e que, na realidade, intermedeia a venda de livros para o comprador-leitor.
  • O desenvolvimento de tecnologia relativamente sofisticada permitiu que Jeff Bezos passasse a criar perfis altamente sofisticados dos seus clientes – uso de tecnologia (banco de dados com ferramentas analíticas sofisticadas) que leva o uso reformador da tecnologia no ambiente livreiro ao seu limite.
  • Tecnologias mais sofisticadas permitem a criação e a comercialização de livros eletrônicos e de leitores de livros eletrônicos – uso agora criativo, inovador e transformador da tecnologia, que revoluciona o mercado livreiro e deixa editores e livreiros tradicionais, para não falar em fabricantes de computadores, em polvorosa.

Por que não conseguimos fazer uma transformação desse tipo na educação? Por que não conseguimos reinventar a escola como Jeff Bezos reinventou o mercado livreiro?

Eu sugiro que, para transformar a escola atual em um ambiente de aprendizagem digno do nome, é preciso repensar, de forma drástica e radical, o que entendemos por educação e dar respostas verdadeiramente inovadoras a questões como “Por que educar?”, “Para que educar?”, “Como educar?”

Somente dessa forma seremos capazes de “integrar políticas” voltadas para a educação – esta entendida como desenvolvimento humano – e apresentar soluções sistêmicas que, aplicadas, melhorem substantivamente a experiência de aprendizagem de nossas crianças, adolescentes e jovens (na realidade, de todas as pessoas).

Em São Paulo, 14 de Setembro de 2011, transcrito aqui em 11 de Outubro de 2011